JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 23
Capítulo 23




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Foi por pouco, mas ter conseguido desafivelar o cinto instantes antes da explosão, e o fato do para-brisas estar quebrado o ajudou a sair da cena rastejando mais rápido que uma cascavel atrás de uma presa. Apesar disso, sentiu a onda de calor e a chuva de estilhaços nas suas costas. Conseguiu ouvir os pneus cantando no asfalto da estrada, enquanto tentava se desviar dos pedaços de metal que vinham de todos os lados. Já abrigado atrás de uma pedra, procurou o maço de cigarros no bolso e não encontrou. Fez um rápido cálculo e teve certeza que o seu algoz achava que ele estava morto. Assim era melhor. Precisava chegar em um lugar o mais rápido possível, mas não aquele de onde tinha vindo. Não queria despertar suspeitas e precisava de tempo para limpar os ferimentos e colocar as ideias no lugar. Também precisava de um plano para completar a sua vingança contra aquela família maldita, ou pelo menos a parte dela que ainda lhe incomodava.

 

Antes de começar a andar pelo acostamento da rodovia deserta, recordou que também foi numa noite como aquela que ele começou a envenenar a água da cisterna da casa da sua ex-vizinha, tendo acesso a ela através da antiga casa em que vivia antes de se mudar, que estava vazia e onde ocorreram os eventos que desencadearam o seu ódio. Primeiro aos poucos, para não chamar atenção. Depois percebeu que a velha era mais resistente do que pensava e aumentou a dose. O moleque parecia chegar bêbado todos os dias e talvez nem sentisse sede de água ou talvez o elevado nível de álcool no sangue cortasse o efeito do veneno. A velha começou a dar sinais de que algo não estava indo bem, quando foi internada pela primeira vez com problemas intestinais. Ele decidiu adiar por uns dias com os seus planos, já que queria atingir primeiro o seu desafeto principal, coisa que não estava surtindo efeito.

 

Antes que uma semana se completasse, ele voltou a ativa quando viu que a idosa já tinha o rosto corado novamente. Porém, tinha adicionado uma dose considerada letal para pequenos animais. Talvez pudessem pensar que a velha tinha tido uma melhora súbita antes do último suspiro, como quase sempre ocorria com pessoas de idade avançada antes de comer capim pela raiz. Eliminou vestígios do produto, limpando o porta malas do seu carro e colocando suas roupas para lavar. Sua esposa não lhe fazia muitas perguntas, apesar de deduzir tudo o que se passava. Naquela época, Cândida era apenas uma pré adolescente feliz com o seu quarto novo dentro de uma casa maior.

 

Já divisando as luzes do vilarejo adjacente ao Jardim Bagdá, sorriu ao lembrar de quando recebeu a notícia de que a velha tinha morrido. O único mal que aquela mulher tinha lhe feito foi colocar no mundo o satanás que iria atazanar a sua existência. Achava que com a partida da genitora o moleque fosse morar com um dos irmãos bem sucedidos. Mas nenhum deles queria ter a sua paz dilapidada por aquele caminhão sem freio carregado de esterco. E então percebeu que a sua missão ainda não tinha terminado quando viu que Montila seguiria rondando sua vida, agora tendo a sua filha como alvo.

 

Conseguiu abrigo na casa de uma prima a quem tinha muito apreço e que lhe devolvia um afeto incomum. Na verdade estava indo para lá antes de encontrar com a sua família. Zuleide era surda-muda, e bem mais nova que ele. Morava sozinha desde que a mãe morreu. A sua tia o odiava por assediar a prima desde os tempos de colégio. Quando ela o viu chegar com as roupas ensanguentadas e com o dia amanhecendo, se agoniou emitindo sons animalescos, enquanto gesticulava as mãos numa tentativa de perguntar o que tinha acontecido. Ele sorriu para que ela se acalmasse e gesticulando de volta, explicou que tinha sofrido um acidente de carro. Sem que ela esperasse a beijou na boca pela primeira vez depois de tantos anos. Ela foi receptiva, mas logo apontou para as feridas, e cuidou delas antes de se entregar a Cândido com a mesma voracidade da primeira vez, quando tinha treze anos de idade e ele vinte e quatro. Ele sabia que ali estava seguro, e o seu silêncio era garantido pela natureza. O que ele não sabia era que Nego Bó e Ramiro, que vinham seguindo Montila a distância, desde quando foram descartados do bando como inválidos, tinham alcançado ele até ali, a muito custo, montados numa moto com os faróis apagados.

