JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 25
Capítulo 25




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Aquelas batidas afobadas na sua porta àquela hora só podia ser encrenca. Antes de se deparar com ele na sua frente, já estava com o dedo em riste para exigir uma explicação plausível para tamanho desaforo.

 

— Eu preciso da sua ajuda - Ele falou numa voz tão mansa que quase não parecia vindo dele. Vilma colocou a cabeça para fora e olhou para os dois lados do beco. Não viu ninguém, e puxou Balduíno pelo braço pra dentro de casa.

— O que foi, homem? Parece que viu assombração - Disse, quase não cabendo em si, sem acreditar que estava trocando duas palavras com o homem da sua vida sem que nenhum dos dois levantasse a voz.

— Aconteceu uma coisa com a minha filha. Vamos, lá em casa eu explico - Retrucou, já tirando a torrada com manteiga das mãos dela que estava tentando comer desde que tivera que atendê-lo.

— Eu te faço um café - Prometeu, com Vilma ainda vestida de robe e com uma touca a cobrir os bobes na cabeça.

— Eu pareço uma louca saindo de casa assim - Disse, tentando enfiar a chave na fechadura para trancar a porta, sem sucesso, dada a pressa do homem.

 

Desfilar no beco de manhã cedo ao lado do seu homem por alguns metros, era o mesmo que entrar no teatro pelo tapete vermelho ao lado de um galã em noite de gala. Sem saber porque, aquela pequena aventura a deixou excitada. Tinha que se comportar, afinal ocorrera algo com a filha dele. Os olhares dos transeuntes era de estranheza já que ambos viviam às turras. Pareciam dois pombinhos entrando no ninho para fornicar, ao invés de um ringue para pelejar, como de costume.

 

Depois que se certificou de fechar a porta e a janela, ele a levou para o quarto. A moça estava num estado lastimável, delirando, gemendo e desmaiando. Não necessariamente nessa ordem.

 

— Não estou aqui para perguntar o que aconteceu, mas adianto que a menina vai precisar de chá e uma canja de galinha bem reforçada. E gelo pra colocar nos ferimentos e na cabeça - Explicou, já abrindo os armários e mexendo na pequena despensa, enquanto enchia uma chaleira de água e ligava um bico do fogão.

 

Balduíno quase ficou tonto com a destreza de Vilma. A mulher parecia ter oito tentáculos. Fazia três coisas ao mesmo tempo, enquanto ordenava outras três para que ele a ajudasse.

 

— Sua ex-mulher não vai encrencar comigo aqui?

— Levei na rodoviária hoje de madrugada. Foi até bom elas não estarem aqui. Ainda mais pela menina. Essa aí é a mãe de Cidinha, você sabe.

 

Ela permaneceu calada, apenas mexendo alguns temperos na panela, ouvindo os problemas da família como se fosse música tocando nos seus ouvidos. Achava que se alguém interrompesse aquele momento de puro deleite ela partiria pra cima com a mesma faca com que estava cortando o frango. Até os gemidos de Patrícia faziam parte da trilha sonora. Sentia o calor da proximidade dele, de pé logo atrás dela, e sabia que aquele momento era de rendição. Talvez não precisasse usar o vibrador uma segunda vez. 

 

Com ele apoiando a cabeça da filha, e ela lhe dando colheradas do alimento revigorante, cuidaram daquele farrapo humano. Vilma trouxe compressas mornas para fazer um asseio no corpo da garota, enquanto ele lavava a louça na cozinha. Providenciou um roupão para cobrir a sua nudez e lhe deram um chá. Passaram um tempo amparando a moça que preferiu permanecer calada apenas recebendo os cuidados com os quais não estava acostumada. Era domingo, portanto não tinha que se preocupar bem com trabalho nem com reputação, por enquanto. Era o dia de Finados. Viu o pai lhe beijar a testa e sair atrasado para um dia cheio de trabalho. Vilma prometeu ficar e fazer o almoço, e fazer-lhe companhia. Era o dia dos mortos. O dia em que ela precisava ressuscitar.

 

—-

 

O seu receio era de que tivessem mudado dali. Levaria um tempo até descobrir para onde tinham ido, e aquilo atrasaria o seu cronograma. Já era a terceira viagem perdida na última semana. Não queria fazer perguntas, porque já estavam desconfiados da sua presença rondando por ali. Ficou dentro do carro por mais de uma hora, até que a sua recompensa chegou no primeiro ônibus. As duas desembarcaram e seguiram a pé até a porteira do sítio. A louca ainda não tinha vindo atrás delas, e talvez nem viesse, por vergonha. Ou pela falta dela.

