JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 21
Capítulo 21




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Conseguir um trinta e oito e munição foi uma tarefa fácil sendo uma pessoa temida no submundo do crime. Muita gente queria agradá-lo. Difícil foi ter obtido as informações preciosas que lhe caíram no colo. Cândida, que ele subestimava como uma garota criada a pão de ló e bibelô dos pais, tinha contato com o irmão caçula de Ramiro, já que estudavam no mesmo colégio e mesma turma. A mensagem que ela tinha lhe enviado através do seu parceiro foi decisiva para que roubasse a Caravan de seis cilindros do Sêo Desidério. O dinheiro que já tinha despejado no seu bar com despesas de bebida para a tropa inteira já pagava o aluguel do veículo. Pretendia devolvê-lo no dia seguinte.

 

Sabendo a hora aproximada em que ele avisou a família que pegaria a estrada, posicionou-se numa curva acentuada, famosa pelos desastres ocorridos pela imprudência de muitos motoristas. Camuflou o carro num local de mato alto e com a ajuda de uma lanterna, logo encontrou o que procurava. Uma pedra de ótimo peso e diâmetro. Sabia que só teria uma chance. Sabia também que poderia atingir o veículo errado no escuro, mas confiava no seu conhecimento sobre carros, lembrando do formato dos faróis do Alfa Romeo. A ideia era fazê-lo perder a direção do carro depois do impacto no para brisas e sair da pista, ou parar o carro. Ninguém se arriscava por ali no horário em que a moça tinha dito que o pai sairia da cidade.

 

Passou os dedos nas cascas de ferida que se formavam na testa apenas para aumentar a sua indignação. Soube que o pulmão de Ramiro foi perfurado por uma costela e Nego Bó perderia o dedo indicador da mão direita que tinha necrosado. Justamente o que apertava o gatilho do revólver. Aquilo não era mais uma questão de ter ou não aquela menina para ele. Sem os seus escudeiros teria que recrutar gente nova ou promover algum soldado. E aquilo dava trabalho. Confiança não se comprava no vendinha da esquina. Havia uma promissória vencida e ele estava ali para cobrá-la.

 

Estava agachado atrás de uma touceira de capim tentando espantar o sono e os mosquitos que lhe atormentavam, mas que ao mesmo tempo também lhe mantinham com os olhos abertos. Achou ter escutado o ronco de um motor. Ele conhecia roncos de motores, ainda mais com o silêncio que fazia em um lugar ermo. Ergueu a guarda empunhando o revólver com uma mão e levantou a pedra com a outra, tendo o cuidado de apagar a lanterna, já que o facho de luz dos faróis começava a aumentar de tamanho e intensidade no chão da estrada.

 

O ronco daquele carro era inconfundível, principalmente quando ele reduzia para passar pelos buracos e imperfeições daquele atalho que desembocava na rodovia federal. Não havia outra alternativa para chegar rápido no leito de asfalto. Ou era por ali, ou por um desvio de pouco mais de cem quilômetros onde havia uma ponte na parte mais estreita do rio. Ele estava certo, quando divisou a grade dianteira torta. Ficou tentado a atravessar a pista, acertar o veículo e correr para o outro lado, mas o patife poderia  jogar o carro para cima dele.

 

Não havia qualquer margem para erro, mas ainda assim ele errou a pontaria. Viu a pedra atingir o retrovisor do motorista, despedaçando-o, enquanto o carro balançava de um lado para o outro, mas sem sair da pista, logo recobrando a trajetória. Correu para a Caravan e entrou na pista com as rodas girando em falso na terra atrás da sua presa. Ele só tinha mais dezoito quilômetros antes de chegar na rodovia principal. Ao volante de um carro mais potente, exigiu tudo o que o Chevrolet podia lhe entregar. Sêo Desidério tratava aquela preciosidade com um zelo de colecionador. Assim que o conta-giros estabilizou, a velocidade era tal que voava por cima das crateras da pista, deixando para trás uma densa nuvem de poeira. Logo emparelhou com o Alfa Romeo que insistia num zigue zague mambembe para tentar evitar uma ultrapassagem ou um contato na traseira. Aquilo não seria de todo necessário. Empunhou o trinta e oito e pôs a mão para fora da janela. Desferiu quatro tiros sem direção, até que o quinto atingiu um pneu traseiro. Viu o carro desgovernado rodopiar lateralmente em torno de si, quando pode encarar o seu condutor frente a frente por uma fração de segundo e a sua expressão de espanto, antes de pular três vezes sobre as rodas para então capotar com violência para fora da estrada. Pisou o pé com força no freio, derrapando um pouco de lado, domando a fera até parar por completo.

