Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 4
Hospital




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Engoli em seco ao ver a fachada iluminada, a grande cruz opressora pairando sobre os desavisados. Era um lembrete perpétuo de que muitos entravam, mas poucos saiam. Eu havia acompanhado o garoto de olhos azuis durante todo o percurso. Segui em um canto dentro da ambulância, observando sua consciência se esvair e regressar inúmeras vezes enquanto o amigo dele, desesperado, parecia estar a beira de um ataque de pânico.

 

O tempo correu mais rápido do que eu era capaz de acompanhar. De repente eu me vi correndo atrás da maca, ainda presa naqueles olhos oscilantes que não paravam de me seguir. Todos os corredores se reduziram a um borrão de luz frenético. Jamais soube quantas voltas eu dei antes de duas grandes portas azuis engolirem o garoto ferido e os paramédicos sumirem com ele indeterminadamente.

 

Eu simplesmente podia ter passado para o outro lado, mas eu senti que aquele era um limiar que meu corpo imaterial não deveria cruzar.

 

Havia algo terrivelmente errado e eu podia dize-lo só pela maneira esquisita com que os sentimentos se entrecruzavam dentro de mim. Como era estranho essa coisa de sentir. Minha alma sempre estivera adormecida, mas agora eu quase podia perceber um coração batendo no meu peito. Isso era impossível, mas a sensação ainda estava lá. Era quase como estar prestes a perder algo importante, ou melhor, era como estar perdendo algo que eu só percebi que era importante agora. Mais impossível ainda. Eu não tinha nada que importava.

 

Não tinha nem minha própria vida.

 

Tudo que eu queria era encontrar a saída, então comecei a vagar.

 

Não havia um lugar no mundo em que a morte não estivesse presente, mas se eu pudesse escolher três lugares específicos e elegê-los como a sua morada oficial, eu escolheria as igrejas, os cemitérios e os hospitais. A morte, assim como a vida, é feita de etapas. Uma vez que você tenha se despregado de seu corpo, leva um tempo para compreender que você não está mais vivo, e esse ínterim acaba se tornando o estado perpétuo de alguns espíritos. Perdidos, eles vão em busca de ajuda no lugar que costumava auxiliá-los quando eles ainda eram vivos: hospital, para os feridos e doentes; igreja, para aqueles que tem fé.

 

A fé humana era outra coisa curiosa. Muitas vezes, era a única coisa que acompanhava uma pessoa desde o seu primeiro abrir de olhos até seu último fechar de pálpebras, mas simplesmente desaparecia depois da morte. Para muitos dos espíritos que tinham consciência não fazia sentido continuar adorando uma entidade invisível agora que eles sabiam que não se encontravam com ela depois de sua passagem. Para outros, a fé ainda era sua única chance, então eles ficavam presos dentro das igrejas, chorando ao lado do altar e esperando pela misericórdia divina.

 

Quanto aos cemitérios, era óbvio. O último lugar de descanso de nosso corpo era sob um túmulo e depois que você morre é difícil ter para onde ir. Não há como saber o que determina quem fica preso à terra e quem parte para os planos superiores. Há tantos de nós lá, então a maioria acaba decidindo permanecer entre os seus.

 

Estive em vários cemitérios desde que morri, mas não encontrei nenhum em que eu estivesse enterrada. Seria difícil descobrir qual era meu túmulo, uma vez que eu nem sabia qual era meu próprio nome, mas sempre acreditei que pudesse ter algum tipo de sensação que me guiasse até ele. Gostaria de saber mais sobre mim, mas naquela existência esquisita eu já tinha entendido que talvez não fosse possível. Eu era um daqueles que os espíritos chamavam de Esquecidos, uma alma que se perdeu de si mesma depois da morte.

 

Aparentemente, eu era muito boa em me perder. Tinha me perdido dentro do Hospital também.

 

Onde diabos estava a saída? Eu tinha passado por ela somente a alguns minutos, não podia simplesmente ter sumido assim!

 

Atravessei um conjunto de portas duplas e me deparei com uma sala ampla, repleta de leitos ocupados. O silêncio predominava, entrecortado apenas pelo bip dos aparelhos eletrônicos que mediam os sinais vitais dos pacientes e pelo gotejar do soro. A maioria dos pessoas ali tinha grandes seções de seus corpos cobertos por bandagens. Às vezes os pés ou um braço, até mesmo o rosto. Em um canto, havia uma figura de sexo indefinível e totalmente adormecida, com o corpo todo enrolado. Do meu ponto de vista parecia que apenas seus olhos e seus lábios tinha ficado para fora, mas era possível antever a pele esturricada por baixo. Aparentemente, eu estava na ala de queimados.