 

Sua cabeça analítica já tinha preparado boa parte dos passos seguintes, mas que ainda dependiam de alguns contatos a serem feitos. Tinha quase certeza que poderia contar com uma velha conhecida no Jardim Bagdá. Alguém que ele conhecera há muitos anos, em meio a um caso que ele cobriu ainda como repórter do jornal. Se o seu plano desse certo, seria o maior troféu erguido por ele até então. Seria elevado à categoria de grão-mestre na arte da vingança, mesmo que ela tenha sido engendrada como objetivo final desde o início. Sentia um enorme prazer em provocar situações como aquela. Uns o chamariam de doente, enquanto outros o ungiriam.

 

Enquanto se achavam fazendo um grande favor ao se relacionar com ele, por outro lado, se via na posição de grande professor das matérias em que o caráter precisava ter rachaduras. Peixoto quase podia saborear o dia em que a história se repetiria. Engatou a primeira marcha e voltou para a estrada. Precisava vestir a sua fantasia de homem apaixonado para esperar a chegada da sua donzela, metida nas vestes de uma Madalena arrependida.

 

 

A NOITE DO LEILÃO 9

 

Escreveria algumas poucas linhas protocolares fazendo algumas manobras verbais para mais confundir quem lesse a sua confissão do que esclarecesse, afinal era um advogado. Daria mais atenção a outra missiva que seria contrabandeada dali por Danuza, a sua cocote preferida da maison, e a única que percebeu disposta a lhe ajudar, mas não por acaso. Sua sorte era que ela estava lidando diretamente com ele, juntamente com Janice, que era cão fiel de Dinorá. A mensagem que lhe interessava seria para o seu filho de criação, aquele projeto de ser pestilento lhe vingaria um dia, por caminhos tortuosos, já que nem leitura possuía. Já tinha ciência da pena a pagar. Podia levantar daquela cama e sair gritando como um louco, enfrentando a cafetina e acordando a vizinhança. Mas optou por comer aquele prato bem frio. Lambeu a ponta do lápis e começou pelo manuscrito mais importante.

 

‘’... e quando você tiver um arguto entendimento para interpretar essa missiva na sua íntegra, poderá subtrair dela todo o teor das ocorrências virulentas que foram perpetradas contra mim em função de ter violado uma diretriz de importância sumária. Diante da insipidez do meu ato instintivo, serei castigado regiamente como um vassalo insubordinado. A essa altura já devem ter executado a pena imposta a mim. Nunca promovi santidade e jamais endeusei qualquer um que não apenas as suas conquistas, mas confesso que hoje fui falho. Se essa missiva chegar em tuas mãos, sei que se esforçará para compreendê-la na sua íntegra um dia. Sua mãe terá instruções de mantê-la em lacre de cera de vela apenas para os seus olhos. Antes que eu me esqueça, deixarei a maior prova do meu relato e que poderá te causar engulhos, embaixo…’’

 

Danuza podia sentir nas maçãs do seu rosto o visgo do alcatrão que vinha de dentro daqueles pulmões lodentos, enquanto ele escrevia. Não sentia pena alguma daquele pederasta. Era medo. Longe dali ela ganhou algum dinheiro com aquele verme, que lhe remunerou muito bem apenas a troco de algo horrendo. A sua vergonha era tamanha que não conseguia mais olhar no rosto do seu menino de nove anos que sofria de mongolismo. Ela sabia que não valia nada por deixar ele brincar de médico com o menino, que diante da sua inocência, começou a gostar do ‘’doutor’’ que o examinava tocando em todo o seu corpo despido. Parou de ganhar aquele dinheiro sujo quando teve que levar o filho a um médico de verdade e ele perguntou ao pediatra porque ele não lhe estimulava o pênis como o outro. Ela precisava jogar aquele jogo até o fim, caso contrário, ser dama da noite seria apenas a parte boa da história de sua vida insalubre.

 

Depois de liberar os demais cavalheiros pelo habeas corpus da Madame, Janice foi ver como a menina estava. Encontrou-a pulando em cima da cama. Nada para ela fazia sentido.

— Você não está com uma cara muito boa, mas pula como se estivesse feliz? - Questionou em um tom de brincadeira para que ela não se achasse pressionada. Afinal aquele comportamento poderia ser um reflexo pós-traumático.

— Eu estou tentando, mas não desce! - Reclamou, olhando para as pernas.

— O que é que não desce, Samira?

