JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 15
Capítulo 15




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Pelo jeito esquizofrênico com que batiam à porta, ele podia imaginar quem estava atrás dela. Mas aquela hora? Montila já estava quase lendo e tinha faltado a aula naquele dia, por isso tinha ido se deitar mais cedo que o de costume. Será que tinha acontecido alguma coisa com o rapaz e a fofoqueira de plantão já estava espalhando a notícia.

— Já vai! Mas que inferno! - Protestou antes de abrir a porta e se deparar com a Dona Vilma apontando para o telefone público que ficava na frente da casa vizinha.

— Ligação pra você. Dizem que é urgente - Disse, vendo-o passar por ela sem nem lhe dar atenção, dirigindo-se ao orelhão.

— Obrigado também se usa viu, seu velho abusado! - Reclamou, enciumada, sabendo quem estava do outro lado daquela chamada, e indo embora na ponta dos cascos, mesmo dando um dedo da mão pra saber o que ela queria com ele.

— Alô!

— Balduíno? - Perguntou, contrariando ele de imediato, esquecendo que o ex-marido detestava com todas as forças o próprio nome.

— Me chame de qualquer outra coisa, por favor.

— Não tenho tempo para os seus resmungos. Aconteceu um acidente com a Lindinha. Foi na escola hoje de tarde. Ela tomou uma queda e desmaiou - Disse, chorosa.

— E como ela está agora?

— Ela ainda não acordou. Está no posto de saúde e sendo transferida hoje para um hospital aí perto. Eu vou junto. Balduíno, ela ainda não acordou! - Lamentou, frisando o que a aterrorizava.

— Eu estou indo pra lá.

— Não quero que Patrícia saiba de nada. Não quero atrapalhar o trabalho dela. Quando tudo ficar bem, eu mesma conto - Mentiu, acreditando que se a filha soubesse do ocorrido, tiraria a guarda da menina dela.

 

Conceição começou a chorar e a ligação caiu em seguida. O hospital ele conhecia, e era o que faria em seguida, ir até lá. Não era fatalista, já que encarava a vida como ela era, assim como os fatos. Sabia que o fato dela ainda estar desacordada desde a queda e sendo transferida, eram fatores que não contribuíam em nada para a sua fé. Mas a sua frieza o fazia raciocinar melhor, pois por outro lado a menina era jovem e ainda estava viva. Entrou em casa, tomou um banho pensando na possibilidade de ter que cavar um buraco para enterrar a neta. Não sabia se teria forças para tanto.



A NOITE DO LEILÃO 7

 

O gesto era repetido na frente de cada um dos homens. O retrato instantâneo saía da máquina e era entregue a Dinorá, que se prostrava diante do retratado sacudindo a fotografia no ar para secar e fazer aparecer a imagem mais rapidamente. Satisfeita com o resultado, entregou o material a Janice, que lhe cochichou no ouvido que Samira ficaria bem.

 

— Posso saber quais são as intenções da madame? - Arriscou-se a perguntar, o alfaiate, constrangido com a situação.

— Cavalheiros, todos vocês, a quem até alguns minutos atrás tinham a minha mais alta estima, possuem apenas uma chance de saírem por aquela porta vestidos e levando o seu retrato. E isso só vai acontecer quando o responsável pela covardia feita a minha filha se apresentar por conta própria - Disse, com uma voz calma, porém firme, fazendo os homens se entreolharam com os olhos arregalados, e prosseguiu - Identificado o autor, todos os outros serão liberados como se nada disso tivesse acontecido. Caso contrário, dividirão entre os senhores o valor que estipularei a título de indenização. Ainda assim, examinarei um por um em busca dos vestígios dessa violência. Se o cavalheiro não se apresentar espontaneamente, é claro.

— Por favor, quem  o fez, apresente-se e resolva logo essa situação. Tenho compromissos! - Exasperou-se o alfaiate, com as mãos na frente da sua cueca samba canção acetinada.

 

A cafetina aguardou por um minuto inteiro alguma manifestação. Ela se negou a desconfiar de alguém. Podia ser qualquer um. Todos estavam distraídos no sofá, e ocupados com as carícias das suas meninas. Aquele ataque sorrateiro não ficaria por isso mesmo. Há muitos anos planejava aquele dia, e o futuro de Samira dependia daquilo. Se liberassem os homens sem nenhuma contrapartida, seria o seu fim. Não estava preocupada com a polícia, nenhum deles daria queixa, mas se tivesse que fechar a mansão para sempre, que fosse com dinheiro no bolso.

 

— Como a menina está? Alguém tem notícia? - Perguntou o Dr Cassandro, o advogado, demonstrando interesse genuíno.

— Nada bem - Respondeu Janice, repassando a espingarda para Dinorá, que chegou mais perto do homem.

