JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 28
Capítulo 28




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Só conseguiu abrir as pestanas, ainda pesadas, porque sentiu um cheiro de café recém coado. A cabeça ainda lhe doía das duas ressacas. Da moral, e da etílica. Segurou a xícara com as duas mãos trêmulas, fazendo um sinal de agradecimento a Vilma, que admirava a beleza da jovem escondida por trás daquele estado deplorável.

 

— Eu trouxe algumas peças de roupa pra ver se dava em você. Sei que não temos o mesmo estilo e idade, mas acho que dá pra você chegar em casa - Disse a vizinha, levantando no ar um vestido verde musgo, com mangas bufantes e babados salientes. Era como Patrícia se vestiria para ir a uma missa de sétimo dia.

— Você é um anjo! É namorada do meu pai? - Perguntou de supetão, como era próprio dos jornalistas, vendo a moça velha engasgar com o café quente.

— Somos apenas vizinhos. De vez em quando a gente se estranha com besteira, mas no final a gente se esforça pra se entender. Eu pelo menos. Você sabia que a sua mãe estava aqui até essa madrugada, pouco antes de você chegar?

 

Agora tinha sido a vez de Patrícia se engasgar, deixando umas gotas quentes caírem na sua perna. Será que os pais tinham reatado o casamento? Como ela não ligava atrás de notícias fazia um tempo, as notícias estavam vindo atrás dela. Estava se saindo uma péssima jornalista, péssima filha e péssima mãe. Não podia ser boa em tudo, mas aquilo já era se esforçar demais para sabotar o que restava da sua vida familiar.

 

— Ela estava acompanhada de uma garotinha linda, de nome Cidinha. É sua sobrinha? - Perguntou outra vez, vendo a moça emudecer e voltar a se deitar, alegando dor de cabeça. 

 

Vilma saiu do quarto sabendo que tinha caroço naquele angu, mas deixou a moça descansar até o pai chegar do cemitério. Na lavanderia encontrou algumas mudas de roupa suja de Balduíno e resolveu lavar para passar o tempo, enquanto colocava um arroz no fogo. Seu feijão era horrível, mas Conceição tinha deixado uma feijoada pronta. Jamais pensou em comer a comida da ex-mulher do seu futuro pretendente. Cheirou a cueca dele, e ao invés de colocá-la de molho no tanque, guardou aquela peça na intenção de fazer uma mandinga com Agda. Queria amarrar aquele sujeito de qualquer maneira, mas nesse meio tempo ia entrando na vida dele na pontinha dos pés.

 

Desejava aquele coveiro dentro de um limite perigoso, sem se importar em pisar no pântano que era a sua vida. Com uma cesta de guloseimas e um capuz vermelho, ela achava que podia atravessar a floresta sem topar de cara com o lobo mau. Se aquilo era doença ou fetiche, não sabia. O que sabia é que era obsessiva por aquele espécime de macho sem modos, que batia a porta na sua cara, com a testosterona a borbulhar nas veias. Enquanto esfregava a boca de uma calça velha suja de terra de alguma cova aberta por ele para recheá-la com algum restolho humano, ouviu baterem à porta. Como tantas vezes ele tinha feito com ela própria, estava pronta para batê-la nas fuças do importunador da vez. Era o apontador de jogo do bicho que tinha cara de rato, assustado com a sua presença naquela casa, informando que Balduíno tinha acertado o milhar do veado na cabeça. Voltou para os seus afazeres, dando uma espiada no quarto para ver se estava tudo bem, e se perguntando com o que Balduíno teria sonhado para fazer uma aposta naquele animal. Vai entender a cabeça dos homens chucros.

 

Vilma nem sonhava muito, mas o diabo era crer na salvação depois de ter usado aquele consolo do demônio. Como um vento que soprava inocente numa praia deserta, ela se via sendo condenada por importunação da paz alheia de um homem que tinha um trabalho digno e a repelia, enquanto sua sanha de persegui-lo, lhe tirava a paz. Por um momento parou de esfregar aquela mancha perto do zíper da bermuda. Aproximou do nariz e cheirou apenas para descartar aquilo como produto do pagamento pelo feijão de Conceição. Recriminou-se, desejando ser empalada na areia da praia pelo mastro que segurava a bandeira com alerta de tubarões na água. Sabia que era um ponto fora da curva, mas qual entorpecente aquele homem ingeria para não perceber que ela já tinha capotado por ele fazia tempo?

