Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 22
Lâmpada




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O mundo havia adquirido a vivacidade de uma pintura que salta para a vida real. Visto que eu não costumava me lembrar direito do que acontecia quando Daniel deixava o apartamento, era difícil não estranhar a forma como as coisas estava surgindo diante de mim. Sentada no Fiat Uno, eu me empenhava para absorver todos os detalhes do exterior enquanto tentava não ser esmagada pela culpa. Eu não precisava ser hipócrita quanto a essa última parte. Tinha a perfeita consciência de que jamais estaríamos ali se não fosse por minha causa.

Daniel se manteve silencioso e distante durante todo o percurso. Pela primeira vez na vida, o rádio do carro não foi ligado enquanto ele dirigia. Seu olhar transcendia a estrada, mas eu tentei não ficar reparando. A coisa mais cara que ele possuía estava bem no banco de trás e jazia estragada por minha culpa. Eu só não queria piorar as coisas.

Me restava apenas torcer para que seu afeto por mim permanecesse intocado apesar da raiva. O que mais eu podia fazer?

Chegamos ao nosso destino antes do que eu gostaria. A assistência técnica especializada aguardava por nós com sua bela fachada revestida de azul e o grande balcão de madeira e vidro na entrada. Aquele estabelecimento fugia completamente ao padrão do lugar pequeno e atulhado de eletrodomésticos com o qual eu estava acostumada. Automaticamente comecei a imaginar o preço.

Um funcionário com cabelos ruivos e encaracolados veio ajudar Daniel a tirar a TV do banco traseiro. Dentro da loja, um homem alto e enrugado nos esperava com sua careca reluzente e óculos manchado. Seus olhos se espremiam tanto por trás das lentes que eu me perguntei o quanto ele conseguia enxergar.

— Fala, seu Vilela. — Daniel cumprimentou.

— Opa, Daniel. Quanto tempo! — o idoso respondeu gentilmente. — Tudo em cima?

— Tirando o fato de que minha TV pifou, tudo.

— Sua mãe está bem? — Vilela perguntou, umedecendo os lábios. — Ainda casada?

— Claro. Nada agrada mais minha mãe do que a família tradicional brasileira. — percebi que o bom humor retornava lentamente à Daniel e isso me alegrou.

— Uma pena, uma pena. — Vilela sacudiu a cabeça com tristeza visível. — O que houve com essa belezinha? — ele perguntou enquanto apontava para a televisão.

— Queimou por causa de um curto circuito. Queria saber se tem conserto.

Me encolhi um pouco. Querendo ou não, o curto circuito tinha sido provocado por mim.

— Posso fazer alguns testes para descobrir se vai valer a pena, mas deve demorar um pouquinho. — Vilela disse. — Eu acabei de coar um café bem forte, daquele que sua mãe gosta, se você quiser esperar.

— Não precisa. — Daniel disse. — Eu preciso mesmo comprar umas lâmpadas.

Vilela ergueu as sobrancelhas.

— O curto foi forte assim?

— Aaah você não faz ideia. — Daniel retrucou. — Na volta eu passo aqui.

Os dois se despediram rapidamente antes de nós voltarmos para o carro. Daniel dirigiu apenas alguns minutos antes de parar o veículo no estacionamento do supermercado que levava o nome da nossa cidade. Sem muita opção, eu o segui para dentro. Ele pegou uma cesta de plástico na entrada e se voltou diretamente para o setor de utilidades domésticas. Não parecia haver nenhum outro cliente além de nós.

— Eu não lembrava disso aqui ser tão vazio. — comentei.

— Agora não, Nim. — ele disse entredentes, tentando disfarçar os movimentos do próprio lábio. — Em casa conversamos.

O que aquilo significava? Que ele estava bravo comigo? Que ele estava muito bravo comigo?

Não tinha como eu saber.

Por causa disso, comecei a fazer aquilo que eu normalmente fazia quando eu estava muito nervosa: tagarelei.

