JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 31
Capítulo 31




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808851/chapter/31

Haviam combinado de se encontrar numa área menos movimentada do cemitério, como sempre faziam quando o assunto envolvia informações apenas para dois pares de ouvidos. E como de costume, o redator chefe era sempre pontual. Logo, Balduíno se viu caminhando em silêncio ao lado do homem que fez a intermediação da venda dos corpos e que tinha lhe rendido um bom dinheiro. Daquela vez ele viera cumprir uma promessa feita quando ouviu pela primeira vez a proposta mirabolante de vender cadáveres a uma instituição de ensino com propósitos edificantes. Estava ansioso por aquela informação.

 

— Você recorda o ano que ocorreu?

— Não, já faz muito tempo, mas ela estava numa fase difícil da vida. Sofria com o vício do álcool - Respondeu o coveiro, omitindo a parte de que ela tinha tido uma recaída no dia anterior, tendo passado a noite no seu barraco com uma aparência de atropelo, e sob os seus cuidados.

— Sei. Confirmei essa informação com o próprio dono do estabelecimento, que me mostrou um retrato dele que estava nos arquivos da empresa de contabilidade que trabalha para ele - Esclareceu, omitindo a parte em que ele estava trepando com a filha dele, e que tempos mais difíceis ainda estavam por vir para Patrícia.

— Mas me diga logo homem, quem foi o maldito?

— É alguém próximo a você. Conheci a mãe dele logo depois do episódio do cabaré de Dinorá, e depois fiquei amigo do irmão dele, que é juiz e muito influente. A parte que me dói é que fui eu que arranjei aquele emprego para o filho da puta, depois que ele arranjou uma encrenca danada aqui no bairro e estava sendo procurado pela polícia e pelo bando rival.

— Não gosto dessas brincadeiras de gato e rato. Me dê um nome.

— Rogério.

— Não conheço nenhum Rogério na vida - Disse impaciente, observando que Peixoto estava se divertindo com aquilo. Resolveu se acalmar para não alimentar aquele sadismo.

— Ele tem uma alcunha. Todo mundo conhece ele por aqui como….como é mesmo o apelido? - Fingiu ter esquecido apenas para se deliciar com o suspense - Ah! Lembrei! MON-TI-LA! - Disse bem devagar, saboreando a informação e a transformação lenta da expressão facial do seu interlocutor.

— Montila?

— Esse mesmo. Foi o cara que estuprou a sua filha. Como ainda é menor de idade, teoricamente é inimputável. Ainda mais com um irmão juiz de vara criminal. Você quer outra informação importante? - Perguntou, parando o homem que já se afastava atrás de providências.

 

Balduíno parou a meia distância e colocou as mãos na cintura aguardando aquele desgraçado acender um cigarro e dar uma longa tragada antes de abrir o bico novamente. O canalha gostava de deixar as pessoas naquele estado de dependência.

— Ligue a televisão. Você vai saber onde ele está neste exato momento, isso se já não foi abatido a tiros - Revelou, observando um pai indo vingar a honra de uma filha mau caráter, sem um pingo de vergonha, despudorada e adúltera. Mas que ele amava. Do jeito torto dele, mas amava.

 

Seja lá o que estivesse acontecendo, o seu instinto de sobrevivência pedia ações urgentes. Como estava mais perto do Bar do Desidério do que de casa, entrou ali para entender o que se passava. Pareciam imagens feitas de um helicóptero. Havia uma grande confusão armada no entorno de uma instituição para idosos. E lá estava ele brandindo uma arma no ar, segurando uma velhota pelo pescoço.

 

— O menino tá ficando famoso e em rede nacional - Comentou o bicheiro com cara de rato, enquanto ouvia o dono do bar gritar um palavrão quando viu uma imagem aérea mostrar a sua Caravan, já saindo e pedindo para a esposa tomar conta de tudo.

— Para onde você vai Desidério?

— Atrás do meu carro que aquele fedelho dos infernos me roubou - Explicou enraivecido, pegando as chaves do carro do filho.

— Posso ir com você?

— Vamos embora então. Vou precisar de alguém para trazer este carro de volta quando recuperar o meu. Você sabe dirigir?

— Qualquer coisa que tenha quatro rodas - Respondeu Balduínio, lembrando do trator que pilotava em Sabugueiro para levar as hortaliças e legumes para vender na feira, e cometendo uma omissão pela segunda vez em meia hora. A de que ele talvez não voltasse daquele asilo dirigindo o tal carro. Estava indo à caça do estuprador da sua filha, aquele que entrou na sua casa analfabeto e saiu lendo e escrevendo.

