Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 5
Segundo Encontro




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Vaguei, vaguei e vaguei.

 

Não havia saída.

 

Cruzar as portas de vidro significava voltar para o ponto de partida. Cada vez eu que tentava, tornava a aparecer em um corredor aleatório do hospital. A saída era o começo e o começo era o fim.

 

Não havia o que fazer além de vagar, então eu vaguei.

 

Observei o começo e o fim de todas as pessoas que passavam por lá, pois cada novo nascimento significava também uma nova morte.

Primeiro, houve aquele casal adolescente que parecia estar muito apaixonado. Os dois tiveram um bebê no que parecia ser o auge do inverno, pois naquela época ventava muito e todos envergavam blusas de frio. Depois de um tempo, a garota apareceu com um olho roxo e três dentes a menos, mas seu namorado a levou de volta para casa. Pouco depois, ela tornou a reaparecer. Tinha um nariz quebrado, mas mesmo assim seu namorado a levou de volta para casa. Então um dia a trouxeram em uma maca, pois ela havia sido espancada até quase morrer. Não tive mais notícias dela, mas sei que o seu namorado nunca mais a levou de volta para casa depois disso.

A senhora idosa parecia viver no hospital, pois acompanhava o netinho que estava muito doente. Haviam-no entubado e ele não tinha previsão para acordar. Ela era muito gentil e tratava bem todas as pessoas ao seu redor, mas sempre chorava muito quando ficava sozinha. Parecia ter uma fé inabalável e estava sempre com um terço em mãos, rezando pelo menino desacordado. Um dia, ela prometeu aos céus que iria a pé até o maior santuário do nosso país, que fica em outro estado, se os santos devolvessem o garoto. Querendo ou não, ele acabou despertando depois de um tempo e os dois ficaram bem. A última vez que ouvi falar deles foi quando a senhorinha apareceu na TV. Ela estava de pé no acostamento de uma rodovia, cercada por pessoas e usando uma capa que a protegia da chuva. Aparentemente, tinha ficado bastante famosa ao tentar cumprir sua promessa.

 

Havia um jovem rapaz que sempre trazia sua esposa para a quimioterapia. Ela não tinha mais cabelos, mas usava lenços muito bonitos. A moça estava sempre alegre e era muito boa em artesanato. A equipe médica e os pacientes da oncologia gostavam bastante dela, a ponto de todos aparecerem usando as pulseiras que ela fazia. Um dia seu esposo precisou trazê-la para a emergência e ela nunca mais saiu do hospital com vida. Não se tornou um fantasma, no entanto. Talvez o segredo para se partir em paz fosse ser muito amada em vida.

O tempo parecia passar e repassar, desdobrar sobre si mesmo e então voltar a se enrolar. Por causa disso, eu fiquei muito surpresa quando voltei a rever o garoto de olhos azuis. Apesar de ter perdido muito peso, ele continuava com vida. Estava sendo empurrado em uma cadeira de rodas em direção ao estacionamento e meus olhos pousaram nele no exato momento em que ele cruzou a porta dupla de vidro da entrada.

 

Mesmo que mil anos se passassem, eu jamais poderia colocar em palavras a maneira como eu me senti naquele momento. Era inexplicável e estarrecedor. 

 

Era como se, naquele momento, eu finalmente soubesse que estava livre.


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