JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 11
Capítulo 11




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808851/chapter/11

Assim que ela entrou pela porta da redação, Peixoto, que estava em reunião com a diretoria na sala envidraçada conhecida como aquário, lhe lançou um olhar que era um ‘’O que houve?’’. Se ela contasse a verdade, provavelmente sairia dali para o RH assinar sua demissão e poderia ser processada para ressarcir tudo o que o jornal já tinha gasto com ela na clínica, e de quebra, virar notícia ruim por ter enfeitado a cabeça do chefe. Sem contar os salários que foram pagos integralmente, mesmo com o seu afastamento. Diria que estava atrás de uma pista do caso que investigava, e que tinha se provado uma furada, ainda lhe dando um belo prejuízo.

 

A primeira ligação do dia fora dele, perguntando para onde o guincho levaria o carro avariado. Lógico que ela deu o endereço do pátio de estacionamento do jornal. Ou ele esperava saber onde ela morava? Olhou para o telefone no gancho e ficou tentada a ligar para Domingas, a vizinha da sua mãe, só para ouvir um pouco a voz da filha. Aquela repulsa que sentiu ao vê-la nos seus braços ainda persistia tantos anos depois. Ela estava bem morando e sendo criada pela avó, e aquilo a confortava.

 

Começou a ler os recados, e entre eles havia um de Jonas, pedindo para que ela retornasse à chamada. Discou o número e ele atendeu no primeiro toque, como se estivesse roendo as unhas sobre o aparelho, esperando que ele tocasse. Avisou que era bem provável que o segundo cadáver que ela tanto precisava, fosse um indigente por não ter sido reclamado com trinta dias de geladeira. O rapaz estava afoito, como se quisesse possuí-la o mais rápido possível. Ela sabia que esse era o pagamento, e não se importava de jeito nenhum, desde que o objetivo fosse alcançado.

 

O outro recado que chamou a sua atenção veio completar aquele mesmo assunto. Ao receber o seu Monza todo estropiado na garagem do jornal, o motorista do guincho lhe entregou um envelope lacrado, e avisou que o serviço já estava pago. Ela agradeceu surpresa e voltou para a sua sala, pensando em como mandar aquilo para a oficina. No envelope estava um bilhete com uma letra desenhada, como se fosse a escrita de um professor de caligrafia, dizendo ‘’Preciso da segunda encomenda para completar o combinado’’. Ele estava lhe dando pressa.  Mas, porque? Ele tinha explicado vagamente o plano, mas ela não entendia nada de profundidades de covas, exumação, etc. Não estava com tanta pressa de trepar com Jonas outra vez depois daquela sessão de exorcismo da noite passada com o Pajé Africano. Era nele que ela estava pensando, mas de qualquer maneira teria que apressar as coisas.

 

Ligou para o necrotério outra vez e marcou uma visita para o dia seguinte pela manhã. Queria um tempo ao menos para recuperar a sua perseguida. Só lhe faltava Peixoto entrar pela porta e marcar algo para aquela noite. Não houve tempo de piscar os olhos e o homem surgiu na sua frente como uma entidade do além.

— Não tenho tempo agora para ouvir o que você tem a me dizer, mas passo pra te buscar em casa às 8, ok?

Ela só consentiu com a cabeça, recebendo uma bitoca na boca do seu chefe, que na mesma velocidade que entrou, foi embora. Ela estava se saindo uma marafona de baixo meretrício. Precisava tomar mais uns dois banhos pra tirar o cheiro imaginário de Justino, que lhe impregnava o corpo. Pegou a bolsa e foi atrás de um táxi e ver se tinha extrato de tomate em casa para colocar um pouco sobre o modess.

 

 

Do meio de uma pilha de livros que ele tinha separado, caiu um recorte de jornal no chão. Ele o apanhou, e relendo aquela matéria pela enésima vez, percebeu que o talento que ela tinha para a escrita tinha herdado do pai. Texto bem enxuto, concordância e pontuação impecáveis. Até um analfabeto funcional compreenderia que se tratava de um abuso de autoridade. Ele não tinha nada a ver com os personagens envolvidos com a notícia, e sim com quem a tinha escrito. O nome dela estava ao final impresso em negrito. Dobrou o recorte novamente e recolocou no mesmo lugar, levando os livros didáticos para a mesa de madeira onde fazia suas refeições. Ajeitou um dos pés que estava bamba colocando uma tampinha de garrafa embaixo. Montila devia estar prestes a chegar para a primeira aula e trazendo o pagamento consigo, uma preciosa garrafa de aguardente, que ficaria para depois do compromisso.

