JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 27
Capítulo 27




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‘’Antes que eu me esqueça, deixarei a maior prova do meu relato e que poderá te causar engulhos, na estante do meu escritório, atrás da enciclopédia, na última prateleira, onde ninguém…’’

 

Ele abriu o dicionário antes de ir atrás do tal objeto para saber o que ele poderia lhe causar, e procurou a palavra com a letra ‘’e’’, passando a ponta do dedo indicador pelo amontoado de letras miúdas.

 

engulho

substantivo masculino

 

1.sensação de enjoo, náusea; ânsia de vômito.2.sentimento de asco, de repugnância; desprazer.
"não conseguia esconder o e. que aquilo lhe causava"

 

 

Só lembrou de ter sentido o tal engulho apenas uma vez, quando ainda era bem criança ao chegar perto do corpo de um homem que morreu no campinho jogando futebol. Os olhos do morto estavam esbugalhados e havia um mau cheiro de urina e fezes. Não fazia ideia do que o pai queria lhe dizer, mas tinha que ir atrás do que aquela mulher infame o tinha feito. Fosse o que fosse, já a tinha como alvo da sua vingança.

 

Apoiou a escada na estante de madeira, tão alta quanto o pé direito da casa. Se alguém precisava esconder algo, seria no lugar mais inacessível, já que a sua mãe jamais deixou que alguém tocasse naqueles livros. Ele nunca teve qualquer interesse, já que não tinha leitura. Imaginou o seu pai descendo aquelas escadas, ainda muito ferido, e saindo de casa para nunca mais voltar. A enciclopédia era enorme e possuía muitos volumes, então começou a retirar os primeiros tomos para ver se havia algo por trás. Chegou até a metade sem sucesso. Precisou descer da escada e reposicioná-la para tornar a mexer nos livros. Próximo do fim, e achando que alguém tivesse achado o objeto antes dele, viu uma caixa de jóias situada atrás dos três últimos volumes. Segura-a com cuidado e volta para o chão, levando-a para o seu quarto, onde sentou-se na cama, ao lado da carta escrita num português erudito com letras tão belas quanto as de um caligrafista. Aquilo estava escondido há anos. Desatou o barbante que prendia a tampa e abriu a caixa. Ali dentro havia um pequeno pote de vidro com um líquido, e repousado no seu interior, havia algo que a princípio não soube identificar ou associar ao que o seu pai havia explicado na carta. Pareciam dois olhos achatados e sem pupila, fora das órbitas, acinzentados e com aspecto enrugado que flutuavam no formol. Não sentiu o tal engulho. Voltou ao trecho da carta e abriu o dicionário outra vez.

 

1. Castração

 

Ablação dos órgãos genitais do homem, que pode ser de três tipos diferentes : amputação dos testículos ou da bolsa escrotal, deixando intacto o pênis; amputação do pênis, deixando intacta a bolsa escrotal e a emasculação total, cortando fora o pênis e a bolsa escrotal.

Montila desviou a atenção da leitura, ainda desnorteado, e voltou para o frasco, aproximando-o bastante do seu rosto. Aquilo fora arrancado do meio das pernas do seu pai pela cafetina. O sangue começou a lhe subir para a cabeça, o que o fez pensar em cometer mil desatinos distintos. Vestiu uma calça e uma camisa, escorreu todo o formol do pote no vaso sanitário, e colocou o seu conteúdo dentro de um pequeno saco de lixo. O lugar aonde iria era um pouco distante, mas ele sabia onde conseguir um transporte para chegar mais rápido. Bateu a porta de casa com sangue nos olhos, com o ódio a lhe consumir o pouco de juízo que lhe restava. Dez minutos depois estava ao volante da Caravan do Sr Desidério. Daquela vez não houve roubo, apenas coação.

 

Estava em busca da segunda vingança em menos de uma semana. Não saberia muito bem como lidar com uma velhota que por acaso tinha capado o seu pai do mesmo jeito que se fazia com um porco. Estava pensando no que arrancar da idosa para compensar, já que nem a dignidade ela tinha mais. Sofria da doença do esquecimento e usava fraldas. Talvez fosse um problema se ela não reconhecesse o que tinha feito com o Dr. Cassandro. Teve uma ideia que ficou matutando enquanto dirigia em alta velocidade, passando as marchas com a mesma mão que segurava um cigarro aceso. De vez em quando olhava pelo retrovisor o saco de lixo que rolava de um lado para o outro no banco traseiro. Sentiu o seu saco escrotal se encolher por reflexo, com os testículos indo se abrigar mais acima.