 

 

O assombro de Justino logo despertou Samira, que saiu correndo para entender o que se passava no banheiro. Ao chegar, esticou o pescoço por cima dos ombros largos e viu uma mulher muito bonita, porém num estado calamitoso. Restos de vômito a lhe cair pelo queixo e com as pálpebras piscando em câmera lenta. Estava sentada no chão, de frente para o vaso sanitário com os braços trêmulos plantados no chão fazendo apoio ao corpo. E antes de julgar se aquele cheiro de esperma ressequido que parecia grudar-lhe os cabelos na testa provinha dela, cheirou os próprios dedos. Sob os olhos de qualquer ser humano aquela mulher parecia ter sido vítima de uma violência sexual.

 

Justino ainda aguardava que explicação sairia da boca de Patrícia, que estava com a cabeça baixa e com os cabelos a cobrir-lhe o rosto como uma entidade de filme de terror, sem dizer qualquer palavra. Ele arriscou se aproximar, prontamente impedido por Samira, que o segurou por trás.

— Não sei se é uma boa ideia. Você a conhece? - Perguntou mais para ter certeza do que pela vontade de saber.

— Sim - Respondeu seco, sem querer dar detalhes.

— Ela pode estar sob efeito de alguma droga, ou apenas bêbada. Mas para ter entrado aqui é porque achou que teria algum amparo.

— Eu estive com essa moça por duas ou três vezes. Ela enterrou o marido recentemente e me encomendou uma lápide.

— E você se envolveu com ela. Não o recrimino, ela é linda, mesmo estando nesse estado. Temos que fazer alguma coisa.

 

Justino pensou em começar um diálogo, mas foi interrompido quando Patrícia começou a cantar e a se levantar trôpega, ainda com a cabeça baixa.

— Como pode o peixe vivo, viver fora da água fria? - Cantava num compasso lento e com a voz grave, como se quisesse imprimir suspense para o seu seu próximo ato, enquanto andava para trás em direção ao chuveiro, que abriu.

— Como poderei viver, como poderei viver, sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia - Entoava a canção infantil mantendo o tom sobrenatural, com a água a lhe cair sobre a cabeça, para espanto dos dois que assistiam impassíveis ao show de insanidade da invasora.

 

— Estou com medo - Samira disse baixinho no ouvido de Justino para não chamar a atenção da mulher de traços finos, mas cuja elegância e dignidade tinha deixado em algum lugar bem longe dali.

— Não se preocupe, acho que a água fria vai fazer com que ela acorde do transe.

 

Logo após ter dito aquilo, Justino viu Patrícia dar uma cabeçada no box de vidro e quebrá-lo com a testa. Uma chuva de cacos se espalhou pelo banheiro exíguo, enquanto eles saltavam para trás por instinto a fim de não serem atingidos. Viram-na cair ferida e a água que escorria para o ralo tornar-se turva de sangue. Com a urgência que a situação pedia, ele correu para ajudá-la com Samira lhe dando suporte. Com alguma dificuldade levaram-na para a cama ainda molhada. Cuidaram para retirar os vidros que lhe espetavam a pele, não sem antes despi-la dos trapos que ainda a cobria. Revezaram-se em limpar o sangue espalhado pelo corpo e o mau cheiro que ela trazia de algum intercurso sexual recente. Entre um gesto de benevolência e outro, Justino olhava para Samira, ora com semblante de culpa, ora com as feições de um homem apaixonado. Ela devolvia cada olhar com um sorriso que lhe esclarecia de forma confortante cada dúvida que a sua insegurança fazia questão de fornecer.

 

— Ela precisa de um médico. O pulso está fraco talvez por ter perdido muito sangue - Ela alertou, observando o seu totem negro despertar do torpor, enquanto se dirigia para a cozinha a fim de fazer um café e fumar um cigarro. Lá fora o sol já era realidade, apesar das nuvens negras que teimavam em rondar dentro da casa.