 

Ele chegou sujo daquela terra de compostagem própria para dar vida aos vermes que gostavam de carne podre. Arrancou quase tudo da roupa ainda na porta, e com um excesso de cavalheirismo lhe deu um beijo na testa, perguntando pela filha e esticando o pescoço como uma girafa para dentro do cômodo escuro. Ela, por sua vez, foi esquentar a comida para o ‘’seu’’ homem, que ficou impressionado com a quantidade de roupa lavada pendurada no quarador, nos fundos da casa.

 

— Quase que levei a metade pra secar lá em casa por falta de espaço - Pontuou, colocando a mão por trás da roupa ajeitando a cueca escondida.

— Conceição não teve tempo pra isso devido aos problemas que Cidinha teve - Explicou, já dando uma fuçada nas panelas.

— De quem é a menina?

— A mãe tá ali deitada, mas às vezes acho que a menina é do Espírito Santo - Lamentou, sentando para comer o prato que Vilma tinha feito para ele, enquanto de soslaio observava que a quantidade de pó nos móveis da casa tinha diminuído.

— Você não precisa fazer o serviço da casa. Te pedi apenas para olhar a minha filha e te agradeço por isso.

— Sua filha não é um bebê e me dá bastante tempo para fazer outras coisas. Se você notou é porque é um homem detalhista.

— Sim, eu sou. O que é isso aí atrás fazendo um volume atrás da sua roupa. Algum caroço que precise operar? - Perguntou, com um ar divertido, levando a primeira garfada da comida à boca.

 

Nada abaixava a cabeça de Vilma, exceto um flagra dado por aquele homem. Depois de atrasar a resposta para não gaguejar ou falar algo imbecil que ficasse gravado na pedra para toda a eternidade, ela respirou fundo e meteu a mão pelo cóccix para retirar a cueca destinada a simpatia nada inocente a que estava destinada. Logo sentiu uma mão no seu queixo a levantar-lhe a cabeça. O que viu nos olhos do coveiro era vida pura. Ficou tentada a avisar-lhe que o veado lhe tinha dado algum dinheiro, mas era a vaca dentro dela que bagunçaria a sua cabeça.

 

— Como ela reagiu? - Perguntou mais para evitar o constrangimento, já que percebeu numa rápida olhada que a filha estava sendo bem tratada.

— Sua filha é linda. Não vou fazer perguntas constrangedoras, mas ela não sabia que a mãe estava aqui?

— Essa é uma delas.

— Umas delas o que?

— Perguntas constrangedoras.

— Eu sei que não tenho o direito de me intrometer, mas se estou aqui é porque estou tendo serventia, não é?

 

Ele largou os talheres no prato fazendo barulho, se levantou e andou até a porta, abrindo-a e fazendo uma pose de ator canastrão de um drama de baixo orçamento, e que pareceu ter surtido efeito. Antes de sair contrariada, ela mirou naqueles olhos mortiços sem nenhum sentimento ruim, apenas queria deixar ali um sentimento de dever cumprido. No momento em que ela saiu, ele se arrependeu. Havia muitas coisas com o que lidar, e uma delas era o fato de estar perdido e sendo ingrato com quem tinha lhe estendido a mão. Sua vontade foi de correr atrás dela e arrastá-la de volta até ali, falar dois palavrões apenas para parecer que estava no comando e depois se ajoelhar para cometer o pecado da submissão, lamentando saber lidar mais com gente dos lábios arroxeados e costurados e com algodão no nariz e ouvidos. Entretanto, apenas acompanhou a sua marcha raivosa pelo beco, entrando em casa e batendo a porta com uma força desproporcional tal, que teve a impressão que o burburinho da vizinhança cessou por uns segundos, aguardando um rosário de impropérios que não veio.