 

Nos anos que se seguiram aquela tragédia, ele cresceu ouvindo da mãe e dos vizinhos que a culpa era daquelas duas. No início alguns repórteres vieram bater na sua porta atrás de alguma declaração da esposa traída e abandonada, que nunca os atendeu. Curiosamente os casos sumiram das rádios e dos jornais, principalmente aqueles que tinham apetite pela desgraça alheia. Lembrava bem da cara ossuda de um daqueles abutres, dentes manchados de nicotina, óculos fundo de garrafa e um suor azedo, que disfarçava usando um perfume forte a base de almíscar. Aquele sujeito era insistente e de alguma maneira descobriu a existência do filho mais velho e proeminente da pobre senhora traída e abandonada pelo tal advogado, protagonista da noite do leilão. O Dr. Eliseu se tornou amigo do tal Peixoto, e quando certa vez Montila se viu encrencado no Jardim Bagdá e prestes a ser preso pela polícia ou morto pela gangue rival, foi Peixoto quem arranjou um emprego em um restaurante no centro da cidade, de onde ele desapareceu três meses depois sem dar satisfações ao dono, voltando para o Jardim Bagdá, onde as coisas já estavam mais calmas à época.

 

Aquilo era só uma porcaria de um asilo, mas parecia um playground. Aparecia gente vestida como se fosse embarcar em um avião a jato pela primeira vez, com as prestações do carnê carbonado saindo pelo bolso da japona. Chegava gente com bolos, presentes em laços de fita, crianças birrentas que só podiam ser netos forçados a deixarem o aconchego dos seus condomínios para ouvirem com suplício as histórias dos seus avós adoentados, entrecortadas por tosses catarrentas.

 

Naquela manhã havia quase uma procissão de entes queridos carregando uma tonelada de culpa. Entre escolher dar uma passadinha rápida no cemitério para acender uma vela, ou pousar um ramalhete comprado às pressas na floricultura lotada. Sentiam-se sortudos por terem um depósito de gente velha viva para interagirem com tortas salgadas com pouco sal e quindins com baixo teor de açúcar.

 

Montila gostava da violência, de subjugar, manter o controle da situação, mas não lhe agradava a visão do sangue escorrendo. Quando pensava na origem do trauma sentia vergonha. Depois que sua mãe tratava e temperava bifes de fígado bovino, a cozinha parecia ter sido palco de um homicídio dada a quantidade de sangue espalhado por toda a extensão da pia. Era óbvio que não comia vísceras, e os seus bifes eram quase sempre queimados. Seu maior pesadelo era necessitar tirar sangue para fazer algum exame. Teria que matar a enfermeira depois, temendo que toda aquela sua pose de moleque mal encarado caísse por terra com a sua possível reação.

 

Sentado no banco do motorista do veículo ‘’emprestado’’, associou os ovos necessários para fazer os quindins que uma netinha levava toda faceira para um suposto vovô que ainda deveria ter os bagos intactos, com o par de ovos que segurava dentro de um saco de lixo, extraídos de alguém que amava doce. Era apenas um pivete desordeiro e menor de idade que já tinha experiência de um jovem adulto. Essa deveria ser a imagem que faziam dele, mas a imagem que fazia de si próprio era bem diferente. 

 

Abriu o porta luvas e retirou de dentro um trinta e oito niquelado que reluzia sua cara amarrada no tambor carregado. Nunca tinha sido preso na vida, mas naquele dia teve uma impressão ruim, não só pelo beco sem saída no qual estava entrando, mas também pelo que já tinha aprontado e que já estava acumulado para cobrança. Guardou o ‘’toca terror’’ na cintura com o cabo enterrado por dentro da camisa de tergal vermelho já banhada de suor, bateu a porta da Caravan sem trancar e se misturou no meio daqueles turistas de asilo que mal sabiam que a morte flutuava por ali naquele momento, sedenta para sequestrar as almas daquelas ‘’crianças’’ de oitenta anos de idade, com um prontuário de pecados mais comprido que as explicações que os pais tinham para os filhos sobre o porque os dentes de vovó dormiam dentro de um copo com água, e os deles, não.

 

—-

 

Depois de algumas explicações dadas por ele, na maior parte do tempo de cabeça baixa, se amaram como o soldado que volta da guerra para os braços da esposa após meses de ausência. Fizeram promessas de parte a parte, jurando não quebrá-las. Saíram de mãos dadas para o cemitério, e no caminho ela cruzou com um cliente que estava a caminho do casarão, mas desistiu quando testemunhou a cena. A Maison tinha fechado as portas definitivamente para o deleite de marmanjos. O seu corpo agora era morada daquele amor, e somente um homem tinha o direito de explorá-lo a partir dali, a despeito de muitos saberem descrevê-lo com riqueza de detalhes.

 

— Obrigado por me fazer companhia no dia que mais me sinto sozinho - Agradeceu a Samira, que depois das aulas de maquiagem com Janice, parecia ter rejuvenescido dez anos.

— A agradecida aqui sou eu por não caber em mim de tanta felicidade. Até me dá medo. Não sei se vou conseguir tirar esse sorriso da cara num dia tão triste para você. É tão estranho - Disse, enquanto encostava a cabeça no braço do seu Sansão.

— A minha cabeça ainda não conseguiu raciocinar direito com tanta coisa acontecendo. Nós precisamos decidir tantas coisas juntos que nem sei por onde começar.