— Você tem razão - Concordou, quando teve a ideia de abrir a bolsa de Patrícia jogada no sofá, e onde encontrou um número de telefone escrito em um papel solto com um nome e a palavra ‘’PAI’’ entre parênteses. Resolveu que essa seria a providência a ser tomada e catou umas fichas jogadas na mesa da oficina, saindo de casa na direção do telefone público da esquina. Pelo prefixo, o número era da região. Deixou Samira esquentando água para o café e também para cauterizar as feridas após a retirada dos pedaços de vidro da pele de Patrícia, que após desmaiar, gemia de dor vez ou outra antes de voltar ao estado de letargia.

 

Insistiu discar por quatro vezes até a linha cair. Quando já pensava em desistir, uma alma caridosa atende a sua chamada. Uma voz feminina acenou com o reconhecimento do nome dito e pediu para aguardar enquanto via se Balduíno estava em casa. Para surpresa de Justino, o homem que o atendeu se identificou, e ambos já se conheciam de vista, de longa data, e do cemitério. Agora era só esperar o pai da mulher que já esteve deitada na sua cama em condições mais favoráveis. Lembrou de Samira e voltou para o interior da sua casa, recebendo das suas mãos uma xícara de café, e da boca veio um beijo apaixonado.

 

— Não quero que você fique com as mãos parecendo que tem vinte dedos em cada uma. Eu me deito com cinco ou mais homens todos os dias, e sei o que você acha disso e nunca reclamou. Sou prostituta e os seus sentimentos andam em campo minado quando pensa em mim. Essa daí, mesmo que não pareça ser, não passa uma imagem melhor, não é mesmo? - Disse, fazendo um biquinho com os lábios, com a cabeça virada para a porta do quarto.

— Eu te conheço desde que pisei os pés aqui no bairro. No início eu achava que era carência, pela falta que o meu irmão me fazia. Mas depois vi que era algo mais. Mesmo assim preferi ficar na minha. Mas você sabia disso. Bastava te olhar. Não era um olhar de quem queria só te devorar, e olha que eu queria isso mesmo! - Explicou, envolvendo-a em um abraço.

— O seu cuidado comigo me fez te olhar diferente. Quero parar com isso, já decidi.

— Com o que?

— Parar de ver cinco rostos diferentes na minha cama todos os dias.

— E é algo tão simples assim? - Perguntou, vendo todo o esforço dela para sair daquela crisálida e finalmente se transformar na linda borboleta que ele sabia que ela era.

— Não. Mas você vai me ajudar a trocar de pele. Não vai?

 

Aquele beijo durou um tempo a mais do que deveria, já que tinham uma hóspede indesejada na cama, e quando já pensavam em usar o sofá como suporte para mais uma ode aos ímpetos ancestrais, ouvem lá fora uma voz grave gritar ‘’Ô de casa!”, seguido de palmas.

 

Foi curioso que ao bater os olhos no homem magro e de coluna curvada, antes de lembrar do seu rosto transitando no cemitério, havia a imagem dele cuidando do carro de Patrícia junto ao guincho, que fora levado pela enxurrada e jogado em um buraco logo ali na esquina. Chegou em um táxi, cujo motorista parecia ser seu conhecido, e falaram apenas o protocolar para que lhe desse acesso ao quarto e a filha desmaiada, que agora roncava em sono profundo, já com uma aparência bem melhor do que horas antes. Samira havia providenciado roupas dela própria para vestir a moça, e Justino se ofereceu para carregá-la até o carro. Balduíno não quis saber de muitas explicações a respeito de como ela havia chegado ali ou onde ele havia conseguido o número do orelhão vizinho a sua casa. O que o deixou feliz foi um pedaço de papel entregue por Justino, rabiscado a mão por ela com a palavra PAI, que precedia o número onde poderiam encontrá-lo. 

 

O coveiro agradeceu ao casal pelos cuidados dispensados a filha, entrou no Fusca e partiu, olhando pelo retrovisor um casal que acenava numa pressa desconfortável, loucos para correrem pra dentro de casa, e sem tempo de chegarem até a cama, arrebentarem com os pés do sofá. ‘’Recém casados’’, pensou o coveiro, imaginando em como daria aquela notícia a Conceição e Cidinha, e pela sorte que tinha tido em tudo aquilo estar acontecendo na ausência das duas, que tinham acabado de embarcar num ônibus para Sabugueiro.


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