JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 24
Capítulo 24




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Não era raro sentir medo de estar dentro de um sonho e acordar de repente, mas também se esforçava para aquilo não lhe tirar a paz. Algumas noites os pesadelos eram inevitáveis e acordava tateando a cama até as suas mãos encontrarem o corpo quente dele. Era real tudo o que ela e as crianças estavam vivendo. Não precisou beijar sapos ou ser salva das garras de alguma bruxa má por um príncipe para viver o seu conto de fadas. Queria tanto ter uma família, e naquele momento estava cuidando da sua. Abdias se desdobrava para agradá-la, e já tinham deixado de lado a relação patrão funcionária. Assumiram a união, e agora viviam como marido e mulher. No início as crianças não sabiam como tratá-lo, mas naturalmente começaram a chamá-lo de pai, apesar de já ser avô de netos que nunca viu. O farmacêutico optou por não comunicar nada aos filhos, já que de lá nunca vinha notícia alguma. Não precisava dividir a sua felicidade com mais ninguém.

 

Naquele dia, fecharam a farmácia no horário habitual, mas permaneceram no seu interior para fazer um balanço e reposição de mercadorias. As crianças dormiam na sala de enfermagem, enquanto trabalhavam. Estavam animados com o aumento das vendas, grande parte devido a esfuziante simpatia de Cláudia com os clientes e a paciência que tinha com os mais idosos.  O estabelecimento vivia dias gloriosos de bonança, tanto que ele já estava querendo trocar de carro e reformar os quartos das crianças com uma decoração mais adequada ao tema infantil. Faziam planos como adolescentes, e até uns folhetos de agências de viagens passeavam pelo balcão, pois já pensavam nas férias de verão.

 

— Vamos precisar repor alguns produtos antes do previsto - Disse ela com entusiasmo, enquanto ele abria caixas para repor as prateleiras.

— Nunca vendi tanto remédio na minha vida. Ou o povo tá adoecendo mais, ou a concorrência fechou as portas. Mas a verdade é que você faz toda a diferença - Elogiou, virando-se para ela do alto de uma escada, quase se desequilibrando.

— Cuidado meu amor! - Acudiu, vendo ele se divertir com a sua preocupação.

— Eu já estou acostumado a… - Disse, sem completar a frase, agora olhando na direção da porta que estava abaixada pela metade, por onde entraram dois homens de maneira sorrateira. Um deles armado com uma pistola de grosso calibre.

 

Ao se virar, Cláudia viu o seu pior pesadelo ali a lhe encarar, arreganhando um sorriso satânico e expondo os dentes estragados, sacudindo o cano de uma arma, gritando para que ela se levantasse.

 

— Foi difícil mas te achei sua piranha! Você acha mesmo que conseguiria se livrar de mim? Do seu maridinho apaixonado por deixar esse rostinho roxo de pancada? O que foi? O velhote não gosta de sentar a mão em tu? Esses olhos só ficam bonitos quando tão inchados! Se levante logo, sua puta! - Gritava, sacudindo a arma na mão.

 

Abdias desceu lentamente da escada, preocupado com as crianças que podiam acordar e começar a chorar. Pelo que deu pra entender, aquele deveria ser o ex-marido abusador de Cláudia. Ele precisava manter a calma. Talvez só tivesse uma chance para alcançar a arma embaixo do balcão, mas para isso acontecer ele precisava permanecer impassível.

 

— Vocês querem dinheiro? Eu tenho, não precisamos usar de violência - Informou com toda a calma que pode imprimir na voz.

— Quero dinheiro sim, velhote. Mas não o seu. Vim de longe com esse parceiro e cliente aqui. É ele quem vai me pagar pelos serviços dela.

— Não entendi - Respondeu Abdias, vendo Cláudia começar a tremer de medo, sem dizer nenhuma palavra.

 

Ela sabia o que aquilo significava. Aquele homem além de perverso também era um ser depravado. Aquilo não podia estar ocorrendo ali, logo quando ela ganhou todos os motivos da vida para sorrir. Ela jamais deixaria acontecer aquilo outra vez. Se fosse preciso daria a sua vida para salvar as crianças e a sua dignidade. Elas estariam em boas mãos e seriam cuidadas com amor pelo homem que lhe acolheu.

 

— Quando eu olho para a sua cara, só enxergo uma função para essa boca linda que você tem. O que me incomoda são os seus olhos, é como se vc tivesse dois umbigos miseráveis me julgando por ter sido descartado dentro de uma sacola qualquer quando era bebê com o cordão umbilical ainda pregado em mim. Onde estão os meus filhos? - Perguntou, se aproximando e apontando a arma de forma ameaçadora para a testa dela.

