JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 14
Capítulo 14




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As crianças choravam de fome e sede, e ela estava exausta ao descer na rodoviária após uma viagem que durou a noite inteira e ainda pegar mais dois transportes lotados para chegar até ali. Não sabia se conseguiria chegar no endereço, mas era a sua única alternativa para fugir de um relacionamento abusivo que estava se encaminhando para um final trágico. Recordava vagamente que era próximo ao cemitério, e ainda tinha que contar com a sorte, já que não sabia se ele ainda morava lá, ou se estava casado ou se tinha filhos. Decidiu ir direto à mansão dos mortos e fazer perguntas. Devia ser um homem conhecido, ainda mais se o seu coração continuasse grande e bondoso.

 

Parou para descansar um pouco em um bar próximo e deu água para Ana e João, e comprou um pacote de bolachas para lhes enganar o estômago. O dinheiro estava no fim. Ainda assim o tinha porque conseguiu subtraí-lo da carteira do seu carrasco. Sentou-se num banquinho próximo a calçada e percebeu que os transeuntes a observavam com o rabo do olho. Passou os dedos nos lábios. Ainda estavam inchados. Retirou um pequeno espelho da bolsa e notou que os olhos também estavam arroxeados da última sessão de espancamento. Ela jurou não deixar que homem nenhum lhe tocasse outra vez. Nem para lhe fazer carinho.

 

— Por acaso, o Sr. conhece um homem por nome de Justino? - Perguntou ao Sêo Desidério, dono do bar, que limpava o balcão com um pano sujo e movimentava um palito na boca de um lado para o outro. A pergunta lhe chamou a atenção.

— Só conheço um, o que faz laṕides. É ele? - Respondeu, olhando para a mulher baixinha e bem feita de corpo, na faixa dos trinta anos, maltratada pela vida e por mais alguém.

— Eu não sei o que ele faz, mas ele jovem, negro, forte, baixo - Descreveu, segurando a mão no ar, ilustrando a altura.

— Só pode ser ele, moça. Passou agorinha por aqui indo para o cemitério. O irmão gêmeo dele foi enterrado lá e ele sempre anda por lá cuidando do túmulo. No início eu achava estranho, mas depois eu entendi. É amor mesmo - Refletiu, cuspindo o palito no chão e colocando outro novo no lugar.

 

Cláudia agradeceu a informação com a esperança renovada, era ele. Pagou a conta e arrastou os filhos rua afora sob protestos, sabendo que estava indo de encontro com aquele que deveria ter sido o seu homem desde o início. Aquele encontro só seria possível, graças ao que fizera por ele, num momento delicado da vida. O presente de grego que tinha ganho no seu primeiro relacionamento serviu para aquele propósito. Ana precisou ser carregada para que pudesse apressar o passo. Tinha medo de deixar escapar a oportunidade, assim como as várias que surgiram para que ela fugisse do casamento. Mas estava grávida da caçula, e as coisas ficariam mais difíceis do que já estavam.

 

Quando ela o viu de costas, ainda distante, o seu coração acelerou e foi difícil conter um grito chamando-o pelo nome. Ele estava conversando com uma mulher na calçada que logo partiu dentro de um táxi, e depois entrou apressado portão adentro. Resolveu segui-lo, ao invés de chamar o seu nome, já que sabia para onde estava indo. 

 

Se ela tinha parentes enterrados ali, desconhecia. Aliás, se tinha algum vivo, também ignorava. Tinha saído de casa muito cedo depois de nascer nos confins do norte, no meio do mato. Tinha feições indígenas, pele morena e cabelos compridos, lustrosos e negros como piche de asfalto. Não era alta e o seu corpo era reto, e a despeito de já ter dado a luz por duas vezes, seus belos seios continuavam rijos por teimosia. Nunca teve talento para se prostituir e dava preferência ao trabalho nas cozinhas de bares e restaurantes, onde aprendeu a cozinhar divinamente. Fora assim que tinha ido parar naquela pedreira, ali próximo.

 

Ele estava ajoelhado na porta da pequena capela construída sobre o terreno que tinha lhe doado para enterrar o irmão. Na época, relutou em deixá-lo sozinho, mas ela precisava seguir adiante e não haviam conversado sobre o futuro. Depois de tantos anos, ela o abordou com a voz embargada, metade por cansaço, e metade pela emoção de reencontrá-lo. As crianças ainda estavam se acostumando com a visão estranha de um cemitério, apenas olhando ao redor assustadas e segurando na barra do vestido da mãe, caladas.

 

— Justino - Chamou-o, com medo de ter alimentado muita expectativa para aquele momento.

