JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 33
Capítulo 33




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Tinha se demorado além do previsto, pois não sabia que a sua situação era grave. Não pelo patife abatido, mas pelo outro canalha, que era um figurão na política de uma cidadezinha ordinária não tão longe dali. A sua cabeça estava a prêmio, e ainda não tinha encontrado as palavras adequadas para comunicar a sua mulher sobre essa novidade. Como já estavam de viagem marcada, preferiu deixar para se preocupar no retorno das suas merecidas férias. Mesmo puxando pela memória, não conseguia lembrar da última vez que tinha arrumado as malas com a intenção de pegar a estrada.

 

Pensou ter ouvido as crianças chorando dentro de casa. Àquela altura, Cláudia devia estar atarantada com as coisas que levariam no carro, e precisando da ajuda dele. Deixou o carro novo estacionado na rua e estranhou o portão com o ferrolho aberto. Atravessou o corredor lateral para entrar pelo quintal, e novamente se surpreendeu com a porta da cozinha escancarada, com o vento a balançá-la. Ele sabia que o ruído daquelas dobradiças enferrujadas a irritavam, portanto estava sempre fechada. A louça estava suja na pia, outra observação de coisas que lhe soavam incomum. Os lamúrios vinham do quarto e ele logo alcançou a porta do cômodo, abrindo-a com cuidado. As crianças estavam sujas de urina e fezes e pareciam exaustas e com fome. Por todo o quarto se via farelos de biscoitos e as paredes estavam sujas de excrementos. Correu para abraçá-las, enquanto ouvia-as gritando pela mãe, ao mesmo tempo em que o seu abraço transmitiu um pouco de calma, fazendo-as calar de cansaço e alívio por ver um rosto conhecido.

 

Percebeu a porta do guarda roupas aberta no lado que pertencia a ela, sem nenhuma peça de roupa. Os cabides estavam vazios, assim como as gavetas. Com as crianças mais calmas no seu colo, foi atrás de alguma pista pela casa, uma carta, um sinal. Não viu nada. Evitou chorar para não assustar aqueles pequenos que fazia tão pouco tempo que o chamavam de pai. Abriu o chuveiro e os despiu para que se distraíssem um pouco debaixo da água, enquanto dava outra vasculhada no resto da residência. No início ele se recusava a acreditar, mas o seu coração experiente lhe dizia que ela tinha ido embora. Não sabia se com outro homem, ou sozinha, mas a verdade é que tinha deixado os filhos para trás, talvez na esperança de que ele pudesse dar conta do recado. O seu amor crescente tinha se acidentado em alguma curva traiçoeira do coração.

 

Abriu uma mala grande e começou a jogar suas roupas e as das crianças de maneira apressada. Não conseguiria ficar naquela casa por mais tempo. Seguiria com os planos da viagem, mas para outro destino. A jornada os levariam até o seu rincão natal, onde havia décadas que não pisava os pés. Ainda vivos, tinha duas irmãs, uma delas moça velha, que foi casada por muito tempo com um homem infértil, e que a tinha deixado viúva tarde demais para ser mãe. Achava que podia contar com ela e com as sobrinhas da outra irmã para ajudá-lo com os pequenos. Não os abandonaria por nada. Eles não tinham culpa alguma daquela rejeição abjeta.

 

Deu-lhes banho e as vestiu. Tinham parado de chamar pela mãe. Estavam quase satisfeitas com as brincadeiras que ele fazia para enfiarem os braços nas mangas das camisas. Borrifou-lhes uma lavanda, fechou a mala e uma bolsa de mão com merendas e água, e carregou o carro novo que tinha comprado com a venda do antigo. Por último, foi buscar o dinheiro no cofre para depositar no banco. Não havia nada lá dentro. Ele não estava surpreso. Recordou que achava estranho ela pentear os cabelos sentada de frente para o espelho da penteadeira do quarto sempre que ele estava girando o disco de combinação. Ele tinha a impressão que ela o observava pela imagem refletida. Então toda aquela farsa era apenas pelo dinheiro. Abaixou a cabeça e deu um sorriso de decepção. Ali estava uma parte das suas economias, mas o grosso estava bem seguro no banco.