— O que aquele velho fedorento deixou dentro de mim - Disse, referindo-se ao pouco de esperma que ele tinha conseguido depositar dentro da menina.

— Você já ficou uma hora embaixo do chuveiro. Não tem mais nada aí, não se preocupe. Você está novamente como antes.

— Mentira! - Gritou, parando de pular e encarando Janice com uma cara enfezada, que se assustou com a reação, mas permaneceu tranquila e deixando-a à vontade para falar.

— Nunca ninguém me disse que isso aqui serve pra colocar aquela coisa nojenta dentro! - Disse, colocando a mão sobre a genitália.

— Se você se acalmar eu vou explicar pra você tudo o que a sua mãe não conseguiu. Eu não tenho filhos, mas cuido de você desde que nasceu. Também sou culpada por não conversarmos com mais frequência, a gente sempre tá ocupada e nunca tem tempo. Sente aqui que vou te dizer tudo o que aquela coisa nojenta pode fazer. Inclusive você só existe por causa de uma dessas coisas nojentas! - Pontuou, vendo a menina finalmente abrir um sorriso e relaxar, aceitando o convite ao se sentar na beira da cama, tentando encontrar uma posição confortável ainda incomodada com as dores decorrentes da defloração.

 

Não tinha qualquer dúvida de como a coisa seria feita. Pediu que Danuza o amarrasse nu pelos pés e mãos na cama logo após a escrita da carta de confissão. Não estava preparada para o que viria depois, mas sabia que de nenhuma maneira sairia incólume. Assim como Samira. No seu íntimo não queria admitir o seu erro de promover aquela balbúrdia, até porque vivia do seu corpo e de corpos alheios, alugados por poucos minutos para satisfação pessoal de quem os aprazia. Seria natural ter um diamante bruto em casa e pô-lo a leilão para ser lapidado. Esperava que a sua filha pudesse escapar daquela sina com o dinheiro dos cheques, apesar de saber que a cicatriz do ocorrido sangraria de vez em quando. Espremia os olhos fechados para tentar enxergar a filha numa toga de juíza, num jaleco de médica, num macacão de engenheira, mas só a via dançando cancan num palco, metida numa roupa esfuziante com um monte de idiotas a lhe cheirar os joanetes, esperando a sua vez de levá-la para a cama por preços indecentes.

 

Dinorá pediu que Danuza fosse ficar com Samira, no que ela prontamente atendeu, levando um pedaço de papel escondido dentro das vestes exíguas. Ordenou que as outras meninas fossem dormir. A tormenta tinha voltado com força, e os clarões decorrentes das descargas elétricas iluminavam o ambiente a meia luz, tornando-o ainda mais sinistro. Aquela noite seria um divisor de águas para todos, e ela não dava a mínima importância de quem carregaria o fardo mais pesado. Apenas cumpriria ao que se propôs sem nenhum arrependimento. Era o mínimo que poderia fazer por Samira. Era a sua maneira de cobrar o devido. Seria violento e agreste, como a sua infância, vivida nos cafundós do sertão, onde Judas tinha perdido as botas, e a sua mãe tinha perdido o juízo por ter engravidado de um padre. Como tinha sido excomungada desde cedo, não temeu trilhar o caminho iluminado pelas brasas acesas do inferno depois que a mãe misturou veneno de rato na água benta e bebeu.

 

— Abra os olhos, seu salafrário! - Bradou com uma tesoura de costura na mão, e a espingarda na outra.

— Não estou dormindo Dinorá, e pare de querer transformar isso aqui numa catarse pessoal e seja honesta com você mesma. Adiante o lado, mulher! - Disse em um tom jocoso que enfurece ainda mais a Madame.

— Não tem medo do que vai te acontecer?

— Você não faz a menor ideia das coisas de que eu nunca tive medo e que borraria as calças de um homem feito. Você só mete medo a você mesma.

— Você não será mais homem depois de hoje - Vaticinou, abrindo e fechando a tesoura de forma ameaçadora.

— Com o que fiz hoje, considero a minha carreira de garanhão encerrada.

— Seu filho da puta! - Gritou, aproximando o cano da espingarda no seu rosto - Se você acha que vai me intimidar como se estivesse em um tribunal defendendo as ratazanas que são teus clientes, está enganado. Não vai ser assim tão rápido - Disse, quando Janice entra no quarto com uma panela de água fervente.

— Você sabe como faz pra se pelar um porco, Dr Cassandro? - Perguntou, vendo-o tremelicar as pálpebras pela primeira vez, não se sabe se pelo trovão que ribombou em seguida, ou se por puro pavor do que estava por vir.


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