 

 

A NOITE DO LEILÃO 6

 

— Bem, cavalheiros, começaremos com um lance de 500. Quem dá 500? - Perguntou, com o olhar passeando de um rosto para o outro.

— Mas já, assim tão alto? - Reclamou o alfaiate segurando o talão de cheques.

— Em que lugar o senhor encontra um cabaço pra comprar, Sr Arlindo? - Perguntou para o magrelo baixinho e grisalho, que rondava os cinquenta anos, e que levantava a mão meio sem convicção, talvez para não passar vergonha entre os convivas.

— Já temos 500. Quem dá 1000?

 

Antes de faltar luz em todo o bairro, ela viu de relance duas mãos se levantarem, cobrindo a oferta. Houve um princípio de tumulto com a queda de energia e a casa ficou completamente às escuras.

 

— Janice, providencie velas por favor! - Ordenava a cafetina, enquanto acalmava os ânimos dos homens, que procuravam se abrigar nas cadeiras e sofá, irritados com a interrupção indesejável.

 

Janice levou mais uma das meninas consigo e as outras foram tateando de encontro aos clientes para lhe fazerem um agrado e acalmá-los, o que Dinorá já estava fazendo.

 

Ela tinha pavor do escuro desde pequena e não conseguiu sair do lugar de onde estava. Não havia com quem brincar, e sua mãe quase não a deixava sair, a não ser para a escola. A mãe dos seus colegas a convidava para aniversários, mas a sua mãe sempre estava ocupada demais para levá-la. Fora do colégio, a sua vida se resumia ao seu quarto, e quando escurecia e os ruídos na sala começavam, sua mãe mandava que apagasse a luz. No início, ela a deixava sair discretamente pela porta e usar o banheiro dos fundos. Aquilo tinha que ser feito no escuro. 

 

Um dia ela encontrou alguém usando o mictório. Só distinguiu ser homem porque estava fazendo xixi em pé. Ele se virou para ela, ainda com as calças abertas e a fez pegar contra a sua vontade numa coisa macia, que ela não viu, mas sentiu. Depois ouviu um sshhhh! e ele começou a mexer uma das mãos tocando o negócio esponjoso. Quando ele levou a mão dela para o membro outra vez, ainda movimentando-a com frenesi, aquele negócio já tinha a consistência de madeira. Não demorou para algo lhe cuspir o rosto. Depois ele saiu às pressas, e a menina de onze anos voltou para o quarto em silêncio para limpar aquela coisa visguenta sem fazer as suas necessidades, urinando na cama. Ela nunca contou a ninguém. Pouco tempo depois, Dinorá construiu o banheiro no quarto alegando que ela já estava com os carocinhos dos peitos inchados.

 

Um som abafado, seguido de um leve rangido de madeira, que apenas uma das cocotas que estava sentada no colo de um dos clientes ouvia. Ela riu imaginando que uma das colegas já estava tratando de ganhar o seu ali mesmo na escuridão da sala. Não adiantava procurar com os olhos, pois o breu era absoluto. Resolveu levantar pra saber quem era a safada, sob protestos do alfaiate com a desculpa de ir buscar uma bebida. Saiu tateando com a posição mental de cada móvel e seguindo o burburinho de vozes. Tocou em todas as colegas, inclusive na patroa, mas ainda assim o rangido e o mesmo som abafado lhe seguia. Só podia ser Janice e Das Dores que estavam procurando fósforos e velas. Lembrou de Samira, e saiu com as mãos na frente como uma cega, para perto da escada onde a menina estava deitada na mesa. Ouviu passos apressados se distanciarem dela.

 

— Jana, é você? Samira? Falem alguma coisa.