— Agradeço a sua preocupação, doutor, e assim como o senhor, também mantenho sigilo profissional com os meus clientes,  mas entenda que diante dessa situação, isso aqui será divulgado em praça pública caso eu não receba o devido pelos senhores.

— Além do que consumi, eu não devo nada a senhora! - Gritou o gerente do armazém que até então estava calado. Aquela era a sua segunda vez no estabelecimento.

— Se não me engano, você só esteve aqui uma vez antes dessa, correto?

— Sim, senhora. E me desculpe os meus arroubos. Eu só quero ir pra casa ficar com os meus filhos.

— E eu quero cuidar da minha filha em paz se os senhores permitirem - Retrucou, olhando com mais atenção o nervoso do homem, que abria e fechava as pestanas sem descanso.

 

Quando Dinorá percebeu que precisava agir e escolher o primeiro candidato que ficaria nu na sua frente, os homens começaram a olhar por sobre o ombro das cocotas. A cafetina se virou, e viu Samira saindo do quarto e se aproximando do grupo, cabisbaixa. Abriu passagem por entre as cocotas e se colocou ao lado da mãe, segurando-lhe um dos braços. Com o silêncio absoluto, quase se podia ouvir os corações batendo em descompasso. A menina, lançou um olhar duro a cada um dos cavalheiros em estado de seminudez, e levantou uma das mãos apontando.

— Foi ele, mamãe.

 

 

Ela fez a mesma pergunta três vezes, para o desconforto da secretária da administração do cemitério, que enfatizou a última resposta.

— Certeza absoluta, Dona Agda! Depois de cinco anos, caso a família não compre um jazigo para transferir os ossos, precisamos exumar e queimar os restos. O povo anda morrendo demais!

 

Aquilo deixou a velha curandeira arrasada. Havia criado coragem e se preparado para visitar seus pais e irmã por tanto tempo. Até preferiu vir antes do dia de Finados e evitar o tumulto costumeiro. Ficou ali sentada por um tempo, triste com a situação. Tomou um copo de água oferecido pela moça paciente, levantou e se aprumou na sua bengalinha, que só usava para caminhadas mais longas como aquela. Acenou e saiu perdida por entre os túmulos, lendo nomes dos mortos para ver se encontrava algum similar ao da sua família e deixar as flores que tinha trazido. Mas não teve sucesso. Encontrar um Timóteo, uma Magnólia e uma Mirtes, não era uma tarefa fácil em vida, que dirá ali.

 

Atravessou as alamedas, e quando sentiu-se cansada, rumou para a saída. Quase no fim do trajeto, viu a vistosa capelinha que Justino tinha erguido para o irmão, e quando já estava decidida a fazer uma oração por ele e pousar os cravos, algo lhe chamou a atenção no túmulo ao lado. Espremeu as vistas para ler o epitáfio, e sorriu com a frase espirituosa: ‘“Eu disse que não morreria de cirrose“. O pré nome do rapaz falecido ainda jovem era José Carlos, um nome comum para muitos, mas não para ela. Esse era o nome do seu querido avô, o único que sofreu com a sua partida.

 

Ajoelhou-se com dificuldades devido a artrite, fez o sinal da cruz e orou em voz baixa por cinco minutos, pedindo a Deus que sua família estivesse num bom lugar, apesar do que lhe haviam feito. Por terceiros soube do ataque cardíaco fulminante do pai, seguido em poucos meses do passamento da sua mãe que já vinha sendo devorada por dentro por um tumor maligno no ovário. Janice lhe disse que a irmã caçula se suicidou ainda no mesmo ano, grávida do próprio pai. A casa foi entregue a um irmão do seu pai em troca das dívidas que ele tinha contraído após a demissão desonrosa da universidade em que lecionava, logo depois que descobriram a prática do incesto com a filha caçula.

 

Recompôs-se quando viu o sol se despedindo do dia, limpou os joelhos sujos de terra antes de abaixar a saia, ajeitou as flores próximo da lápide e acendeu uma vela na intenção da criatura desafortunada que deixou o mundo dos vivos no auge da juventude. Pensou no seu filho, a quem tantas vezes pediu perdão aos prantos na solidão do seu quarto, sem saber que era justamente ele que estava enterrado bem ali diante de si, a sete palmos de profundidade e a quem tinha acabado de prestar homenagem. O mesmo que se matara injetando chocolate nas veias. O mesmo que tinha sido abandonado e encontrado pendurado num pé de cacau.