— Tem tantas coisas nessas prateleiras. Vassoura, pá, rodo, pano de saco, rodo de pia, sabão em pó... Aposto que tem também um alicate suíço.

Daniel não me deu nenhuma bola. Estava concentrado demais olhando o preço das lâmpadas.

— Alicate suíço? Eu quis dizer canivete, é claro. — continuei. — Se bem que, parando para pensar, tenho sérias dúvidas de que ele foi inventado na suíça. Consigo, inclusive, recitar toda uma lista de coisas que não foram inventadas na Suíça. Como macarrão, omelete e histórias de vampiros adolescentes.

Silêncio.

— Eu não tenho certeza sobre a omelete... Talvez eu devesse pesquisar na Enciclopédia Barsa. Tem tudo lá.

Daniel continuava agindo como se fosse a única pessoa no corredor. Observei enquanto ele pegava uma lâmpada qualquer e inseria na boquilha de teste. Acenou positivamente com a cabeça e a colocou na cesta antes de partir para a próxima.

— Você sabia que as lâmpadas foram inventadas em 1879 por Thomas Edison?

— E foram destruídas no nosso ano pela lendária Nim da Catacumba. — Daniel disse, me mostrando a língua.

Eu poderia ter estourado de felicidade ali mesmo.

— E quem sou eu para destruir os grandes patrimônios da humanidade? — retorqui. — Não sou um dos árabes que queimaram a Biblioteca de Alexandria.

— Isso parece nome de música ruim dos anos 80.

— Em defesa dos anos 80, houveram muitas músicas boas. — falei. — Exceto Milli Vanilli, afinal de contas eles faziam playback.

— Até onde eu sei, você até poderia ser um dos Milli Vanilli. — Daniel disse. — Como eu vou saber que você não está fazendo playback das vozes da minha cabeça?

— Existem vozes na sua cabeça?

— Na sua não?

Foi a minha vez de silenciar.

— Já tentou um psiquiatra?

— É meme, sua burra.

Fiz um muxoxo. Daniel revirou os olhos.

— Isso também foi um meme. — ele disse. — Pai amado, eu preciso urgentemente te apresentar à Internet.

— Eu já conheço. Minha mãe usava bastante para enviar emails.

— Jesus! Você está presa no tempo do onça.

— Melhor que estar presa na boca da onça.

— Seu senso de humor é muito peculiar. — ele disse.

— Ora, muito obrigada!

Quando finalmente chegamos ao caixa, tínhamos dezoito lâmpadas, uma pizza congelada, vaselina em pasta e duas latas de cera para carro da marca Selvagem. A moça que passou nossos produtos agiu como se juntar todas aquelas coisas numa compra só não fosse nada estranho e eu a agradeci internamente por causa disso. Havia tanta naturalidade e tédio no desempenho da sua função que eu fiquei me perguntando qual seria a sua reação diante de um fantasma.

Daniel pagou com uma nota só e embalou as compras por si mesmo. Seu olhar caiu sobre mim enquanto andávamos até o carro.

— Se vai me causar problemas o suficiente para eu ter que comprar quase vinte lâmpadas, podia pelo menos me ajudar a embalar.

— Eu embalaria se eu tivesse um corpo. Infelizmente, tenho só o espírito.

— Um grande espírito para causar problemas, você quis dizer.

Dei de ombros.

— Faz parte do meu charme.

Daniel deu uma risada antes de entrar no veículo. Atravessei a carroceria e assumi o lugar ao seu lado no banco do passageiro.

— Para quê tanta lâmpada? Não acho que você precisa de tanto.

— Não preciso, mas não tenho como saber quando você vai ter outro ataque de pelanca e queimar tudo.

— Desculpa. — minha voz soou tão baixa que eu temi que ele não tivesse escutado. Encolhi os ombros.

— Você já pediu antes e eu já desculpei. Estou apenas brincando com você.

— Pedi?

— Pediu. Você estava chorando feito uma adolescente da Sessão da Tarde. A parte mais incrível é que você não borrou nem mesmo um filete do seu rímel.

