JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 30
Capítulo 30




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Aquela mulher daria uma ótima esposa. Se entregava com volúpia, cozinhava como uma deusa, tinha uma arma em casa, e era muda. Sua prima lhe deu o revólver de calibre 32 já carregado, lamentando não ter munição extra. Ele não via necessidade de usar mais que seis balas. Colocou uma mochila de lona nas costas contendo água e algum mantimento, deu-lhe um beijo apaixonado e subiu na mobilete velha que ela usava para ir fazer compras no centro. A casa era afastada de tudo, e o vizinho mais próximo estava a uns cem metros de distância da sua cerca. Ela gesticulou, informando que não precisava devolver nem o revólver e tampouco a moto. Cândido acionou o motor barulhento, fazendo um carinho na cabeça do pastor alemão antes de partir.

 

Parou no acostamento ao avistar o local onde tinha sofrido o acidente, e encontrou a picada de mato aberta pela violência do ocorrido. Trazia consigo naquele dia um canivete de estimação dentro do porta luvas, lembrança do seu pai. Resolveu caminhar até lá e tentar recuperá-lo, caso não tivesse derretido junto com o veículo. Um forte cheiro de queimado ainda pairava no ar, e o fogo tinha aberto uma clareira ao redor da carcaça. A bituca de cigarro que tinha sido o estopim do incêndio ainda estava no lugar em que Montila a havia jogado. Sentiu arrepios de ódio percorrendo todo o seu corpo. Engatinhando, entrou com cuidado pelos ferros retorcidos até a cavidade onde estaria o canivete, mas encontrou apenas as lâminas derretidas e grudadas no ferro da carroceria. Começou a fazer o movimento contrário para sair das ferragens quando sentiu algo gelado encostar na sua nuca.

 

— Saia bem devagar e não faça nenhuma gracinha, senão já sabe - Ameaçou Ramiro, pressionando o cano da arma na cabeça, enquanto sentia as pinicadas da mordida do cachorro na batata da perna, acompanhando atento ele engatinhar de ré.

— A gente tava atrás de você, seu salafrário. E se não fosse por aquele cachorro dos infernos, já teria negociado contigo, e depois você tomava o seu rumo - Disse Nego Bó, logo atrás.

— Negociar o quê? Quem são vocês?

— Quem a gente é não interessa. A pergunta é o que a gente quer. Se levante! - Ordenou o maior dos dois, enquanto o levantava pela alça da mochila.

— Então me diga, o que você quer?

— Agora sim, tô vendo esperança nessa conversa. Sabemos onde está quem você quer, e o que nós queremos é grana.

— Desembuchem logo e parem de enrolar. Estão falando de quem?

— Ora bolas, de Montila, quem mais?

— Onde ele está? - Perguntou, sacudindo a poeira da calça e interessado na conversa.

— Levamos você até lá, mas antes queremos fazer um acordo. E ele envolve grana - Disse Pedro Bó, roçando o polegar e o indicador, sinalizando dinheiro.

— E se isso for mentira? Como vou acreditar em vocês?

— Se quiséssemos lhe matar a gente já tinha feito lá na casa da rodovia, onde você ficou com aquela moça.

— Eram vocês fugindo do cachorro naquela moto? - Perguntou, sem poder segurar o riso.

— Sim, aquela miséria fez um estrago na minha perna - Resmungou Ramiro, mostrando o local da mordida.

— Tudo bem, mas não tenho grana viva. Posso conseguir duas correntes de ouro que valem mais que uma moto novinha daquela de vocês.

 

Ramiro olhou para a cara de Pedro Bó buscando apoio e viu que o comparsa assentiu com a cabeça. Baixaram a arma depois que fizeram o acordo. A dupla só omitiu a parte em que Montila, depois do ataque ao asilo, que souberam pela televisão mais cedo, talvez só pudesse ser encontrado, ou na cadeia, ou no cemitério, dois lugares difíceis para se concretizar uma vingança. O que importava era o ouro que colocariam no pescoço. Aquilo era sinal de prestígio entre a malandragem local.

 

— Qual o interesse de vocês em eliminar Montila?

— Ele expulsou a gente do bando por causa de um acidente. Não estamos aleijados. Talvez Ramiro não possa mais atirar com a mão direita porque teve que amputar esse dedo - Explicou, mostrando o seu indicador inteiro.

— Mas já estou treinando de canhota - Emendou o rapaz com nove dedos nas mãos.

— E eu quebrei duas costelas que perfuraram o meu pulmão. Já não aguento correr como antes, mas sei me esconder muito bem. Daí a gente junta a fome com a vontade de comer - Disse, dando uma gargalhada, que logo abreviou porque agora o ar lhe faltava com facilidade.

 

Se encaminharam para as motos a fim de concluírem o pacto, com Cândido pensando em que tipo de marginais amadores eram aqueles que nem ao menos tinham revistado a sua mochila, que guardava um revólver carregado. Talvez fosse mais fácil do que pudesse imaginar. Montila fazia bem em mantê-los longe do bando, porque com a inteligência de deficiente mental, se tivessem que bolar um plano, assaltariam as caixinhas do ofertório da igreja para na semana seguinte se confessarem ao padre.