— Ele interrompeu a sua oração e virou a cabeça, primeiro cruzando seu olhar com os de João e Ana, depois levantando a cabeça para vê-la. Ao reconhecê-la, levantou-se, abriu um raro sorriso e a abraçou. O choro que estava represado ganhou vida, e ela se viu abraçada àquele homem aos prantos, tendo esquecido de como era confortante um abraço de Justino. Ele usava da força na medida certa para dizer com aquele gesto de que ali ela estava segura. Sentia todo o seu calor e a sua paz trocando de corpos. Os filhos choravam juntos apenas porque a mãe o fazia, mas também eram amparados pelo homem estranho.

— O que aconteceu? São seus filhos?

Ela levou um tempo para querer soltá-lo e outro tempo para se recompor, limpando o catarro que escorria do nariz de João.

— Sim, são meus meninos. Eu saí de casa, e olhando pra mim você deve imaginar o motivo - Explicou, vendo-o analisar seus hematomas - Saí para não voltar nunca mais.

— E suas coisas?

— Deixei tudo pra trás, só trouxe umas mudas de roupas aqui nessa sacola. O que tem valor pra mim, já tá aqui comigo - Disse, colocando as mãos nas cabeças dos pequenos.

— Venha, eu te ajudo, vamos lá pra casa e conversamos melhor.

 

Ele levantou os filhos de Cláudia nos braços com a facilidade de quem segura duas pencas de chave, e seguirem caminhando, se olhando mutuamente, com Justino pensando que nada naquela vida era por acaso. Ele só precisava entender se aquela obra do destino era um presente de Deus, ou obra do cão.

 

 

Ele conhecia cada passo dado por ela. Deixava-a solta de propósito e fazia poucas perguntas para não impedi-la de cometer os deslizes necessários. Acompanhava as desventuras da namorada com a mesma alegria com que a sua mãe sentava diante da televisão preto e branco, ansiando por um capítulo da sua novela favorita. A emoção diante das cenas mais épicas era inevitável. Ele achava que não tinha nada de errado com ele. Algumas pessoas gostavam de colecionar besouros mortos colados em um painel de isopor. Quando criança, gostava de colocar alguns gafanhotos em uma garrafa vazia de refrigerante e a fechava com uma rolha para assistir a morte lenta dos insetos asfixiados. Aquele que morresse por último ganhava o direito de ser conservado em um pequeno pote vazio de geléia que ele pegava no lixo de casa, lavava e enchia de álcool. Normalmente era uma espécie de cor verde. A mesma que chamavam de esperança.

 

Entrou no Instituto Médico Legal já sabendo qual pessoa deveria procurar e onde encontrá-la. Não foi difícil achar quem fizesse o trabalho sujo sem chamar atenção. Mauro, fazia a manutenção dos refrigeradores da morgue durante a madrugada, quando não havia movimento algum. Nas horas vagas era detetive particular. Ganhava dinheiro tirando fotos de flagrantes de esposas infiéis. Inventou uma máquina portátil que disparava a cada cinco minutos, com um timer que programava os horários em que faria os disparos. Uma delas foi instalada atrás do interruptor que ligava as lâmpadas do necrotério, virada para as gavetas da enorme geladeira.

 

Apertou a mão do outro homem que fazia parte do seu plano e lhe estendeu um envelope pardo, contendo a quantia que tinham combinado.

 

— Belo trabalho, Jonas! Você daria um ótimo ator pornográfico! - Elogiou o rapaz, cumprimentando-o com frieza.

— Não esqueça que você prometeu apagar o meu rosto das imagens - Alertou, enquanto checava o conteúdo do envelope, e envergonhado por ele ter assistido a sua performance.

— Não se preocupe.

— As imagens ficaram boas?

— As da primeira vez não.

— Ainda bem que ela precisou de outro corpo. Aliás, você sabe qual a finalidade disso?

— Não faço a mínima ideia. Boa coisa é que não é, mas também não quero saber. O que me interessa já está comigo.

 

Sem querer prolongar a conversa inútil, ele se despediu e voltou para o carro satisfeito. Aquele jogo ativava uma área do seu cérebro que o deixava com uma sensação de arrebatamento mais forte do que qualquer entorpecente conhecido. Depois de saborear o torpor e absorvê-lo, girou a chave do carro e entrou no trânsito, ainda com dúvidas sobre como realizar o desfecho daquele caso. Tinha várias ideias, mas como uma boa carne de assado, precisava marinar um pouco mais todas elas.

 

 

Ainda havia algumas partes truncadas da carta, principalmente aquelas em que ele usava palavras difíceis demais. O professor sugeriu que ele comprasse um dicionário, e era o que faria na manhã seguinte. Já estava ganhando fluência na leitura de frases simples, e todo cartaz que passava em frente quando dirigia pelas ruas do Jardim Bagdá lhe interessava. Até diminuía a velocidade para lê-los, e ao fazê-lo, saía cantando pneus com um sorriso no rosto. Estava quase lá, e para extravasar um pouco, tinha chamado os rapazes para subir na pedreira no fim de tarde para treinar a mira atirando em umas latas. Lá ninguém os importunava.