— Acho que a maquiagem se torna permanente quando você morre.

— Não conte isso para as outras mulheres. Aposto que algumas realmente morreriam se soubessem disso.

Não pude conter a risada. Tudo parecia estar bem entre nós, mas algo ainda faltava. Eu tinha medo daquela tarde ter quebrado parte do elo que nos unia.

— Olha, eu sinto muito se...

— Depois você me conta. — ele cortou com gentileza. — Agora temos que buscar a TV.

Sequer me dei conta que já estávamos na frente da assistência técnica.

O tempo parecia ter se dobrado de uma forma estranha.

Vilela veio encontrar conosco no balcão quando recebeu a notícia da chegada de Daniel.

— A TV queimou o circuito interno e a peça que faz com que ela ligue. — ele anunciou. — Dá pra consertar, mas não sai por menos de oitocentos reais. Talvez seja melhor você deixar essa aqui e comprar uma nova.

— Você acha que não vale a pena mesmo? — Daniel perguntou. — Eu demorei 24 meses para pagar essa daí.

— Como um técnico, eu te perguntaria em qual cartão você vai parcelar. Como amigo, eu te garanto que não há como eu devolver a qualidade que seu produto tinha.

— Tudo bem. — Daniel disse com tristeza. — Obrigado pelo apoio de sempre, meu amigo.

Os dois trocaram um aperto de mão franco.

— Sinto muito não poder ajudar. — Vilela disse. — Nas Lojas Angolanas sempre tem promoção de televisão. Talvez você ache uma que seu cartão possa parcelar.

— É o que eu vou ter que fazer.

Vilela ofereceu cem reais no que tinha restado da TV. Assim mesmo, Daniel ainda estava um pouco triste quando saímos da loja.

— Vilela é o cara mais gente boa que eu conheço. — Daniel comentou. — Ele namorou minha mãe durante vários anos quando eles ainda eram jovens. 

— Você quase nunca fala dela. 

Ele deu de ombros. 

— Não há nada a muito a ser dito. 

Silêncio. Daniel ligou o rádio numa estação qualquer e coçou a cabeça. 

— Espero que uma TV não seja assim tão cara. — ele disse. — A grana tá curta.

— Não seria melhor esperar um pouco mais pra comprar uma nova?

— Mas aí eu não teria nada pra fazer no meu tempo livre.

— Você poderia sair... — me interrompi antes de terminar a frase. Queria dizer pra ele sair com os amigos, mas eu não queria reacender a briga.

Pra minha sorte, Daniel levou na esportiva.

— Bom, eu estou saindo agora. — ele disse. — Só não imaginei que meu próximo grande rolé fosse ser assim.

— O que você esperava?

— Não sei. — ele admitiu. — Mas se você queria tanto me tirar de casa, era só ter me chamado para um encontro. Não precisava estourar minha televisão.

Eu poderia ter corado se estivesse viva. Ou se fosse branca. Uma certa vergonha me atingiu assim mesmo. Decidi acenar e sorrir.

— Não seja por isso. — pigarrei. — O Grande Daniel, o tatuador dos Tatuadores, o Lendário Homem Meio Rim, tu gostarias de bebericar vinho comigo em um túmulo desconhecido num cemitério qualquer?

Daniel simplesmente não aguentou. Riu até ficar sem ar.

— Não é possível, Nim. — ele finalmente disse, secando uma lágrima. — É assim que os góticos se acasalam?

— Na verdade, faltou fazermos um moicano com gel de cabelo e escutar My Chemical Romance.

Ele riu até tossir.

— Eu não sabia que você conheci essa banda. — Daniel finalmente disse com a voz rouca. — Talvez não esteja morta há tanto tempo assim.

— Talvez eu esteja. — retruquei. — My Chemical Romance existe há tempo pra cacete.

— My Chemical Romance definiu o conceito de tempo, minha querida.

— Eu não sabia que você já foi emo! — falei. — Na verdade, você tem tanta jaqueta de couro que eu deveria ter desconfiado.