 

Esperou por uma explosão que não veio, e só então entrou no mato na direção do carro acidentado. Caminhava pela picada aberta pelo Alfa Romeo desgovernado, desviando de cacos de vidro, um dos parachoques, pedaços de lataria retorcida que devido a violência foram arrancadas do lugar. Não precisou acender a sua lanterna, já que os faróis continuavam acesos. Um forte cheiro de gasolina exalava no local, quando viu o motorista colocar o braço para fora balbuciando algo parecido com socorro. Montila se abaixou, e só então confirmou visualmente o que precisava saber.

 

O rosto do homem estava banhado de sangue, e ele tinha dificuldades de respirar por estar de cabeça para baixo e preso pelo cinto de segurança. O jovem gangster pensou ‘’Quem trafegava numa estrada deserta amarrado a um cinto de segurança a não ser os almofadinhas?’’. Aproximou-se para pegar a carteira de Pall Mall que tinha caído do bolso do pai de Cândida, olhando naqueles olhos injetados de ira e dor. Ele tentou balbuciar algum impropério, mas engasgou-se antes e apenas tossiu, escarrando golfadas de sangue. Com isso, Montila se afastou lentamente de perto do veículo e abriu a braguilha.

 

— Isso deve ajudar um pouco. Me deixe limpar esse sangue todo da sua boca imunda - Disse, urinando sobre o rosto do homem, que se debatia.

 

Em seguida, acendeu um daqueles cigarros caros e jogou o fósforo ainda aceso na gasolina que se espalhava rapidamente.

 

Só houve tempo de correr para a estrada por alguns metros antes de ouvir a explosão. Era como a noite de ano novo com os seus fogos de artifício, e as suas promessas renovadas de boas novas para o ano vindouro. Ainda faltavam dois meses para findar o ano vigente, mas aceitava de bom grado aquele presente antecipado. Era menos uma pedra no seu caminho até Cândida. Entrou na Caravan, acendeu outro cigarro e saiu cantando os pneus no trecho de pista onde começava o asfalto, olhando pelo retrovisor a bola de fogo que ardia no meio do mato.

 

 

No início ficou envergonhada de transitar da sua casa para a casa dele, mas aos poucos ele a deixou à vontade, mostrando onde estava tudo o que ela precisava para cozinhar. Enquanto ela preparava um guisado para o jantar, as crianças assistiam desenho animado na sala com Abdias que ria mais alto que os seus filhos. De vez em quando ele aparecia para colocar um pouco mais de vinho na taça, e lhe servia um pouco.

 

— Não fazes ideia da alegria que essas crianças me trazem. Quando os meus tinham essa idade eu andava ocupado com a farmácia, depois com a ampliação e depois com as filiais, que logo vendi por não aguentar o tranco. Mas por alguma obra do Criador, você me deu de volta a oportunidade de resgatar um pouco do que perdi - Divagou, enquanto observava Cláudia mexendo as panelas, trajando uma roupa que ele achou formal demais para vestir em casa - E da próxima vez, a senhorita pode cozinhar de pijamas, estamos combinados?

— O senhor me desculpe, é que eu fico sem jeito. Mas prometo que amanhã vou vestir algo mais leve - Respondeu, sem querer parecer oferecida demais, mas se sentindo como se já fizesse parte da rotina daquela casa. E da vida dele.

 

Naquela noite, antes de jantarem como uma família, ela perguntou se podia fazer uma oração antes da refeição, no que ele prontamente concordou, satisfeito em agregar mais um valor aquela pessoa que começou a admirar muito rápido. Era difícil Abdias errar no julgamento do caráter de alguém, só não esperava um veredito tão prematuro. Cada um carregou uma criança no colo, já que ressonavam há muito. Ela com a sensação de que ele queria que ela ficasse, e ele com uma vontade enorme de dizer algo para que ela não fosse. Atravessaram os poucos metros do quintal que dividia suas portas com milhões de sinapses ocorrendo no cérebro. Ela estava sentindo uma vontade enorme de ser cuidada, de estar nos braços de alguém que apenas não a agredisse, e ele com abstinência de fazer carinho em outrem.