 

 

O sorriso fazia parte do seu trabalho, mas naquele dia não conseguiu colocá-lo no rosto. Seu último cliente foi um chato de galochas que a tinha examinado nua de cima a baixo com uma lupa apenas para ver se a moça tinha a saúde e higiene que ele esperava. Depois da prévia inesperada no qual já havia ido metade do seu tempo, ele tirou a roupa e pediu que ela se deitasse nua sobre ele. E assim ficaram inertes até quase o final do atendimento, quando ele se levantou e pediu que ela abrisse as pernas. Apenas levou a mão ao seu membro e o friccionou até molhá-la com o pouco que conseguiu extrair de dentro. Como era de praxe, acompanhou-o até a porta e recebeu o seu pagamento com um saco de moedas. Aquela criatura tinha quebrado o porquinho para se deitar com ela? Talvez um dia escrevesse um livro detalhando tais bizarrices.

 

Acompanhou pela janela ele se encaminhar para o carro que estacionou longe dali. Precaução sem sentido algum, já que não podia ficar invisível durante o trajeto. Homens! Ao findar o raciocínio, se surpreendeu com o que viu. Justino entrando em casa, carregando duas crianças no colo, acompanhado de uma mulher. Acendeu um cigarro e assistiu a cena escondida atrás das cortinas. Quem diabos era aquela mulher? Tentou achar alguma explicação plausível e foi eliminando hipóteses. Ele não tinha irmã e nem poderia ser, afinal ela era branca. Também não eram filhos pelo mesmo motivo. Namorada? Ela saberia se fosse. De qualquer maneira logo descobriria, afinal aquilo estava se sobrepondo aos seus interesses, e ela precisava defender o que era seu. Talvez ela precisasse deixar claro algumas coisas para ele antes que fosse tarde demais. Se já não fosse.

 

Olhou para o relógio na parede e correu para o banheiro. O próximo cliente deveria chegar a qualquer momento, e ele era ainda mais esquisito que o anterior. Exigia que ela fizesse umas posições estranhas, uma ginástica na qual não via a menor graça. E depois ficava toda dolorida. Estava sendo bem remunerada para realizar tais fetiches e o encanamento do casarão precisava de manutenção. Se olhou no espelho e concluiu que ela também estava necessitando do mesmo.

 

 

Fez o trajeto a pé em meia hora e perguntou na recepção a respeito da ambulância que deveria ter chegado de Sabugueiro. Não precisou esperar a resposta quando viu Conceição sentada num canto da sala com a cabeça baixa, segurando um terço na mão.

 

— Como a menina está? - Perguntou com toda a calma para não assustá-la. Mas o que o assustou foi que ela ficou de pé e deu-lhe um abraço.

— Nossa neta não está bem. O médico disse que ela está com um coágulo na cabeça e precisa manter ela desacordada para evitar um mal maior - Respondeu aos prantos, parando para questioná-lo - Você sabe rezar, Balduíno?

 

Ele pensou em reprimi-la por chamá-lo pelo nome. A vida inteira ela tinha feito aquilo quando queria aborrecê-lo. Mas naquele momento ele percebeu que não era o caso. Ao invés de responder, apenas a abraçou novamente. Aquela senhora de traços delicados, tinha sido a sua conquista mais difícil. Ela era a vedete da escola, o objeto de desejo dos marmanjos que a olhavam como se fosse uma entidade, algo etéreo saído dos sonhos. Ele era o patinho feio da classe, desajeitado, tinha um andar de pato manco e gaguejava. Mas era conhecido por esbanjar inteligência e notas dez. Pois foi o que chamou a atenção de Concinha.

 

Casaram ainda jovens e ela não demorou para engravidar de Patrícia. Foram nove meses difíceis de sangramentos, inchaços, dores e contrações antes do tempo. Ele deixou os estudos para trabalhar e comprou um pedaço de terra para plantar. Viveram em harmonia por um tempo, até a chegada da sua cunhada, estopim para o fim da relação. Não queria ver aquela cadela sedutora nem cravejada de diamantes. Aquela medusa que o enfeitiçou e o fez perder o juízo por completo. Preferiu sair de casa correndo somente com a roupa do corpo para não perder a sanidade. Tempos depois soube que o pedaço de mau caminho se amancebou com o prefeito. As más línguas diziam que era ela quem de fato mandava na cidade. Desde então, ele nunca mais voltou, deixando a mulher quando a filha já era mocinha.

 

— A menina é forte, ela vai ficar bem - Contemplou.

— Como você sabe? Você nem conhece a sua neta.

— Estou aqui para corrigir esse erro, e Deus há de permitir - Disse, sem mesmo acreditar que ele estava falando o nome Dele, já que não era um fã de primeira hora das escrituras, depois de enterrar tanta gente morta dos jeitos mais cruéis. Se aquilo tudo era castigo, sobraria alguma alma pura sobre a terra? As pessoas já não sabiam mais o que fazer para terem uma morte tranquila e ganharem o reino dos céus, dada a inversão dos valores morais naqueles dias.

 

Ele notou um médico se aproximando deles lentamente, com a cabeça baixa e a roupa suja de sangue. Ele queria estar errado ao interpretar aquela cena como a antecipação de más notícias, e ele era bom naquilo.


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