 

— Ei cara, será que eu tenho alguma chance com a sua filha depois que você matar Montila? - Perguntou Nego Bó, com uma cara séria demais para o gosto de Ramiro.

— Aí você teria que me matar também - Respondeu o homem, com um semblante sinistro demais para o candidato a noivo emendar qualquer coisa depois daquela resposta.

— Se vocês querem o ouro que eu tenho, andem com isso, porque eu quero o tesouro prometido, e rápido - Disse, ligando a mobilete e pegando a estrada, deixando os dois para trás, ainda atrapalhados em colocar a motocicleta de maior cilindrada para funcionar, tendo Ramiro quase deixado o revólver cair da sua mão, enquanto encaixava as nádegas doloridas no assento.

 

Em menos de meia hora tinha admitido aquelas duas ratazanas dentro da sua casa, exigindo que ficassem sentados no sofá da sala enquanto ele buscava o pagamento pela informação. Apesar de não estar teoricamente em posição de exigir nada, por experiência sabia que não precisava se preocupar enquanto fosse solícito. Abriu a gaveta do guarda roupas, do lado onde sua mulher guardava as bijuterias e encontrou o que queria. Duas correntes grossas folheadas a ouro que não valia muita coisa, mas polidas como estavam, enganava qualquer um que não fosse um ourives. Foi algo que ela tinha deixado para trás de propósito. Aquilo era herança do seu pai, que era chegado num visual brega para conquistar suas raparigas. Com aqueles balangandãs, somados a uma camisa com estampa de um coqueiral, aberta até o terceiro botão para mostrar os cabelos do peito, calça boca de sino e um sapato de bico fino bem engraxado, ele se achava a última cocada dos bailes. Aquele foi o visual que tinha conquistado a sua mãe, que acreditou até o fim da vida que tinha casado com um irmão apócrifo do Elvis.

 

Ouviu a dupla na sala mexendo na sua televisão, e algo dito por um repórter lhe chamou a atenção. Entendeu que estavam transmitindo algo de grande repercussão, e ao vivo. Por sorte, havia uma tevê preto e branco portátil no quarto, e logo começou a procurar o canal que casava com a narrativa que estava escutando. Entre chuviscos e má sintonia, ele confirmou o nome e o apelido. Era um tal de Rogério, cuja alcunha era Montila. Anotou mentalmente a localização do lugar, abriu a mochila para checar o tambor da arma, respirou fundo duas vezes, e antes de sair do quarto para cometer os primeiros homicídios da sua vida, olhou o porta retrato de Cândida ainda pequena, toda lambuzada de mingau, que estava em cima da penteadeira. Logo acima, o espelho lhe condenava pelo que estava por vir, mas a sua alma ressecada por anos de sofrimento, ganhava motivação para derramar qualquer sangue que estivesse no caminho da sua desforra.

 

O ex-chefe deles já tinha feito alguns reféns, e todo aquele circo armado fazia os olhos da dupla brilhar, como se aquele alvoroço fosse o ápice da carreira de um bandido. Quase não perceberam a presença dele ali no canto da sala, de revólver em punho e pronto para abatê-los. Aconteceu tudo muito rápido, a lâmpada da sala, prestes a queimar, piscou duas vezes, e o primeiro que virou o rosto para encará-lo de frente foi o amputado. Ainda houve tempo de vê-lo sorrir como se fosse uma criança apresentada pela primeira vez a um palhaço, antes de tombar no sofá com um buraco na testa de onde saía a calda derretida de uma maçã do amor. O outro, puxava ar para o seu único pulmão bom, enquanto juntava as mãos como um bom cristão. Antes de lhe acertar no meio do peito, achava que tinha escutado um…’’Deus me perdoe’’. Ele concluiu que até na beira do precipício o menino tinha sido egoísta. Deflagrou mais um disparo no rosto dele, para que o Altíssimo não tivesse o trabalho de identificar e perdoar aquela alma, já há muito perdida. Sabia da sujeira provocada por ele naquela sala. Tal qual uma armadilha de rato, uma vez dentro, não havia como dar marcha ré. Recolheu a arma da mão do rapaz e pegou a chave da moto mais potente. Precisava chegar em um certo asilo, em tempo de participar da festa.

 

Antes de sair, esvaziou um pote de arroz no lixo e sangrou nele a gasolina da mobilete, rumando em seguida para a sua antiga casa, com uma caixa de fósforos no bolso. Ao invés de entrar pelo portão da frente, deu a volta e entrou pela portinhola do quintal. Colocou a gasolina em cima do muro, e pulou para o outro lado. Sabia que a casa estava vazia porque o dono estava ao vivo na televisão. Espalhou o líquido nas portas e janelas de madeira, colocando os pneus velhos que serviam de canteiros de plantas próximos, para alimentar o fogo. Se Montila gostava de atear fogo nas coisas dos outros, é porque ele ainda não conhecia Cândido como deveria. Imitando o gesto do seu inimigo, riscou o palito, acendeu um cigarro e o arremessou em direção ao alvo. Satisfeito com a combustão imediata, correu de volta para o muro e para a moto, vestindo o capacete sem ter dado mais que duas tragadas. Logo a vizinhança estaria em polvorosa, e não queria ser visto. No final do quarteirão já conseguia divisar a altura das chamas e as primeiras pessoas no meio da rua, atarantadas e com as mãos na cabeça. Se o fogo se alastrasse para a sua casa, não teria o que fazer. Era o preço a se pagar.