 

Antes de ir, ele queria dar uma passada no asilo para ver Dinorá pela última vez. Se ela estivesse em um dia bom, deixaria anotado o seu endereço para entregar a Samira. Quem sabe um dia ela não pudesse ir vê-lo antes dele morrer. Era melancólico saber que ele tinha uma filha que não sabia que tinha um pai. Antes de engatar a primeira marcha do Del Rey, deu uma última olhada na fachada da casa, na qual só tivera desgosto. Não sentiria falta alguma daquele lugar. Olhou pelo retrovisor as crianças brincando com seus bonecos e pedindo para ele começar a dirigir. Até elas queriam ir para bem longe de todos aqueles fantasmas que ficariam presos ali dentro. 

 

Engrenou o veículo e saiu, sem notar uma mulher jovem e fora de si, seminua e de aspecto maltrapilho, que andava curvada em passos trôpegos, e que dobrou a esquina erguendo as mãos, sem forças para gritar que parassem. Antes de ver o carro sumir, tropeçou e caiu no chão, rasgando um lençol que carregava nas costas, espalhando maços de dinheiro pelo meio da rua, fazendo com que o trânsito parasse, e pessoas brotassem de todos os lados para catar as notas do chão. Antes de sofrer uma parada cárdio respiratória, com o coração sobrecarregado por uma overdose de heroína, e pela distância que já tinha percorrido a pé, sufocou-se com o próprio vômito. Um adolescente que juntava dinheiro agachado ao lado do seu corpo caído, e observava a espuma que saía da sua boca, pensou tê-la ouvido sussurrar.. ME PERDOE.

 

 

Ele imaginava que ela entraria na sua sala como um cachorrinho que faz travessuras e depois se aproxima abanando o rabo como se pedisse desculpas. Era quase orgásmica a sensação de estar com as rédeas daquela cadela nas suas mãos, aquele olhar implorando por piedade como se ele fosse o seu Deus. E ele era. Quando aquele pensamento esplendoroso se desanuviou, reconheceu o rosto de quem estava vindo na direção da sua sala. Patrícia vinha abrindo destemida o caminho pelo meio da redação sem encarar os colegas, mas sem abaixar a cabeça. Focava no aquário, a sala do seu chefe com paredes de vidro. Salvo engano, a expressão que vinha a reboque no rosto dela era de determinação e não de subserviência. Ela por sua vez, não esperava outra coisa, a não ser a língua dele passeando pelos lábios como a saborear alguma vitória. Entretanto, notou uma certa decepção sendo desenhada na caveira descarnada de Peixoto, que logo recolheu as fotos pornográficas da festa, que utilizaria para dar um xeque mate naquele jogo, e as jogou dentro da gaveta. Parecia que as prostitutas infiltradas em redações de jornais não davam a mínima para aqueles detalhes.

 

— Como vai chefe? Gostou das fotos do evento? Arrasei, não foi? As imagens ficaram boas? Ainda tem algum retrato sem estar sujo com o seu sêmen? Porque eu queria muito um deles de recordação - Ironizou, enquanto a fúria crescia dentro dele.

— Chega de gracinhas! - Gritou, dando um soco na mesa, fazendo-a sentar na cadeira, e pausando o barulho das máquinas de escrever da redação por alguns segundos.

— Feche a porra da porta! - Ordenou aos berros, prontamente obedecido por Patrícia que não estava com medo e se divertia com o namorado canceroso, cujos dedos finos tremiam em busca de um cigarro.

— O chefinho não está para brincadeiras! - Sussurrou para os colegas antes de fechar a porta, voltando a sentar-se, e logo recebendo uma baforada de fumaça daquela porcaria sem filtro que ele tragava.

— O que você tem a me dizer sobre o ocorrido?

— Nada. Vim pedir a minha demissão. Você pode enfiar a sua arrogância e o seu poder no rabo. Sem vaselina.

— Você sabe que eu posso replicar essas fotos por aí, né? - Ameaçou, observando atentamente aquela belezura que estava perdendo para sempre.

— Você sabe que posso escrever uma matéria independente para alguma revista de fofoca contando o que vi de cada uma daquelas jovens e proeminentes moçoilas da alta sociedade. Cada detalhe daquela orgia travestida de festinha de despedida de solteira. Quanta hipocrisia chefinho! Se as fotos fofinhas que saíram nas colunas sociais dos jornais de hoje vissem o que os meus olhos viram, a noiva apareceria sendo ordenhada nas duas tetas pela boca de dois machos viris, enquanto guardava com carinho o pau de um terceiro gogoboy na sua boca. Até as bolas!

— Você não seria louca a esse ponto!

— Adivinhem a quem iriam culpar? Exatamente! Esse renomado pasquim e o seu chefe de redação! Ou seja, divulgar os meus retratos só vai carimbar a verdade dos fatos que tenho a relatar sobre aquela orgia.