— Em um lugar bem melhor do que aquele inferno que você chama de casa - Respondeu, levando uma coronhada na cabeça e caindo no chão. Abdias estava dentro do balcão e sentindo-se impotente. Para chegar na arma teria que dar três longos passos, e aquilo poderia ser desastroso caso o bandido percebesse.

— Pois se levante com a língua dentro da boca e venha me fazer ganhar o meu dinheiro. O meu cliente aqui não tem muito tempo. Depois de hoje, prometo ir embora e não voltar nunca mais - Disse, sem qualquer convicção, ajoelhando-se para puxá-la pelos cabelos e pô-la em pé novamente.

 

A cena que se seguiu deixou o farmacêutico com os batimentos cardíacos nas alturas. Primeiro foi o jaleco branco que ele rasgou, depois o sutiã foi arrancado com tamanha violência que deixou marcas na pele, Não teve dificuldades em lhe arriar as calças de trabalho. Pediu para que o homem taciturno, bem trajado e com um chapéu caro que estava logo atrás, se aproximasse.

 

— A calçola vou deixar por sua conta, já que você vai querer levá-la, como combinamos.

 

Era como se o tempo tivesse parado na vida dela. Sentia frio, mas não tremia, nem estava com medo, apenas congelou na mente a imagem de quando estava na cama dormindo abraçada com Abdias. Ele aquecendo o seu corpo sem qualquer maldade, apenas gostando de estar ali na sua companhia. Era a crueldade do mundo que destruía o júbilo, que corrompia contentamentos, que corroía a satisfação. Era tão simples viver em paz, mas o homem fazia questão de se afogar em tribulações. Aquilo estava errado. Tudo aquilo estava errado.

 

Ela estendeu a mão para o homem de chapéu caro. Ele estranhou a atitude, mas correspondeu. O bandido abaixou a arma satisfeito com a aquiescência de Claúdia e começou a mexer nas prateleiras, colocando alguns produtos em um saco de papel. Ela rumou em direção a sala de enfermagem. Abdias percebeu o que ela queria fazer e se preparou. Antes de alcançar a porta havia o acesso ao interior do balcão. Naquela ponta, embaixo de um catálogo telefônico, ela simulou tropeçar. Abdias se abaixou e começou a engatinhar na sua direção. Cláudia levantou o livro pesado e Abdias meteu a mão por baixo alcançando a coronha do seu trinta e oito.

 

O primeiro disparo atingiu a têmpora do homem de chapéu caro, que caiu como uma jaca madura com a sua cabeça fazendo um barulho seco no chão, enquanto o chapéu rodopiou no ar antes de cair de volta no mesmo lugar, ocultando o ferimento fatal. O bandido se assustou e tentou alcançar o pequeno espaço da porta que estava entreaberta e por onde tinha entrado, ao perceber que o seu simulacro de pistola não funcionaria naquela situação. Mas outro balaço certeiro atingiu o pescoço do homem que logo desabou, com a metade do corpo para fora do estabelecimento. As pernas ainda se mexeram como se ele estivesse pedalando, mas logo pararam de funcionar, assim como todo o resto. O último registro dos seus sentidos foi o choro dos seus filhos que vinha lá de dentro.

 

Cláudia correu para acudir as crianças que acordaram assustadas com toda a confusão, enquanto Abdias discava o número da polícia. Se o pedágio para a sua felicidade lhe obrigasse a passar por aquilo, então já estava pago.



 

Quando pegou a garrafa de aguardente da coleção do seu pai, lembrou que ainda não tinha ido agradecer ao professor pela sua alfabetização a toque de caixa, e que para a sua satisfação pessoal, tinha funcionado. Serviu-se de um copo generoso do líquido envelhecido e foi buscar a carta e o dicionário. Ainda era cedo, mas as ações promovidas por ele valiam por uma semana inteira. Já tinha roubado um carro, saído em perseguição, explodido um veículo, matado o seu ocupante queimado, devolvido o carro roubado, e falado com Cândida ao telefone. Claro que omitiu a parte em que ele tinha matado o pai dela. Aquela notícia deveria chegar por outros meios. Que fosse por pombo correio ou sinal de fumaça, ele não dava a mínima importância. Sentia mais pena dos urubus por não ter sobrado nada para alimentá-los, ou dos pés de mamona que não poderiam se servir da carne calcinada como adubo. Suas preocupações de momento eram traduzir aquela carta, arranjar membros de confiança para o bando que estava desfalcado, levar uma garrafa de cachaça de boa cepa para o professor e depilar o seu saco. Os chatos que pegou da vagabundinha com quem andava se esfregando no bar do Sr Desidério ainda não tinham sido eliminados, e aquilo coçava até ver sangue nas unhas. Também pensou na Véia Guida que lhe deu guarida em um momento crítico, com quem nunca teve problemas. E pelo que sabia até então, o Mestre Tuta não tinha dado com a língua nos dentes sobre o incidente na pedreira.