 

Balduíno se arrepiou por inteiro quando chegou naquele lugar carregado de energia negativa e fadado a alguma consequência nefasta. O cheiro de tragédia pairava no ar e no rosto de quem assistia aquele programa do cão ao vivo. Havia uma paralisia coletiva na audiência, como se aguardassem alguma intervenção divina, já que a polícia apenas observava tudo a uma distância segura, protegendo o local dos curiosos. Tudo ali exalava a expectativa, além de ser barato testemunhar a desgraça dos outros, havia carrinhos de cachorro quente a preços módicos e vendedores de picolé feito com água da torneira e restos de frutas maduras demais. Mas tudo era doce quando a vida em jogo era a alheia, e as suas nádegas estavam bem acomodadas no banco do carona de um Corcel LDO 1979. Era claro que satanás estava ali comendo pipoca, cutucando os pensamentos alheios na torcida para que o sangue de alguém fosse derramado, contanto que não fosse o próprio.

 

Ganhava para enterrar gente, mas juntou as mãos depois que saiu do carro, em prece para que nenhuma daquelas caras desconhecidas estivesse em um caixão amanhã. Abriu passagem até onde havia uma corda, e pessoas exaltadas bradando gritos de ordem.

 

— Liberte os cativos! Liberte os cativos! Liberte os cativos!

 

Aquela balbúrdia dava o tom do tamanho da esmola que a audiência dos meios de comunicação estava auferindo. Era a peleja do coisa ruim contra o dono do céu, um levante ordinário improvisado pelo Criador, contra uma orquestra de carne e osso, que de vez em quando fraturava o tom e tocava algo no ritmo certo para que a morte pudesse valsar.

 

Ele sabia que as páginas dos seus dias estavam sendo escritas, e não queria ser um personagem coadjuvante. Precisava deixar o germe do orgulho na sua neta, pois sabia que aquela semente seria definitiva para que vivesse para fazer algo um pouco mais além do previsível, já que a sua filha era um caso perdido.

 

— Pelo que vi, meu carro deve estar por aqui! - Dizia exasperado o dono do bar, mais preocupado em resgatar o seu automóvel do que com a vida de pessoas inocentes em risco, parado no acostamento a poucos metros de um bosque.

 

Ao saírem do veículo, ouviram os estampidos de três tiros disparados ali próximo. Acharam estranho que o barulho não viesse de dentro do asilo. Como reação instintiva se agacharam atrás de uma árvore. Balduíno ergueu um pouco a cabeça, atento aos movimentos seguintes do atirador, e reconheceu o homem que jogava a arma no lago a meia distância. Era Justino, aquele que tinha dado guarida a sua filha, irmão do gêmeo morto. Ficou confuso com aquela ação e resolveu ir atrás dele, que corria para o lado oposto do bosque, próximo aos fundos do instituto, deixando Desidério para trás.

 

— Espere! - Gritou para o homem atarracado, que diminuiu a marcha ao reconhecê-lo, no exato momento em que cruzam com dois policiais correndo na direção oposta, perguntando se tinham visto algo suspeito. Balduíno disse que tinha avistado um homem armado correndo para longe dali, apontando um lugar a esmo e vendo-os se afastar.

— Obrigado por isso!

— Mas que diabos você estava fazendo ali atrás dando tiros pra cima?

 

Justino fez um resumo da confusão e recebeu de volta a notícia pavorosa do estupro de Patrícia por Montila. Aquilo o deixou ainda mais transtornado. Se acaso Cândido ainda não tivesse entrado no lugar, ele mesmo o faria. Agora eram várias contas a acertar com aquele verme. Esperava que Samira estivesse em segurança, e a promessa que tinha feito a ela de tirar a mãe das garras daquele facínora, estava de pé.

 

— Precisamos agir rápido, vamos por aqui! - Ordenou Justino, começando a correr, seguido pelo pai da moça violada.

 

 

A NOITE DO LEILÃO (PARTE DERRADEIRA)

 

As fagulhas que saíam do esmeril portátil, onde as meninas afiavam seus alicates de unha, eram de uma tesoura de costura de aço inoxidável. Dinorá queria deixá-la no ponto de cortar carne como se fosse manteiga. Enquanto realizava aquela tarefa, extraía a agonia do olhar do homem que estava amarrado na cama como veio ao mundo, e que depois de um momento de arrogância, caiu em si, debatendo-se como se estivesse a antecipar a dor.

 

A cafetina tinha mandado Janice orientar que Samira ficasse trancada no quarto com o aparelho de som ligado, e só saísse quando autorizada. Não queria que a menina ouvisse os uivos daquele infeliz. O mau tempo e a alta madrugada contribuíam para que não houvesse transeuntes caminhando pela rua. A única testemunha que queria presente era a sua cocota decana, que já tinha assistido ela açoitar um vagabundo que usufruiu dos deleites de uma de suas meninas e não queria pagar. Deve lembrar dela até os dias de hoje quando abre a braguilha no banheiro para urinar.