 

Houve relutância para que ela fechasse a porta, e não sabiam muito bem como se despedir. Ele levantou a mão vacilante para dar um "até amanhã’’, e ela queria muito saber se ele a aceitaria na sua cama, nem que fosse por uma noite. Apenas para saber como era se sentir protegida. A mão que parecia se despedir, voltou para perto da mão dela, que não pestanejou um segundo em retribuir o gesto, segurando-a. Ele colocou um dedo na boca, pedindo silêncio e apontando para o quarto das crianças. Caminharam o curto trajeto abraçados e entraram na casa dele, no quarto dele e foram para a cama dele. Ela pediu que naquela noite ele apenas pudesse dormir abraçado a ela. Deixaram a janela do quarto aberta para o caso de escutar o choro de algum dos meninos e se deitaram, mas não sem antes ela ir colocar uma roupa de dormir. Abdias desligou o abajur e a abraçou por trás sentindo todo o frescor daquele pele. Ali havia alguém com a metade da sua idade, mas que tinha o triplo do amor que algum dia já recebeu de alguém.

 

 

Talvez ela jamais descobrisse como conseguiu orientar o motorista a levá-la até aquele endereço. Estava embriagada, seminua e com a pele do rosto exalando a esperma ressequido. Aquele profissional do volante devia ser uma espécie de anjo da guarda destacado para lhe proteger achando que a estava entregando em casa. Ledo engano, aquela casa não era sua. O que ela precisava naquele momento não era da solidão da sua quitinete, e sim do calor de um macho bombeiro para apagar o incêndio que se alastrava na sua virilha. Se ela não enxergasse aquele senhor franzino como tal, talvez pedisse para que parasse o carro no acostamento e o atacasse sem qualquer pudor. O álcool a deixava fora de si. Ela sabia que estava fora de si, mas nada podia ser feito até o efeito passar. E aquilo estava demorando para acontecer.

 

Estava tudo escuro, mas a janela aberta era o salvo conduto das suas intenções. Nem sabe quantas notas jogou no banco de trás antes de despachar o táxi. Do seu vestido restava uma tira de pano na parte superior que mal lhe cobria os mamilos castigados pelos dentes do go-go boy, e a outra metade de baixo que o filho da puta tinha lhe poupado por piedade antes de lhe puxar para cavalgar em cima do seu membro. Até explicar que a noiva não era ela, a sua calcinha já tinha sido cortada de tesoura e arrancada com os dentes. Quando se viu nua e com a cara coberta pelo líquido seminal do indivíduo, uma nuvem de consciência baixou e a fez encontrar a saída daquela mansão às pressas. A última imagem que lembrava era o espocar dos flashes e os dentes amarelados de nicotina da sapatona da redação que fazia cara de que tinha gozado mais do que ela fazendo imagens explícitas da sua pessoa. Ela estava fodida. Então, por fodida, fodida e meia. Estava ali no Jardim Bagdá para foder outra vez. Queria erguer um monumento à conjunção carnal naquela noite.

 

Se esgueirou pelo parapeito da janela e mesmo que estivesse alcoolizada seguia sorrateira como um gato. Rastejou pelo chão da sala e corredor, tateando pelas paredes até achar a porta do banheiro que ficava um pouco antes da do quarto. Ouviu o ventilador velho fazendo barulho e a respiração pesada. Apurou novamente os ouvidos e escutou outra respiração que fazia contraponto ao ronco dele. Puta que pariu, ele estava acompanhado. Aquilo lhe revolveu as entranhas e um enjoo fez ela dar ré de gatinhas de volta para a porta do banheiro, onde só deu tempo de entrar e abrir a tampa do vaso para começar a jogar pra fora as coxinhas de catupiry e canudinhos de camarão misturados com o suco gástrico. Com o barulho das golfadas, Samira despertou assustada, achando que o barulho vinha da rua. Mas logo percebeu que havia alguém dentro do banheiro e começou a cutucar Justino que despertou do seu sono pesado.

 

— Têm alguém vomitando dentro do seu banheiro - Disse baixinho, voltando a ouvir o som do regurgito.

Justino demorou dois segundos para entender a mensagem e deu um pulo da cama, vestindo um short que estava caído no chão.

— Fique aqui - Pediu para Samira, que apenas pegou a calcinha do chão e fez uma manobra ainda deitada para vestí-la.

 

O homem se encostou na parede do seu quarto próximo da porta e aproveitando um facho de luz da lua que penetrava nas frestas de uma telha viu a silhueta ajoelhada. Era uma mulher. E estava quase sem roupa. Quem seria aquela infeliz? Abaixou-se para pegar uma ripa de maneira que usava para calçar a porta que rangia com o vento que entrava pela janela da sala e deu três passos para surpreender a suspeita, que parecia estar deixando metade do peso dela dentro do seu banheiro. Com uma mão acendeu a luz e a outra levantou a madeira, logo abaixando, surpreso com o que viu.

 

— Você?


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