JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 29
Capítulo 29




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Às vezes a sua mão tremia, e aquela sensação de que o seu corpo estava gritando por algo que ela sabia o que era, beirava o insuportável. Tinha ciência do que fazer para ter êxito no plano, e até então vinha superando tudo com garbo. Não seria por aquele detalhe que deixaria algo desviá-la do foco. Engoliu o seu calmante e tomou o café sozinha com as crianças, já que Abdias tinha saído bem cedo para ajudar o novo dono da farmácia a manejar o negócio, depois de vendê-lo. A ideia era viajar de carro pelo país sem rumo e sem data de retorno. As crianças ainda estavam pequenas e poderiam recuperar aquele ano sabático.

 

Observava os seus filhos comerem felizes como dois porquinhos da índia, e ainda lhe custava a crer no que estava disposta a fazer. Achava que as coisas se ajeitariam com o tempo e tudo ficaria bem para todo mundo. Para se conquistar algo, sempre havia a necessidade de abrir mão de alguma coisa. Não levava jeito para brincar de mãe de família por muito tempo. Além de cansativo, lhe privava de tudo o que gostava, e era exatamente do que estava abrindo mão. Era cansativo fingir o que não era, camuflar a sua própria natureza.

 

Olhou para o relógio de parede e se assustou. Ele chegaria em pouco menos de uma hora. Queria deixar as crianças sozinhas o menor tempo possível. Numa reação instintiva, pegou a colherzinha da pequena e fez um aviãozinho até a sua boca. Ela aceitou a brincadeira, sorriu e pediu por mais. O irmão, só um pouco mais velho, reclamou do privilégio. Logo ela se pegou fazendo o que nunca tinha feito na vida. Dar a atenção de mãe àquelas crianças. Logo se arrependeu e voltou a utilizar o tom de voz sobressaltado ao qual elas já estavam acostumadas, desde quando não houvesse outro adulto por perto. Levantou para jogar a louça suja na pia sem se preocupar em lavá-la, e foi conferir uma vez mais se já tinha colocado os brinquedos no quarto onde as crianças ficariam. O do casal, onde a fechadura era mais alta e elas não poderiam alcançá-la para sair. Encheu as garrafinhas de água, espalhou biscoitos e ligou a televisão que transmitia desenhos por toda a tarde. Aquilo deveria ser suficiente.

 

Olhou-se no espelho, enquanto analisava a necessidade de passar um batom ou um pó, e constatou que era de fato a Cláudia Fonseca, escarrada de um útero já canceroso. Nunca foi benquista por nenhuma laia da pouca família, e não apareceu viva alma que se dispusesse a pelo menos vaciná-la. Aparecera no mundo como rejeito e sairia dele exalando o mesmo chorume, ao menos para aqueles que achavam que perfume era escancarar um sorriso sem ter motivo para dá-lo. O dela sempre saía enviesado e torto como alguém que tinha sofrido derrame querendo agradecer a outro fulano por ter lhe limpado a bunda.

 

Girou o mostrador três vezes no sentido anti-horário e parou no primeiro dígito da senha. Na segunda volta no sentido horário, parou no segundo número. Voltou a girar no sentido contrário e parou sobre o terceiro dígito, girando a manivela em seguida. As crianças estavam sonolentas por causa do suco de maracujá e já não se ouvia nada vindo da cama de casal. Dentro do cofre, vislumbrou o butim. Não eram promissórias, ou títulos por compensar. Todos os negócios feitos por Abdias envolviam numerário, e ali estava o resultado da venda da farmácia e da casa, em notas novas, cujos maços dobrados ao meio por elásticos, ela cheirava como se fosse a única fragrância que apreciava na vida. O da liberdade, que aquele verme abatido a tiros na farmácia fez chegar às suas narinas, quando a tirou de trás das grades.

 

Conseguiu o emprego na pedreira porque não foi necessário levantar a sua vida pregressa. Ali havia mais demanda que oferta, afinal os arranha céus precisavam brotar para enfeitar os cartões postais das metrópoles, e aqueles pedregulhos eram adubos de concreto. A cozinha era a sua posição natural já que no orfanato se destacou pela habilidade em descascar cebolas aos sete anos sem derramar uma única lágrima. Achava que seus canais lacrimais eram entupidos de nascença.