 

Aspirou suas roupas penduradas no varal sem sentir nada por causa do olfato morto, e notou que aqueles trapos nunca tiveram um tratamento daquele nível. Fora ingrato, mas nunca tivera tato pra lidar com gente de gênio forte. E justo falando daquele tipo de criatura, Patrícia lhe chama pelo nome. Não o de batismo que odiava, mas pelo substantivo que estava escrito naquele papel entregue por Justino, e que era música para os seus ouvidos.

 

— Pai! - Chamou, com a voz roufenha, após ouvi-lo se digladiando com a mulher que cuidara tão bem de si.

 

Depois de um dia exaustivo em que teve que servir de guia para que alguns filhos encontrassem as ossadas dos seus pais, escutar aquilo com um coração batendo dentro do peito, trazia as lembranças do dia em que Patrícia, sua filha, fora confeccionada. Ele e sua esposa à época fornicavam como ratazanas apressadas em povoar o planeta. Incontáveis vezes precisou caminhar até uma farmácia mais longe para comprar pomadas de assadura. 

 

Mas foi numa tarde em que a professora adoeceu e eles aproveitaram que não haveria aula para pular a cerca da fazenda de Zé Bisonho, o homem mais rico de Sabugueiro. Foi debaixo de uma mangueira carregada de frutos que gastaram toda a sua energia se atracando um com o outro, até esgotar as forças. Concinha, uma moça de olhos miúdos e feições mestiças, de corpo magro e comprido, ainda não sabia, mas estava no auge da ovulação e foi fertilizada deitada ali naquela relva ainda orvalhada.

 

— Você quer conversar? Falar o que aconteceu e como você foi parar na casa de Justino. Eu já tinha minhas desconfianças, mas você sempre foge de qualquer conversa - Disse, colocando a mão na testa da filha para ver a temperatura.

— Falamos disso depois. Porque minha filha estava aqui com a minha mãe?

 

Ele olhou sério para ela e excomungou Vilma pela língua grande. Falaria a verdade.

 

— Cidinha sofreu uma queda na escola e veio parar aqui no hospital geral. Mas já está ótima. Já me chama de vovô e tudo.

— E porque não me ligou?

— Acho que você já tem problemas demais, não é mesmo? Olhe o seu estado, parece que foi cuspida de dentro da boca de um tubarão, toda estropiada.

— E acho que os meus problemas só estão começando - Pensou alto, fazendo com que Balduíno se levantasse e buscasse a quantia devida a ela pela operação contratada pela universidade, que ela desconhecia.

— Esse é o valor da venda do tal tesouro?

— É sim - Talvez ajude você a sair da sua encrenca - Ponderou, sem saber que os perrengues da filha não envolvia dinheiro.

— Estou com fome - Disse, sentando-se para guardar o dinheiro no bolso da calça Lee emprestada de Vilma, a única que se arriscou para vestir.

— Vá tomar um banho que vou esquentar o feijão. E pense sobre a possibilidade de tirar uma folga e ir ver a sua filha.

 

Ela entrou debaixo da água fria sabendo que teria que encarar Peixoto. A sapatona deve ter rodado um documentário durante a sua exibição explícita e entregue os melhores momentos ao seu namorado e chefe. Ela estava encrencada. Na melhor das hipóteses perderia somente o namorado. Na pior, teria que rodar bolsinha na esquina pra sobreviver. Pelo menos tinha um belo corpo e sabia usá-lo como ninguém. Com aquela grana poderia viver uns meses sem precisar trabalhar. Talvez aceitasse a sugestão do seu pai e fosse passar uns dias perto de quem deveria amar, e por algum motivo, não conseguia.

 

Depois de dar duas colheradas no prato de comida, despediu-se de Balduíno e foi para a oficina buscar o seu Monza. Antes de sair do beco para pegar um táxi, caminhou até a casa de Vilma para agradecê-la, Antes de encostar a mão para bater na porta, ouviu gemidos vindo do lado de dentro, e que fazia a alegria do povo que passava rindo pelo local.

 

— Se eu fosse a senhora, deixava essa visita pra outra hora. Vilma a essa altura já está é subindo pelas paredes igual lagartixa - Brincou uma vizinha debruçada na janela, com o  semblante retorcido de inveja e doida pra saber como fazia para incorporar aquela pomba gira.


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