— Eu sei, não se preocupe. E assim que sairmos daqui, vamos para o asilo visitar a Dona Dinorá. Quero te apresentar a sua sogra. Só espero que ela me reconheça - Concluiu, suspirando com uma ponta de tristeza, ao mesmo tempo em que achava que era uma oportunidade a não ser perdida.

— Vou adorar conhecê-la.

 

A casa dos mortos estava lotada de parentes órfãos de entes queridos. Depois de alguma dificuldade para cruzar a multidão, alcançaram o túmulo de Jacinto, onde oraram juntos e acenderam velas. As flores já tinham sido trocadas no dia anterior como ele fazia todos os anos para evitar os preços exorbitantes das floriculturas no Dia de Finados. Notou de longe, a Veia Guida ajoelhada diante de um túmulo vizinho. Achou estranho, já que até onde sabia, ali tinha sido enterrado o marido de Patrícia. Resolveu se aproximar, enquanto Samira retirava algumas flores murchas de um vaso.

 

— Dona Guida? - Interrompeu-a do torpor em que se encontrava, já que não se alimentava desde a noite anterior, e encarava aquele jejum como parte das ordens.

— Ããã! Oi Justino, meu filho. Não vi você chegar, estava aqui rezando - Respondeu, um pouco assustada com o aglomerado de gente que passava pelos corredores do cemitério, com uma mão a tapar o sol dos olhos, que estavam fechados fazia muito.

— A senhora conhece o cidadão que foi enterrado aí?

— Não, não. Só apareci aqui por saudade da minha família, que nem lembro mais onde foram enterrados. Então escolhi uma alma para confortar - Mentiu, já se ajeitando para ir embora.

— Fiquei sabendo que esse moço aí morreu porque injetou chocolate nas veias. Pense bem num negócio desses! O que deu na cabeça desse cidadão pra se matar desse jeito? - Revelou, vendo a velha começar a ficar atarantada, pedir licença e ir embora numa agonia visível, batendo-se com o povo que chegava, tendo ela rumado no sentido oposto ao fluxo, em direção a saída, dando bengaladas.

 

Justino esperava que não fosse algo do que tinha dito, senão se sentiria culpado. No próximo treino de capoeira pediria desculpas. Quando deu-se por satisfeito, saíram daquele tumulto e foram para casa tomar banho e trocar de roupa. Era o início de uma nova etapa nas suas vidas e com o pouco que ganhava conseguiria segurar as despesas até Samira arranjar um emprego ou vender o casarão. Ela havia dito que aquele lugar não lhe trazia boas lembranças. Não haveria empecilhos para tramitar a documentação do imóvel, já que Dinorá fizera uma doação formal para o nome da filha e não havia mais herdeiros. Comprariam uma casa apenas um pouco maior do que a que Justino morava, com um quarto a mais, somente para o caso de ela mudar de ideia e querer ser mãe um dia.

 

Ela colocou um vestido de cor clara e casual e ele fez questão de vestir uma calça e uma camisa de manga comprida, explicando para ela que a ocasião exigia tal indumentária. Sentiu-se estranho metido naquilo, mas faria um esforço para fazer boa figura diante da sogra, que mesmo lelé da cuca, não merecia menos que aquilo.

 

— Acho que você se perfumou demais, meu amor! - Ela brincou, cheirando toda a extensão do braço dele, enquanto pediam o ponto de parada para descerem do ônibus.

— Melhor pecar pelo exagero. Já pensou a cara da minha sogra se eu não causar uma boa primeira impressão? Mas me diga, eu tô bonito? - Perguntou, inseguro, apoiando-a com uma das mãos para que ela descesse os degraus.

— Você está lindíssimo, mas aquilo ali é que não está nada bonito - Disse, chamando a atenção dele para o fato de ter três viaturas da polícia estacionadas na porta do asilo e uma movimentação estranha.

 

Enfermeiros, médicos e o pessoal da administração, bem como alguns internos, corriam para fora do prédio. Alguns amparados por visitantes ou os próprios parentes, e outros em cadeiras de rodas que eram empurradas por funcionários. Os policiais formavam uma linha, posicionados atrás das viaturas. Samira buscava pela mãe com os olhos correndo por todos os rostos que saíam. Não estavam deixando que ninguém se aproximasse. Pensaram a princípio se tratar de um incêndio, mas não havia fumaça em lugar algum. Quando Samira criou coragem para quebrar o cordão de segurança, ela viu o sujeito. Montila apontava uma arma para a cabeça de Dinorá, enquanto a outra mão empurrava a cadeira de rodas. A idosa parecia alheia e se divertindo com tudo aquilo, enquanto ele gritava que só se entregaria depois que a instituição fosse esvaziada. Justino segurou o braço de Samira, que queria partir para cima do criminoso.

 

— Eu não sei quais são as intenções dele e o porquê disso tudo, mas sou eu quem vai resolver isso. Não saia daqui e me espere - Prometeu, saindo de perto dela antes que ela protestasse, vendo-o sumir pelo jardim que ficava na lateral do prédio e dava acesso a entrada de serviço. Ainda o viu soltar um beijo de longe e ler os seus lábios que diziam.. EU TE AMO.


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