 

Então eu o vi, o espírito parado ao lado da janela. Seu aspecto era terrível: uma figura totalmente negra e com feições indistinguíveis, exalando a terrível aura dos que se corromperam. Era possível divisar alguns fragmentos de bandagem atados aos seus braços, mas eles pareciam muito velhos e se desfaziam. O rosto era a parte mais difícil de se encarar. Possuía apenas dois olhos brilhantes como lâmpadas e um conjunto de dentes largos e sinistros. Soube imediatamente que ele também me via e era como se aquele terrível olhar me consumisse por inteiro. Rapidamente voltei para o corredor, tentando chamar o menos de atenção possível para mim mesma. Eu sabia que jamais estaria em segurança se nós dois permanecêssemos no mesmo lugar. Percebi, com certo alívio, que ele não tinha me seguido.

 

Enquanto alguns espíritos perdiam qualquer contato com as sensações, outros se apegavam profundamente às suas emoções, especialmente as ruins, e se transformavam em uma massa escura de negatividade. A partir de então, eles ganhavam uma tremenda influência sobre o ambiente e as pessoas que estavam nele. Eu podia apostar que a maioria dos pacientes naquele recinto teria uma recuperação bem mais lenta e dificultosa do que o normal, isso falando dos que se recuperavam, e que a maioria dos equipamentos estragava o tempo todo. Os profissionais encarregados daquela sessão dificilmente deviam encontrar alguma felicidade em suas vidas pessoais e jamais saberiam que isso não acontecia por conta deles. Não havia como se livrar de uma influência daquelas, pelo menos não que eu soubesse. O máximo que eu poderia fazer a respeito era lamentar.

 

Triste, de fato, mas não havia nada que pudesse ser feito. Um espírito que se perde uma vez está perdido para sempre.

 

— Moça! Você viu a minha mãe? — perguntou uma vozinha.

 

Me virei para dar de cara com um garotinho pequeno, de seis anos de idade no máximo. O cabelo liso e negro estava mantido no lugar com gel e ele trajava uma bermuda cáqui, blusa branca de abotoar e suspensórios. Qualquer coisa nele não parecia pertencer a essa época, mas o mais chocante era sua face. O lado direito havia sido completamente queimado e formava agora uma massa de profundas cicatrizes ao redor do olho, sobre uma pela negra e retorcida como couro. Na região do maxilar, bem próximo ao lóbulo da orelha, era possível ver uma protuberância óssea no lugar onde a carne tinha sido arrancada. O lado esquerdo permanecia intacto e tinha conservado uma face angelical brindada por olhos tão azuis quanto o céu. Percebi que as queimaduras serpenteavam pescoço abaixo, marcando o braço e a perna direita do garoto. Assim como eu, ele não estava mais vivo e isso era perceptível pela estranha transparência que sua imagem assumia em oposição aos outros corpos sólidos que nos cercavam. Provavelmente, ele era inocente demais para saber disso e permanecia vagando, sabe-se lá por quanto tempo, atrás de uma mãe que já não devia mais estar nas dependências do hospital há anos.

 

— Desculpe, garoto. — eu disse rapidamente. — Mas se eu a vir, digo que está procurando por ela.

 

Seu rostinho deformado se iluminou e ele deu um sorriso disforme. Embora sua face esquerda parecesse bela, o lado direito lembrava uma terrível gárgula, pois a ausência de lábios gerava uma distorção estranha. Provavelmente eu era a primeira pessoa que falava com ele em muito tempo.

 

— Você não pode me ajudar a encontrá-la?

 

Toda aquela inocência era dolorosa.

 

— É que eu já estou indo embora, mas não vá muito longe. Daqui a pouco você encontra.

 

E me virei rapidamente, muito ciente dos terríveis olhos tristes que me acompanhavam. Não adiantava ajudar um espírito perdido. Eles nunca se encontravam.

 

Tudo que eu queria era me afastar, então desci a escada rapidamente. Desemboquei em um longo corredor. A iluminação lúgubre não fazia com que eu me sentisse mais confortável, mas a tensão diminuiu quando percebi que apenas pessoas vivas me cercavam. Os assentos desolados que costumavam ficar ao lado das portas dos consultórios e quartos estavam praticamente vazios, exceto por uma outra pessoa com aspecto de cansado. Deveria haver ainda um ou dois andares até a recepção, então desci outro lance de escadas. As portas de mil consultórios se estenderam na minha frente. Confusa, continuei andando.

