Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 23
Ciúmes




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Uma eternidade se passou antes que pudéssemos ser atendidos. A moça que nos aguardava no caixa tinha a expressão cansada de quem se debruçou durante longas horas sobre uma tarefa repetitiva. Seu cabelo me chamou atenção. Era cacheado, volumoso e azul. Decidi que ela era bonita.

 

— Vou passar no crédito. — Daniel anunciou depois de digitar o CPF no pequeno teclado da máquina de cartão.

 

A moça assentiu, olhou para o monitor, deu alguns cliques e voltou a olhar para ele.

 

— Podemos dividir esse valor em até doze vezes sem juros.

 

— Então vai ser em doze.

 

Mais alguns cliques. A moça fez um aceno positivo e Daniel introduziu o cartão na maquininha. Ele colocou a senha. Um pequeno bip indicou que a transação não havia sido aceita.

 

— Eu posso tentar outra vez? — Daniel perguntou.

 

— Pode.

 

A transação não foi aprovada. Daniel torceu as mãos de nervosismo e mordeu o lábio.

 

— Parece que eu esqueci de pagar a fatura desse mês. — apesar da tentativa de piada, a tensão era visível no rosto dele. — A loja ainda tem aquele carnê, moça?

 

— Tem sim. — ela disse. — Mas não acho que é uma boa ideia. Quer dizer, você vai continuar pagando isso até muito depois que a loja tiver fechado. Não tem nem como te oferecer garantia.

 

— Entendo.

 

Até o ar ao redor de Daniel transparecia sua frustração. Ele batucava os dedos no caixa, visivelmente cogitando uma saída. A atendente o encarou, suspirou e espreguiçou-se.

 

— Olha, você não pode travar a fila por tanto tempo. Eu também não acho que valha a pena comprar a televisão se não puder parcelar. — ela disse. — Nesse caso, pode levar pra você.

 

Havia uma intensidade gritante em seu olhar. Daniel havia tomado um susto. Nem eu pude esconder minha própria surpresa quando meus olhos dançaram entre os dois, indo de um pra outro.

 

— O quê?

 

— É isso que você ouviu. — ela disse com firmeza. — Quer dizer, descobriram um rombo de 20 bilhões. Não acho que mais oitocentos vá fazer grande diferença.

 

— Isso não vai te ferrar? — Daniel perguntou.

 

— Eu já estou ferrada. — ela disse. — Já tinha perdido esse emprego de qualquer forma. Hoje é meu último dia aqui.

 

Daniel expirou com força.

 

— O-obrigado! — gaguejou.

 

— Não tem de quê! Vou apenas emitir a nota pra você não ter problemas na saída. — ela disse. — Vou colocar três barras de chocolate ao leite também. Elas estão na promoção.

 

A incompreensão pairava sobre meu rosto enquanto eu a via emitir a nota. O mundo dos vivos era realmente cheio de intensidade.

 

Assim que a pequena impressora cuspiu o cupom fiscal, a atendente o sacou e fez uma pequena anotação com uma caneta azul na parte de trás. Havia um sorriso malicioso em sua face quando ela entregou a nota para Daniel.

 

— Anotei meu telefone na parte de trás. — ela disse. — Caso queira me compensar algum dia pela TV.

 

Minha surpresa cedeu lugar a uma espécie de raiva cortante e vários adjetivos impronunciáveis perpassaram pela minha mente.

 

— Ah. Pode deixar. — ele sacudiu o papel de modo afirmativo.

 

Daniel tratou de sair dali o mais rápido possível, empurrando o carrinho como alguém que está prestes a perder um compromisso importante. Quando chegamos ao estacionamento, não parei para admirar seus esforços ao tentar enfiar a TV no porta-malas. Simplesmente atravessei a carroceria do carro e assumi o lugar de costume no banco do passageiro.

 

— Você ficou estranha de repente. — ele pontuou. Tinha finalmente conseguido acomodar a televisão no banco de trás e dava partida no veículo. — O que houve?