 

— Janice, deixe o ferro de passar roupa esquentando e ponha um pedaço de cabo de vassoura atravessada na boca desse cavalheiro - Ordenou, com o advogado movimentando os olhos atônitos de uma para a outra.

— E também traga um urinol para colocar debaixo da bunda dele. Pode ser que ele não seja tão macho assim e queira sujar meus lençóis - Ralhou, enquanto desligava o esmeril e tocava as lâminas da tesoura, satisfeita com o resultado.

— Você ainda tem aquelas luvas de jardinagem?

— Sim, vou buscar.

— Ótimo. Quando você chegar, começamos - Disse, retirando a mordaça de pano da boca do refém - Alguma palavra que valha a pena ser dita antes de executar a sua pena?

— Que o diabo não tenha misericordia da sua alma! - Gritou, sendo esbofeteado na cara e tendo o cepo de pau colocado na boca com violência.

— Se o diabo tiver discernimento não terá dúvidas sobre quem vai levar de nós dois, seu trapaceiro de uma figa. A única promessa que te faço é que não vai demorar. Mas vai doer - Ameaçou, aproximando-se dele, abrindo e fechando a tesoura, enquanto Janice esticava o membro murcho para cima, revelando o alvo. Por instinto, as bolas do homem se movimentavam, como se quisesse achar um lugar para se esconder. Os músculos do corpo se contraíam, enquanto mordia o cepo de pau esperando pela amputação a sangue frio.

 

Mesmo com a luz do quarto acesa, Dinorá pediu que acendesse os abajures de cabeceira. Ela queria ter domínio total sobre as suas ações. Panos de chão estavam por todo canto para o caso de haver sangramento abundante. Só não tinha um plano para o caso do homem morrer ali deitado. Janice pousou um frasco de vidro com álcool em uma das cabeceiras e preparou os olhos para o que viria em seguida.

 

A cafetina encostou a lâmina fria na pele do escroto, com uma das mãos prendendo os testículos, dando uma leve beliscada para que Cassandro pudesse mensurar o quanto seria dolorido. O cafajeste com diploma de doutor na arte de interpretação das leis, tinha quebrado o decoro da sua Maison. Tinha roubado o produto ainda na prateleira. Agiu como uma ratazana imunda, e tal qual merecia o castigo da ratoeira mais adequada. As pálpebras do homem tremiam de nervoso, enquanto Dinorá não conseguia piscar os olhos. Sentiu o saco escrotal começar a suar na sua mão. Janice, por sua vez, não estava acreditando que o homem estava tendo uma ereção entre os seus dedos. Talvez fosse a última. Com as lâminas posicionadas, a cafetina fechou o objeto com força por toda a extensão do escroto, separando-o do corpo. As bolas caíram na luva já empapadas de sangue,e logo foram jogadas dentro do álcool. Como era de se esperar, o advogado perdeu as forças num último grunhido e desmaiou, soltando os intestinos e bexiga em cima do urinol. Janice acudiu com o ferro quente ainda ligado na tomada e encostou na ferida aberta, cauterizando de qualquer maneira o local e queimando uma boa extensão da virilha e parte do membro, agora amolecido.

 

Dr. Cassandro sairia dali dois dias depois com as suas próprias pernas, debilitado, assustado, e aleijado para sempre, quando a esposa já o dava como desaparecido, talvez enganchado com alguma rapariga bem longe dali. Ela esperava por aquilo a qualquer momento. Dinorá ajudou Janice a limpar a sujeira, e depois passou uma semana dormindo na mesma cama que Samira, logo depois que deu uma parte do dinheiro para as suas cocotas recomeçarem a vida em outro lugar, e de bico fechado. Janice permaneceu quando notou que os sintomas de demência da cafetina ficaram evidentes demais para serem ignorados. Como era de se esperar, ela definhou e começou a viver dentro de um mundo somente seu.

 

Algumas notícias vazaram para a imprensa, e alguns fatos chegaram até a polícia, que não conseguiu testemunhas e tampouco interrogar a dona da Maison, que tinha perdido a sanidade mental, o que a tornava inimputável perante a justiça. Sem a vítima, sem testemunhas, e sem o autor, as autoridades arquivaram o caso. Janice permaneceu ao lado de Samira depois que Dinorá foi internada, e só foi embora depois que ela completou a maioridade e já tinha decidido seguir os passos da mãe. Havia um quarto no casarão que tinha sido lacrado pela cafetina, para nunca mais ser aberto depois daquela noite.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "JARDIM BAGDÁ" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.