 

Um quadrado de luz capturou a minha atenção. Cravada numa parede havia uma janelinha de vidro responsável por banhar o corredor em uma luminosidade esbranquiçada. Atrás dela havia um cômodo largo com vários berços enfileirados, parcialmente ocupados por recém-nascidos. Soltei um suspiro ao perceber que havia chegado à maternidade e me aproximei mais da janela para observar os bebês. Era difícil não se derreter diante daquela visão.

 

Foi então que captei um movimento estranho com o canto do olho.

 

Ah não.

 

Ereta em um canto havia uma mulher. Era muito alta e devia ter mais de dois metros de altura, pois o topo de sua cabeça praticamente tocava no teto. Assim como outros espíritos corrompidos, ela era uma massa de profunda escuridão, exalando uma aura negra e terrível. Não era possível discernir seu rosto, mas havia muito cabelo, caindo em longas mechas ao redor de seus ombros e cobrindo o corpo até a altura do joelho.

 

Aquela mulher era diferente dos outros espíritos que eu tinha visto, pois era muito mais forte do que eles. Dei um passo para trás temendo ser vista, mas percebi que os olhos espectrais dela não estavam voltados para mim. Ela estava montando guarda ao lado de um berço onde uma adorável garotinha (supus que o fosse devido ao macacãozinho rosa) ressonava suavemente. Se eu pudesse estabelecer uma comparação, diria que aquele espírito maligno era como um inseto e a garotinha era a lâmpada.

 

Um cheiro forte e pungente invadiu o ar.

 

Prendi a respiração, aflita com o que aquilo poderia significar.

 

A mulher fantasmagórica estendeu seus dedos longos e sinistros na direção do bebê. Observei atônita eles atravessarem o berço, numa tentativa falha de tentar pegar a criança no colo. A mulher ficou agitada e a criança acordou. Esperei pelo ruído profundo de seu choro, mas então notei, não sem espanto, que ele nunca viria. A garotinha sufocava.

 

O fantasma ficou exasperado, eu fiquei exasperada. Sem saber o motivo, eu estendi minhas mãos na direção dela e senti um fluxo de energia perpassando meus braços. Os berços todos se moveram de uma vez só, arrastados de sua posição inicial como que levados por um vento misterioso. Meus olhos se encontraram com o do espírito maligno e eu soube que ele tinha notado minha presença. Enraivecida, a mulher soltou um grito profundo. O som era assustador e eu teria encolhido e chorado se não precisasse correr.

 

Ouvia os passos pesados atrás de mim, mas me recusei a olhar para trás. Se eu me virasse certamente seria o meu fim. O que restava era correr e eu corri como ninguém. Corri por corredores escuros e fiz cada curva sinuosa do caminho. Atravessei as paredes que podiam ser atravessadas, desci as escadas que podiam ser descidas. Corri até me perder outra vez e corri por fim até saber que não havia mais ninguém atrás de mim.

 

Atravessei uma parede manchada e o súbito jorro de luz feriu meus olhos. Pisquei algumas vezes até me adaptar com a claridade do local. Lá estavam as cadeiras de plástico enfileiradas e o guichê de vidro onde três atendentes mal-humoradas recepcionavam os recém chegados. Uma televisão de tubo fixada a parede exibia um programa qualquer, mas eu não queria saber dela. Só tinha olhos para as portas duplas de vidro e para a noite depois delas. Um suspiro de alívio deixou meus lábios. Eu finalmente tinha chegado ao meu destino final e depois dele eu estaria livre.

 

Livre dos espíritos inconformados, das crianças perdidas e das hediondas figuras da noite. Livre do garoto de olhos azuis que, a essa altura do campeonato, já poderia estar mais morto do que eu.

 

Senti um aperto no peito ao pensar nele, mas decidi ignorar totalmente essa sensação não planejada. Novamente, havia muito pouco que eu poderia fazer. Pelo menos ele estava agora em mãos muito melhores que as minhas. Atravessei as portas com o peito erguido, confiante da minha própria salvação.

 

De repente, uma sensação estranha atravessou a minha pele. Era como estar sendo sugada pelo maior aspirador de pó que já existiu. O mundo pareceu um borrão disperso por um segundo e, então voltou a subitamente fazer sentido.

 

Eu estava em um longo corredor mal iluminado e a luz sobre a minha cabeça piscava incessantemente. Pendurada no teto havia uma placa demarcando o lugar onde a ala de queimados do hospital começava.

 

Eu nunca havia saído do hospital, mas retornado ao ponto de partida.

 


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Notas finais do capítulo

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