 

— Nada. — falei.

 

— Alguma coisa aconteceu. Você não estava assim.

 

— Deve ser cansaço.

 

— Pensei que mortos não se cansassem.

 

— Podemos só ir para casa?

 

Ele suspirou.

 

— Tá bom.

 

Daniel manobrou o carro para fora do estacionamento e em um minuto já estávamos percorrendo uma longa extensão de asfalto. Em algum momento, ele ligou o rádio do carro e começou a cantarolar baixinho.

 

Do lado de fora, o mundo assumia os tons quentes do pôr-do-sol. Em um determinado trecho, os prédios cederam lugar ao vazio e eu pude ter uma vista ampla da montanha e das nuvens que dançavam em espiral ao redor do astro descendente. Suspirei de admiração.

 

— É realmente muito bonito. — Daniel comentou. — Eu passava aqui todo dia quando estava indo pra faculdade.

 

Eu não sabia dar uma razão para haver tanta raiva no meu peito. Não, raiva não é uma boa definição. O que havia era uma espécie de mágoa, quase como se eu estivesse ferida pela quebra de uma promessa. Isso era bastante irônico. Nós nunca havíamos prometido nada um para outro. Mesmo assim, havia aquela coisa que me fazia querer ranger os dentes, como tristeza e ódio se misturando e resultando em um sentimento de posse. Eu sabia que nome isso tinha, mas não queria dizer. Eu não queria ter que responder Daniel, mas respondi assim mesmo.

 

— Não sabia que você era formado. — repliquei.

 

— Não sou. — ele disse. — Fiz artes visuais por um tempo, mas depois tive que parar.

 

O assunto morreu aí. Eu não queria conversar. Ele não queria insistir.

 

Daniel só voltou a falar quando chegamos em casa. Depois de pousar a televisão ao lado da porta, ele secou o suor da testa e olhou para mim.

 

— Nossa. — ele estava ofegante. — Queria que você tivesse podido me ajudar ou que esse maldito prédio tivesse elevadores.

 

— Fantasmas não podem pegar elevadores. — comentei distraidamente.

 

— Por quê? — ele ergueu as sobrancelhas. As mãos estavam ocupadas com a fechadura.

 

— Houve um incidente em 1986.

 

— Você está viva desde essa época?

 

Dei de ombros. Não fazia diferença. Mesmo que fizesse, eu não sabia dizer.

 

A televisão só assumiu seu lugar de direito em cima do raque depois que Daniel trocou as lâmpadas de todos os cômodos. Observei com tédio enquanto ele arrastava a pequena escada de metal e preenchia boquilha por boquilha. Pareceu que uma eternidade tinha se passado antes que ele finalmente decidisse instalar a TV.

 

Empolgado, ele apertou o botão vermelho do controle. A tela ganhou vida com um programa irrelevante. Ele começou a pular de canal em canal, fascinado com a qualidade de imagem. Por fim, deixou no noticiário e se sentou bem do lado em seu velho sofá de couro.

 

Olhei para ele de soslaio. Ele me fitou diretamente.

 

— Precisamos conversar.

 

— Vai em frente.

 

Ele suspirou.

 

— Não entendo porque você parece estar com tanta raiva sendo que sou eu quem deveria estar bravo. — Daniel disse. — Eu não quero te ofender nem qualquer coisa assim, mas veja bem. Você jogou meu passado na minha cara, estourou meu sistema elétrico e ainda sim está terminando esse dia com um bico tão grande que sequer consegue abrir um pouco os lábios para me responder. Assim mesmo, eu continuo tentando falar com você. Não acha um pouco injusto?

 

Me ajeitei. Não queria relaxar minha postura, mas relaxei assim mesmo.

 

— Acho. — concordei. — Passei o dia todo esperando que você me desse uma bronca. Eu realmente não queria queimar nada. Eu sequer sabia que podia queimar alguma coisa.