 

Pegou uma folha de papel em branco e ficou burilando os dedos na mesa olhando para o lápis sem nenhuma vontade de explicar qualquer coisa. Era como um atestado de culpa que no final implorava por um perdão que nunca viria. Não queria dar ciência, por exemplo, que antes de trabalhar na pedreira tinha sido presa por vender cola de sapateiro para menores de idade dentro do orfanato em que fora criada e depois se tornou funcionária. Também não desejava que soubessem que o homem que Abdias tinha abatido era um policial corrupto que arranjou a sua fuga da penitenciária na condição de ela ser sua concubina. Não saberia dizer quem eram os pais dos seus filhos, já que o programa favorito do miserável era vender o corpo dela para os outros se divertirem na sua frente. Não se sentia vítima de nada, era apenas um ser humano fora dos padrões, que em algum momento da vida achou que pelo atalho chegaria mais rápido. Mas, chegar aonde?

 

Carregava poucas peças de roupa na mala, já que o maior espaço era destinado ao dinheiro. Olhou pela última vez as crianças em sono profundo, apagou a luz do quarto e fechou a porta. Evitou o sentimentalismo atravessando a casa sem olhar para canto algum. Fechou a porta da rua sem trancá-la, e assim o fez com o portão. Protegida pelo escuro da noite, ainda no seu início, certificou-se de que não havia nenhum bisbilhoteiro por perto antes de pôr os pés na calçada. A farmácia deveria fechar em quinze minutos e as crianças não ficariam muito tempo sozinhas. Andaria até a avenida perimetral, onde acharia facilmente um táxi. Precisava de uma picada. A abstinência a estava levando à loucura. Sabia onde encontrar. O produto era caro. Levou de casa uma colher. Já tinha trazido uma seringa e um garrote de borracha da farmácia. Precisava comprar um isqueiro.

 

As suas roupas comportadas, sempre em mangas de camisa, até mesmo os pijamas, objeto de riso de Abdias, sempre foram para esconder as suas veias maltratadas por agulhas, e não marcas de violência do ex-marido, como dizia. A princípio achou que Justino pudesse cumprir o papel de tutor dos seus filhos como uma forma de agradecimento pelo jazigo perpétuo dado para sepultar o seu irmão. Na verdade, tinha mentido a ele quando disse que fora um presente bizarro pelo término com um ex-namorado. Surrupiou o título do marido que tinha adquirido aquilo como um jeito macabro de lhe imputar medo, e que fora providencial a alguém a quem tinha afeto. Justino era um bom homem. Bom demais para ser dela, assim como Abdias. Precisava ir para bem longe daquela cama morna, do homem caridoso, dos seus filhos inocentes, e do lar. Aquela vida perfumada já a estava transformando em uma parasita de si mesma.

 

Se alojou num hotel mequetrefe no centro da cidade, onde sabia que poderia conseguir o que queria bem rápido. O próprio recepcionista se mostrou solícito depois que ela abaixou um pouco o decote. Sua preocupação seria proteger o dinheiro enquanto estivesse alucinando. Tateando pelo colchão cheio de molas soltas, percebeu que ele tinha um talho horizontal na lateral da cabeceira, como se fossem rechear um sanduíche. Alguém já teve que esconder algo ali. Separou algumas notas, depois foi enfiando os maços pelo buraco que engolia o seu braço até o ombro. Recolocou o colchão no estrado da cama, empurrando-a para perto da parede. Sentiu-se segura para descer até a recepção e negociar. Em seguida saiu para comer algo e preparar o corpo para a jornada.