 

Antes de procurar um lugar discreto para estacionar, deu umas voltas ao redor da confusão para reconhecer o terreno. Havia muitas viaturas com o giroflex ligado, um policial com um megafone negociando, e muitos curiosos que atrapalhavam a sua visão. Pelo que foi dito no noticiário, havia um homem armado fazendo algumas pessoas de refém. Mas até aquele momento não se sabia quais eram as demandas do elemento, que estava muito nervoso. Quando chegava próximo da porta principal, sacudia a arma no ar com uma mão, e agarrava o pescoço de uma idosa interna com a outra. Tinha trancado todas as portas de acesso ao local e alguns funcionários em um banheiro. O que se percebia com clareza era que ele a todo momento gritava com a interna, como se a conhecesse. Ela, por sua vez, encarava aquilo em um alheamento completo, como se estivesse assistindo a um filme, não fosse ela a protagonista dele.

 

Deixou a moto em um bosque, no quarteirão adjacente, e caminhou pela rua lateral ajeitando a camisa para que as armas não ficassem tão aparentes. Contornou o local onde as pessoas se aglomeravam aguardando o desfecho do caso, e seguiu pelo jardim em direção a rua de trás, que acessava através de um pequeno bosque. Rezou para que a polícia não estivesse ali. Mas estava. Havia um cerco por toda a propriedade, com os homens da segurança pública aguardando ordens para invadir. Precisava afastar a polícia da entrada de serviço. Escondido atrás do tronco de uma castanhola, ele notou a presença de um homem negro, atarracado, que parecia estar vigiando o lugar. Aquela figura lhe era conhecida. Resolveu abordá-lo.

 

— Você é o Justino, não é? - Perguntou sussurrando, para não assustá-lo, o que não surtiu efeito.

— Hein?

— Desculpe se te assustei. Sou o Cândido. Você fez a lápide da minha tia Gertrudes ano passado.

— Sim, eu conheço o senhor. Também fui seu cliente no armazém. Que loucura isso aqui! - Comentou, voltando os olhares para a dupla de policiais que estava montando guarda na porta dos fundos do asilo.

— Eu não estou aqui por acaso e também não quero te meter em encrenca, mas tenho contas a acertar com esse sujeito que está tocando o terror aí dentro. Eu mesmo quero acabar com isso aí e dar uma lição nesse sujeito.

 

Justino coçou a cabeça, confuso com as palavras ditas pelo comerciante, que parecia agitado, e pelo volume debaixo da camisa, bem armado. Ele podia usar aquilo a seu favor e libertar Dinorá das garras daquele imbecil.

 

— O que precisa ser feito?

— Preciso que você dispare um tiro ali no meio do bosque para chamar a atenção daqueles dois ali e tirá-los de perto da porta. Essa arma aqui ainda tem três balas. Se quiser, use as três e depois jogue a arma dentro do lago - Disse, estendendo a mão com o revólver.

— Será que vai funcionar?

— É uma possibilidade. Aquele desgraçado lá dentro matou o meu pai e tentou me matar. Se eu não pará-lo ele vai atrás da minha filha.

— Eu vou fazer isso, mas quero que você me prometa ter cuidado para não atingir a velha que está refém dele. Ela é a minha sogra.

— Pois muito bem, trato feito. Se eu não a entregar em suas mãos é porque fui preso ou morto, mas não deixarei que ele faça qualquer coisa com ela, eu prometo. Agora vá logo, antes que cheguem reforços. A arma já está destravada, é só mirar para o alto e apertar o gatilho.

 

Viu-o se afastar, esquivando-se pelos arbustos para não ser visto, com a arma enfiada na calça. Cinco minutos depois, que pareciam ter sido uma eternidade, ouviu três estampidos vindos da direção do lago, que atraíram a atenção imediata dos dois soldados, que por instinto saíram dos seus postos e correram para o bosque. O caminho estava livre. Abaixou-se para pegar uma pedra e caminhou até o janelão que dava para a cozinha, arremessando-a. Com algum esforço, escalou o segundo muro do dia, rezando para que o miserável não tivesse ouvido o barulho dos estilhaços. Já dentro do pátio, foi fácil entrar na cozinha. Desceu da pia e buscou a parede para se proteger e tentar escutar algo. Montila estava na parte da frente, assustado com os tiros disparados à distância, achando que a polícia estava tentando abatê-lo. Com o caminho livre, empunhou o trinta e dois, encheu-se de coragem, respirou fundo e começou a caminhar pelo corredor da instituição.

 

— Isso é por você, pai.


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