— Sua puta!

— Não me elogie assim que minhas bochechas vão corar - Disse, levantando-se da cadeira e se dirigindo até a porta.

— Ah! E tá tudo gravado! Tanto os gemidos da debutante chamando o futuro marido de corno, quanto a sua voz aqui nessa reunião agradável de despedida - Emendou, mostrando a bolsa aberta com um gravador portátil em funcionamento. Com isso aqui também posso te processar.

 

Ela o viu abrir a gaveta e colocar um envelope pardo sobre a mesa.

— Leve isso embora daqui e desapareça. Vou mandar bater a sua demissão sem justa causa. Você terá todos os seus direitos.

 

Ela se aproximou e abriu o envelope, retirando o seu conteúdo. Como estava radiante! Metida naquele tubinho preto levantado até a barriga e sem calçolas, saltitando em cima daquele touro humano que tinha saído de dentro do bolo gigante. Cheirou algumas fotografias manchadas de esperma seco, olhou para Peixoto, lhe deu o seu melhor sorriso e lambeu um dos fotogramas dos negativos, deixando na mesa uma mini fita cassete.

 

Andou até a porta como quem desfila na passarela, rebolando a bunda perfeita dentro da saia curta. E foi assim que saiu daquela redação, fazendo os rostos virarem na direção das suas nádegas como girassóis se voltam para a estrela flamejante do sistema solar, cessando as batidas dos teclados das máquinas mais uma vez.

 

 

Toda vez que conseguia a pena máxima a um réu que havia tirado a vida de uma ou mais pessoas, sentia-se no direito de tomar um café irlandês na cafeteria anexa ao fórum. Como não haveria mais nenhum compromisso naquele dia, podia se permitir algo mais forte. Precisava limpar as gavetas do seu gabinete, pois havia muitas anotações suas referentes a processos que já haviam transitado em julgado, e a sua secretária não saberia como separar os rabiscos novos dos antigos. 

 

Era conhecido por ser imparcial e implacável quando tinha acesso a provas robustas contra o réu, e normalmente conseguia uma condenação. Já houve casos em que a sua fama chegou até o seio da bandidagem, que temia passar por uma audiência com ele. Um suspeito de parricídio chegou mesmo a se urinar quando ficou frente a frente com o temido juiz. O que poderia ser entendido como um gesto de medo, o Dr. Eliseu encarou como escárnio. Reverteu a prisão temporária do homem em preventiva. Cinco anos depois o réu foi sentenciado a trinta anos de encarceramento, com a exigência feita pelo juiz, que durante o julgamento o réu vestisse uma fralda geriátrica por baixo da roupa do presídio.

 

Saboreava o seu café alcoólico sentado em uma mesa ao ar livre, pensando no futuro dos seus filhos. O mais velho tinha a mesma idade do seu irmão caçula, o desordeiro da família. Aquela ovelha negra sem conserto que o envergonhava sempre que estava em meio aos seus pares. Como em todo meio profissional, ele também tinha os seus desafetos dentro do Tribunal de Justiça, e o seu concorrente direto para o cargo de desembargador do estado sempre dava um jeito de meter o nome de Rogério nas reuniões de pauta. Era só um velho asqueroso e degenerado moralmente que frequentava antros nas suas viagens de férias, e que não lhe metia medo algum. Pensando em medo, localizou visualmente os seus dois seguranças a uma curta distância.

 

Sorveu um último gole da bebida e achou ter visto a sua secretária andando apressada na sua direção. Limpou os óculos com um lenço e o repôs sobre o nariz. De fato era a pobre da Fidalga que vinha num arremedo de corrida. Mas que diabos ela estava fazendo? Ela já havia lhe confessado que sofria de artrose nos joelhos e não podia andar com pressa. Mas a imagem era de uma senhora sexagenária que parecia estar fugindo de uma aparição.

 

— Doutor, doutor! O senhor precisa voltar ligeiro para o seu gabinete! Tem uma ligação na espera. O caso é urgente! - Disse a pobre senhora em um só fôlego, diante do seu chefe, que a olhava incrédulo.

— Mas Fidalga, o que pode ser tão urgente a ponto de te fazer correr sem nem poder?

— Um delegado de polícia pedindo a sua presença em um local onde está ocorrendo nesse momento um sequestro. É em um asilo.

— Será alguém que condenei e fugiu da cadeia?

— Não. É ainda pior. É o seu irmão.


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