 

Sentou-se à escrivaninha do pai e abriu a carta ao lado do dicionário. Deu um longo gole no aguardente para concatenar as ideias e quando começaria a leitura, a campainha tocou. Só poderia ser a faxineira que vinha uma vez por semana para limpar a casa. Agora que morava sozinho depois da morte da mãe, a bagunça imperava no lugar, com pilhas de pratos sujos na pia há dias, lixo esquecido nos baldes, latas vazias de comidas prontas espalhadas sobre a mesinha da sala, e a geladeira lotada de comida estragada. Já tinha encontrado um rato lhe dando bom dia em cima da cama e umas baratas já tinham lhe subido pelos pés enquanto estava mijando de madrugada no banheiro. Precisava aumentar a frequência da limpeza, o que implicava em aumentar a despesa de casa e diminuir as despesas no bar. Enquanto o estoque de bebidas do seu pai perdurasse não haveria problemas, mas já antevia problemas quando acabasse. Será que Cândida sabia fazer faxina? Ou teria que dobrar os roubos a carros?

 

Recepcionou a moça à porta, que depois do bom dia, já foi atrás dos produtos de limpeza, como se tivesse receio de ficar muito tempo na frente do rapaz de má fama no bairro. A mãe dela era amiga da sua mãe e depois que o álcool começou a fazer efeito, olhou a moça de quase trinta anos com outros olhos. Era jeitosa, apesar de não ser bonita pelos padrões das revistas de fofocas dos famosos. Depois que ela se trocou e vestiu a roupa de trabalho, algo lhe deu ainda mais charme. Usava um shortinho de brim preto surrado que lhe espremia as nádegas e lhe moldava as formas, e um bustiê franzido de elástico que lhe domava um par de peitos fartos e rijos. Não conseguiu mais se concentrar em leitura alguma. Até as palavras que buscava no dicionário pareciam ter fugido dele. Sua mãe jamais lhe perdoaria caso assediasse aquela mulher, e ele talvez nunca mais conseguisse ninguém para limpar a sua sujeira.

 

— Margarida, posso te fazer uma pergunta? Não me leve a mal, certo?

— Sim, senhor, claro que pode! - Respondeu a moça meio acabrunhada, de gatinhas no chão, esfregando um pano numa mancha de chocolate ressecado no sinteco da sala.

— Sei que sua mãe foi cabeleireira da minha mãe por muitos anos. O meu problema envolve cabelo, mas não é na cabeça. Eu raspo a minha cabeça lá na barbearia de Rico, mas nunca tive coragem de fazer a consulta que vou te fazer agora.

— O senhor pode falar - Disse, curiosa com o que ele pudesse querer saber dela.

— Não me chame de senhor, eu me sinto um velho de oitenta anos - Frisou, fazendo a moça rir e descontraí-la como ele queria. Era um manipulador filho da mãe.

— Toda vez… quando eu faço isso, acabo me cortando todo. Não tem jeito de ser feito por mim mesmo se eu quiser sair disso sem ferimentos. Você faria isso por mim? Me refiro a raspar tudo - Explicou, levantando-se da cadeira e abaixando o short de elástico que usava sem cuecas com a maior naturalidade, para espanto da moça, que levou as mãos aos olhos, quando avistou por uma fração de segundos a descomunal ferramenta do patrão, adormecida no meio daquele colarinho de palhaço.

 

Ele não entendeu de imediato a reação de Margarida, que largou tudo o que estava fazendo e saiu da casa se benzendo e pedindo perdão a Deus. Aquilo lhe daria bastante trabalho para desfazer o mal entendido com a moça e sua mãe, que tinham se convertido recentemente a uma religião protestante. Levantou-se para fechar a porta, despiu-se e foi atrás de um barbeador e um pouco do remédio para piolhos que usava para amenizar aquele circo de pulgas que não tinha graça nenhuma em estar ali instalado nas suas partes pudendas.


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