 

Depois de colocarem vários sacos com latas de óleo vazias no porta malas, Montila, Nego Bó e Ramiro tomaram umas cervejas em Desidério e rumaram para a pedreira. Ramiro achou que era o efeito da bebida que o deixava mais desconfiado que o normal, mas desconfiava que um carro os estava seguindo. Depois que o carro sumiu da traseira deles, ele relaxou.

— Trouxe munição suficiente, Nego Bó?

— Sim, chefe. Dá pra recarregar os três tambores umas dez vezes cada um.

— Ótimo. Vamos ficar até enquanto tiver luz suficiente pra atirar. E fica sempre um montando guarda, certo? - Ordenou com a voz de barítono, ouvindo como resposta a anuência de ambos.

 

Montila sentia quando algo grande estava para acontecer, apesar de nunca precisar como, quando e onde. Ele achava ser um dom divino, algo da sua mediunidade não desenvolvida, como lhe disse certa vez uma amiga de sua mãe, que frequentava o centro espírita. Depois de aprender a ler corretamente, buscaria informações com a Véia Guida, que saberia orientá-lo.

 

O Maverick saiu da rua de barro batido e entrou pelo portão remoto de saída das caçambas que ficava do lado oposto da entrada principal, e onde não havia guarita. Aquela hora, os mineiros já tinham ido embora fazia tempo e ninguém rondava aquele lado, principalmente em véspera de fim de semana. Estariam sozinhos numa parte exaurida da pedreira, Subiriam pelos caminhos íngremes e estreitos até o topo, o que por si só era uma emoção à parte. O risco de despencar lá de cima, caso errasse uma manobra ou curva, era o preço a se pagar.

 

O início do trajeto era tranquilo, a via de acesso era mais larga, apesar dos pedregulhos soltos fazerem os pneus do carro dançarem soltos na superfície irregular. Após algumas curvas, a visão do terreno lá embaixo era vertiginosa, com os alojamentos diminuindo de tamanho e o terreno cada vez mais acidentado. Montila não lembrava que o terreno estivesse tão irregular e cheio de pedras pontiagudas.

 

Na metade da subida, com os três calados para não atrapalharem a concentração do chefe ao volante, que tinha cada vez mais trabalho de manter o carro em cima da pista, ouviram um som diferente do V8. Ramiro olhou para trás e confirmou a sua desconfiança. Aquele Alfa Romeo estava seguindo eles fazia tempo  Piscava o farol como se pedisse ultrapassagem, quase encostando na sua traseira.

 

Montila olhou pelo retrovisor e se assustou com quem viu ao volante do Alfa Romeo. O que ele queria com aquilo? O Maverick era mais potente, mas naquele terreno de barro e pedras não era vantagem alguma, além do que precisava fazer as curvas  devagar para não passar reto e cair lá embaixo. Começou a buzinar e acenar com a mão para que ele parasse de azucrinar, mas logo fincou as duas mãos de volta ao volante para controlar a direção do veículo quando recebeu uma pancada na sua traseira que quase o fez decolar. Enfiou o pé no freio e o carro deslizou um pouco mas reduziu a velocidade o suficiente para fazê-lo bater novamente e frear seus ímpetos. Engatou a marcha e cantou pneus, fazendo a próxima curva de maneira descuidada, com a velocidade um pouco acima do que seria normal naquela situação. Pedro Bó se segurava no banco da frente, enquanto Ramiro tinha virado para trás e tentava carregar o tambor aberto com as balas que caíram pelas fendas do banco.

 

— Acho que ele desistiu - Disse Ramiro, sem enxergar nada além da poeira densa que o Maverick fazia naquela parte da estrada.

— Melhor ficar de olho - Alertou Pedro Bó, enquanto via Montila lutar com o volante do carro para mantê-lo dentro da pista, com as pedras no caminho tentando lhe tirar do rumo.

— Posso atirar chefe? - Perguntou o capanga, já com a arma carregada e a mão para fora da janela, quando ouvem um tiro resvalar no paredão de pedra.

— Você atirou? - Montila perguntou exasperado.

— Não. Acho que veio do outro carro - Informou, apontando para os pára choques do seu caçador que vinha em zigue zague como a esperar tiros em resposta.

— Meta bala! - Ordenou o chefe.

 

Uma intensa troca de tiros sem direção ocorreu, com um deles atingindo o canto do vidro traseiro sem ferir ninguém, fazendo Ramiro se abaixar e não mais se levantar de medo. Foi o projétil que atingiu um dos pneus do Maverick que fez o carro rodopiar na pista, levantando uma nuvem de poeira, antes de se precipitar para fora da pista e despencar morro abaixo. O Alfa Romeo freou antes de passar reto pela curva e o seu motorista saiu do veículo ainda com o motor ligado para tentar ver algo lá embaixo, porém sem sucesso. O pai de Cândida esfregou as mãos nas calças para enxugar o suor, acendeu um cigarro e voltou para o Alfa Romeo, cantando pneus em seguida.


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