 

— Você parece um fantasma de filme de terror ruim. — ele disse. — Aposto que até o fim do dia vamos descobrir que você não é a única morta aqui e que eu estive o tempo todo vendo espíritos porque um caminhão da Coca-Cola me deixou parecendo uma panqueca.

 

Ri a contragosto.

 

— Isso foi muito específico. — comentei. — Se quiser estrear a sua televisão perfeita e gratuita assistindo O Sexto Sentido, basta dizer. Não precisa inventar toda essa história.

 

Daniel revirou os olhos.

 

— Não fuja do assunto, Nim. — ele disse. — Olha. Eu só não quero mais brigar. Eu até fiquei um pouco chateado, mas logo eu percebi que não seria sensato guardar mágoa de... Alguém que mora comigo. Não acho que você seja uma má pessoa, mas gostaria que parasse de se meter nas minhas decisões.

 

— O que você quer dizer com isso?

 

— Não falar mais com meu amigo é uma escolha minha. Não estou pronto. Decidi que não quero. Você não pode mudar isso.

 

— Eu compreendo. Apenas acho que...

 

— Não importa o que você pensa a respeito. — ele cortou. Não fez isso de maneira grosseira. Havia muita gentileza em sua voz. — Eu não quero. Você não pode me obrigar a fazer as coisas que eu ainda não estou pronto pra fazer.

 

Fitei minhas mãos. Uni os dedos. Respirei fundo.

 

— No seu tempo, então.

 

Daniel assentiu. Havia uma sombra de felicidade sobre o seu rosto.

 

— Acho que estamos entendidos. Foi mais fácil do que eu imaginei. — ele disse. — Por que todas as pessoas não são assim?

 

— É mais fácil depois que você morre.

 

Ele sorriu pra mim. Voltamos nossos olhos para a televisão. O noticiário não era particularmente interessante, mas acabou sendo um modo que encontramos para ficarmos tranquilos um com o outro, aproveitando o breve clima de união.

 

— Por que estamos assistindo o jornal? — perguntei depois de algum tempo. — Você nunca vê o jornal.

 

— Eu não conseguia pensar em nada mais chato. — Daniel explicou. — Supus que fossemos brigar. Eu não queria brigar e perder um episódio de The Office ao mesmo tempo, por exemplo.

 

Eu poderia ter dado um tapa nele. Daniel riu ao ver minha consternação.

 

— Babaca.

 

— Só um pouquinho.

 

Ele mudou de canal e se ajeitou no sofá. Tornou a sorrir para mim.

 

— Você já comeu chocolate, Nim?

 

— Provavelmente sim. Quando eu estava viva.

 

— Você lembra do gosto?

 

Parei para pensar.

 

— Acho que não tem gosto de café e de sonho, não é?

 

Ele riu.

 

— Não. Quer dizer, talvez tenha gosto de sonho, mas não do da padaria.

 

— Não tendo gosto de pesadelo, por mim já é ótimo.

 

Daniel abriu um largo sorriso. Ele se levantou e começar a revirar a sacola das Lojas Angolanas que estava em cima da mesa. Ouvi quando ele simplesmente parou. Quando olhei para ele, Daniel segurava a infame notinha e fitava o telefone gravado na parte de trás.

 

Meu cenho se fechou quase que automaticamente. Ele notou.

 

— Você pretende ligar para ela?

 

Vi que ele pensou na possibilidade. Isso me arrastou enormemente.

 

— Não mesmo. — ele respondeu.

 

Naquela noite eu descobri que chocolate tinha um gosto doce, tão bom quanto tudo de incrível na Terra. Era quase melhor do que realizar um sonho, mas com certeza era melhor do que viver na escuridão.

 

Ainda sim, eu havia algo que tinha sido melhor do que aquilo: a visão de Daniel amassando o papel com o número de uma bonita desconhecida e o atirando ao lixo, ao esquecimento e à distância de tudo aquilo que era precioso para mim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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