 

Escolheu um boteco no qual o dono havia lhe dado o seu primeiro emprego há muitos anos atrás, logo depois que saiu do orfanato e alugou um quarto. Não havia o risco de dar as caras com alguém conhecido, já que a sua ficha criminal começou a ser preenchida depois de ter saído de lá. Enquanto esperava o seu prato de arroz, feijão e bife com batatas fritas, assistia ao plantão do noticiário na televisão pendurada na parede. Na transmissão ao vivo, o repórter falava algo sobre reféns em um asilo, não tão distante dali. A imagem tremida não conseguia focar direito na cara do sujeito que estava causando todo aquele tumulto. No momento em que o câmera parou de correr, já mais próximo da cena, conseguiu fechar a imagem no meliante, e Cláudia parou o garfo a meio caminho da boca com um pedaço de bife, tendo certeza de que aquele rosto era conhecido. Impressão confirmada, quando o Sr. Manuel, o dono do boteco que também assistia, se pronunciou.

 

— É ele! Aquele borra botas! O que violentou a moça! Foi aqui no beco de trás do bar! O tal Rogério! - Gritava com o seu sotaque português, batendo no balcão, enquanto Cláudia, que tinha trabalhado na mesma época em que ocorreu o caso, lembrou da fisionomia do colega de trabalho. Um sujeito franzino de voz grossa, e cheio de segredos.

 

Ela preferiu terminar o seu jantar de cabeça baixa para que o Sr. Manuel, com a sua memória elefantina, não tivesse a mesma reação no caso dela aparecer na televisão amanhã, como suspeita de atos tão hediondos quanto o do ex-funcionário estuprador. Dispensou o café de cortesia, e depois de pagar a conta acelerou os passos até o muquifo onde estava hospedada. O letreiro da fachada estava torto e somente metade das letras do nome do estabelecimento ainda piscavam. Aquele lugar poderia meter medo em uma mulher sozinha, mas não nela.

 

O funcionário da recepção atendia um casal recém chegado que parecia apressado em subir para o quarto, mas lhe deu uma piscadela de longe. Aquilo significava que ele estava de posse da sua passagem para outra dimensão. Apalpou os bolsos, não só para ter certeza de que o isqueiro que tinha comprado no bar estava ali, mas também para acalmar as mãos inquietas. O casal, que estava em situação de pré-libidinagem à sua frente, finalmente foi liberado para subir as escadas e também subir um em cima do outro dentro do quarto. Recebeu um envelope, que nem procurou conferir o conteúdo, subindo depressa para a suíte presidencial da pocilga. Depois de suportar tantos calafrios e sudoreses, estava pronta para o seu passeio.

 

Após tomar um banho e vestir um pijama estampado com macaquinhos, e disposta a voar pelas copas das árvores mais altas, esquentou a pedra na colher usando o isqueiro. Depois de se liquefazer, aspirou com a seringa e apertou o antebraço com o garrote de borracha. Conseguiu achar a veia na segunda tentativa. Ainda não tinha perdido o jeito. Injetou o líquido morno dentro de si, soltando a tira de borracha em seguida. Se deitou já experimentando um leve torpor causado pelo opiáceo. Logo, um bem estar instantâneo lhe cobriu como um cobertor macio e quente, levando-a a um relaxamento causado pelo efeito narcótico que ela conhecia muito bem. Era como se em cada picada recebesse um buquê de papoulas vermelhas com um cartão escrito pelo diabo.

 

Estava enrolada no cobertor em posição fetal, ao mesmo tempo em que sentia o corpo boiar em um líquido, fazendo o seu corpo girar em torno de si. Estava nua e se sentia aprisionada. Chutava o cobertor que lhe parecia uma parede maleável. Estava escuro e ouvia vozes distantes. Uma delas pedia calma e a outra gritava de dor. Algo estava alterando o seu habitat. O ar que vinha por um duto, agora vinha carregado de sujeira. Ela já estava grandinha e podia muito bem se virar. Não seriam interferências externas que fariam ela interromper o seu destino. Lutaria pelo seu espaço, pelo direito de conquistar a luz. O cobertor sofria espasmos, como se quisesse cuspi-la dali, mas com braçadas vigorosas se manteve longe do buraco negro que queria sugá-la para fora. Já exausta, percebeu que tinha vencido a luta, e quando de forma natural quis sair de dentro do cobertor, viu a luz. Alguém lhe bateu na bunda, a fez chorar e a levou para longe de quem mais a odiava. A sua mãe.


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