— Eu tenho só duas, sua linguaruda.

Mostrei a língua para ele.

— Eu não sou emo. Nem nunca fui. — Daniel disse. — Mas é aquele ditado. Um homem triste ou cai no pagode ou no lápis de olho preto.

— Não tem nenhum lápis de olho na sua cara.

— É porque o Zeca Pagodinho já entrou na minha alma.

Foi a minha vez de sorrir.

 

Não lembrava de ter estado no interior de uma das Lojas Angolanas na vida — ou na minha morte —, mas me parecia tão familiar quanto meus próprios dedos. Eu sabia que tudo continuava exatamente lá: os corredores desertos, com as prateleiras meio vazias para dar o toque de falência iminente, mas as filas tão grandes que chegavam a dar voltas. Era um lugar em que se podia comprar qualquer coisa: desde chocolate na promoção até ração de cachorro sabor fígado e geladeiras de inox. Parecia o estabelecimento adequado para se parcelar uma televisão em 24 vezes.

— Esse era meu lugar favorito quando eu ainda ia no cinema com os meus amigos. — Daniel disse quando passamos pelo setor de guloseimas. — A gente sempre comprava da batata mais vagabunda e muito chocolate antes de qualquer sessão.

— Você tem um filme favorito? — perguntei.

— Se eu fosse escolher, acho que seria Cidade de Deus. Logo em seguida vem todos os filmes do Batman, mesmo os ruins.

Daniel notou quando eu me distrai olhando os brinquedos.

— Você já esteve aqui antes?

— Provavelmente sim. — respondi. — Há qualquer coisa de muito familiar nesse ar de loja prestes a falir. 

— Não está mais só prestes. — Daniel respondeu. — Eles descobriram um rombo bilionário e decretaram falência há umas semanas. Aposto que a fila pro caixa está uma loucura.

— Você falou comigo? — uma moça perguntou. O uniforme vermelho indicava que ela trabalhava na loja.

— Falei. — Daniel disse apressadamente. — Estou atrás de uma televisão.

Daniel era um indeciso nato. Ele andava de um lado para outro, avaliando cada modelo e tirando dúvidas sobre as especificações. Respirava fundo. Fazia uma pergunta a atendente. Me olhava. Olhava de volta para as televisões. Mesmo que eu apreciasse profundamente a beleza estampada em sua concentração, tudo que eu queria era pegar qualquer aparelho e ir embora.

— O que você acha? — ele perguntou.

— Para mim todos parecem iguais. — respondi.

— Eu levaria o modelo slim fit de 42 polegadas com imagem cristalina. Você não vai se arrepender. — respondeu a vendedora. Provavelmente, ela tinha achado que Daniel falava com ela, inclusive por causa da proximidade.

Ou era eu que estava achando que ele estava falando comigo?

— Essa é muito cara. — comentei.

— Essa é muito cara pra mim. — Daniel disse.

— Nós parcelamos de até 48 vezes sem juros!

— Melhor comprar algo que você vai usar e não algo que você vai deixar de herança pros seus netos.

— Desse jeito só meus filhos vão usar essa TV. — Daniel disse. — Prefiro uma menor.

A vendedora apontou para um modelo específico e começou a tagarelar acerca de funções que eu nem tinha ideia que uma televisão podia ter.

— Olha, eu nem sabia que TVs poderiam ser tão finas. — admiti. — Mas parece inútil. No fim, é tudo igual.

— No fim é tudo igual. — Daniel concordou.

A vendedora parecia alarmada. Revirei os olhos.

— Leva a de oitocentos. — falei

— Vou levar a de oitocentos. — ele falou.

E assim acabamos na maior fila que eu já tinha visto na vida — ou na morte —, empurrando um carrinho oscilante com uma caixa grande precariamente apoiada em seu interior. .

Talvez Daniel estivesse certo. O aparelho seria mera herança para os nossos filhos.

Opa.

Melhor dizendo.

O aparelho seria mera herança para os filhos dele.

 

 

 


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