 

Em seguida, a menina soltou um grito longo e histérico que poderia ter sido ouvido de muito longe e que paralisou os presentes por um segundo. Janice chegou com uma vela acesa guiando os presentes até a moça. Suas partes estavam ensanguentadas e aquela hemorragia não era devido ao fluxo menstrual. Seu rosto estava banhado de sêmen, e o seu semblante era de alguém que tinha acabado de levar uma descarga elétrica, com os olhos quase a pular das cavidades. A menina estava em choque. A cena que a cafetina e os demais presenciaram a fez tomar uma decisão drástica baseada em sua experiência, já que aquilo não poderia envolver as autoridades. A autoridade naquele lugar chamava-se Dinorá.

 

— Janice, tranque a porta e me dê a chave! - Ordenou em alto e bom som, sem ouvir um sussurro de protesto sequer.

 

As expressões de cada presente foram reveladas quando a energia voltou de forma repentina. E todas eram de espanto. Ou fingido, ou espontâneo. O fato é que alguns foram pegos com mãos em movimentos suspeitos. Uns suspendendo a calça, outros com a mão dentro da calça, e o alfaiate subindo o zíper da calça alegando voltar do banheiro. Nenhum dos presentes estava nu.

 

Samira foi socorrida por Janice e Das Dores que a levaram para o seu quarto carregada, já que não conseguia sequer piscar os olhos, que dirá caminhar. Deram-lhe um banho limpando a sujeira visível, lhe vestiram com uma bata e a deitaram na cama, depois de concluírem que todo o sangue viera do rompimento do hímen, que fora dilacerado com violência. A decana pediu que Das Dores ficasse ao lado dela pelo tempo que fosse necessário, até que ela pudesse voltar a consciência e dizer alguma coisa que fizesse sentido. Quando retornou à sala, viu os homens prostrados de pé, lado a lado, apenas de cuecas, com Dinorá apontando uma espingarda para eles, que ela nem sabia que existia naquela casa, e uma das cocotas com uma máquina polaróide fazendo retratos em sequência a mando da patroa.

 

Macerava umas folhas no pilão para uma garrafada, enquanto proseava com Donana, uma cliente de longa data. A idosa reclamava de uma dor nos quartos e um xixi pouco que levava um dia inteiro pra fazer. Guida disse que era fraqueza nos rins e se pôs a fazer a receita que dizia ser melhor que os venenos que a farmácia vendia. Suas pajelanças gozavam de bom conceito, apesar de uma vez ou outra a coisa não ter fluído muito bem e o consulente ter batido as botas. Nesse caso era coisa da idade mesmo, dizia a língua do próprio povo.

 

— Guidinha, cê lembra uma vez que apareceu um menino recém parido pendurado numa sacola lá num galho do cacaueiro no terreno baldio? - Perguntou, ganhando a atenção da curandeira, que parou o que fazia por uns instantes.

— Lembro, foi aqui perto - Respondeu num fiapo de voz. Aquele assunto não era o seu preferido.

— Pois então, dizem que ele foi encontrado por Dezinha do mingau. Você sabe quem é ela, filha de Sr Gedésio da borracharia, aquela que não podia embuchar. Dizem que registrou o menino e tudo. Depois disso se mudou, ninguém sabe pra onde. Graças a Deus que o bichinho teve o amparo de uma alma boa. A desalmada que fez aquilo hoje deve comer o pão que o diabo amassou se ainda tiver viva, cê num acha?

— Ela deve ter se arrependido de ter feito aquilo. Devia ser nova e num momento de desatino abandonou o menino - Comentou sem levantar a cabeça.

— Eu lembro das fofoca do povo de língua grande que até botaram seu nome na roda. Na época você era gordinha, mas lembrei ao povo que você já era assim há mais tempo.

— Pois é, só as mamães elefantes levam dois anos pra parir um filhote - Disse, destilando um pouco de ironia ao ter certeza que ela era uma das candidatas como autora do infortúnio.

 

Fez uma anotação mental para lembrar de buscar informações do paradeiro de Dezinha do mingau sem que despertasse muita atenção. Começaria pelo velho Gedésio, que ainda estava vivo e trabalhando na sua borracharia. Ela não sabia onde aquilo poderia dar, mas ao menos tinha tentado algo. O terço que sua mãe Dolores tinha deixado, não saía do seu pescoço desde aquele dia, e apesar do seu comportamento sincretista, era temente a Deus. Concluiu a receita cantando um aboio para evitar que Donana abrisse a boca e falasse mais alguma coisa sobre aquele assunto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "JARDIM BAGDÁ" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.