Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 20
Rotina




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Com o tempo, nós dois caímos em uma espécie de rotina e isso facilitou a convivência.

 

Às vezes Daniel tinha algumas noites difíceis, mas em geral ele dormia bem. Nunca me atrevi a atravessar a parede de seu quarto enquanto isso acontecia. O sono pertencia unicamente aos vivos e de uma maneira profundamente particular. Era o único momento em que eles realmente estavam sozinhos consigo e eu não possuía nenhum direito de violá-lo.

 

Nós passamos a tomar café da manhã juntos. Para ele, era a primeira refeição do dia, mas para mim costumava ser a única. Enquanto minha vela ardia ao lado de um copo de café coado, ele experimentava a bebida por si próprio, às vezes acompanhada de um pãozinho ou dois. Era isso que tornava aquilo especial. O fato de ser um momento somente nosso.

 

Em geral, ele começava a atender pela manhã, mas a maioria dos clientes sempre vinha a tarde ou a noite. Como Daniel sempre ficava meio incomodado com a hipótese de um cliente sentar em mim, eu nunca usava o sofá enquanto ele estava atendendo, apenas para não desagradar.

 

Conviver também é saber fazer concessões.

 

Além do mais, eu gostava de vê-lo trabalhar. A tatuagem é uma arte vitalícia e ele dominava a eternidade com maestria. Era bonito ver os desenhos tomarem forma e havia uma certa graciosidade na dor que isso causava. Posso afirmar isso sem nenhuma sombra de sadismo, apenas com a certeza de que a dor é algo muito próprio dos vivos. Além de ser o caminho para entendimento do prazer, uma vez que é o contraste entre sofrimento e a benesse, a dor também é o que nos faz perceber que estamos vivos. É o solavanco que o seu corpo dá ao ser acometido por um choque que te prova que o seu próprio corpo existe. Mortos não estão sujeitos a isso. Por não sentirmos dor, também não sentimos a existência.

 

Daniel nunca saía, a menos que fosse estritamente necessário. Preferia passar suas noites de sábado na frente da TV, assistindo algum filme de terror e apreciando a comida do delivery. Seria hipocrisia julgá-lo. Se eu estivesse viva, também ia preferir evitar o máximo possível de contato humano em meus momentos de descanso.

 

Apesar disso, parecia haver algo fora de lugar quando ele fazia isso.

 

Eu não sentia satisfação de sua parte, apenas conformidade.

 

Daniel tinha se acostumado a solidão autoimposta e talvez por isso nossa convivência tivesse sido tão custosa no início. Atrapalhar a solitude de um homem, mesmo que de maneira não facultativa, é como macular um templo sagrado. Era como se ele fosse um padre servindo em uma reverenciada Igreja e eu o ateu que recebe o sacramento sem nenhuma deferência.

 

— Onde estão os seus amigos? — perguntei em um sábado qualquer. — Você ainda fala com eles?

 

Daniel manteve os olhos presos na televisão, mas o hambúrguer se deteve a meio caminho de seus lábios.

 

— Não. — ele respondeu. — Quer dizer, apenas com um deles. O cara que costumava ser meu melhor amigo ainda me manda mensagens, mas eu raramente respondo.

 

— Por quê?

 

— Porque eu não quero.

 

— Isso não seria uma resposta nem se você fosse uma criança. — retruquei brincalhona.

 

O bom humor de nada tinha adiantado. Daniel tinha azedado.

 

— Olha, Nim. Não podemos só ver o filme? Talvez em silêncio?

 

Soltei um suspiro cansado. Apesar disso, não me dei por vencida. Retomei o assunto antes que o filme pulasse para a próxima cena.

 

— É importante saber ser solitário, mas não acho que a solidão combina com você.

 

— Você vai continuar com isso?

 

— Sim, eu vou. Você precisa voltar a conviver com as pessoas!

 

Ele me deu um olhar cortante.

 

— Acho que tenho convivido com algumas pessoas mais do que eu gostaria. — ele disse com rispidez.

 

Não me deixei abalar.

 

— Precisa conviver com pessoas vivas.

 

— Para quê? — o tom de voz dele aumentou. — Para todo mundo me decepcionar?

 

Seu timbre estava recheado de dor e desprezo.

 

— O cara que te manda mensagem. Ele não te decepcionaria.

 

— Ele só não teve uma chance ainda.

 

Comecei a contra-argumentar, mas Daniel não queria saber de mim. Aumentou o volume da TV que o máximo que podia, apenas para suplantar minha voz.

 

Eu entendia que ele estava traumatizado, mas suas atitudes infantis começaram a me dar nos nervos.

 

— Daniel. — chamei gentilmente.

 

É claro que ele não me ouviu. A televisão estava alta demais.

 

— Daniel. — chamei novamente, aumentando o tom de voz.

 

Dessa vez, ele ouviu, mas preferiu fingir que não era com ele. Se meu sistema circulatório ainda estivesse funcionando, provavelmente uma veia teria saltado do meu pescoço.

 

Levantei de uma vez só e o encarei com raiva.

 

— DANIEL!

 

Minha voz retumbou como o som de mil trovões. De repente, o apartamento mergulhou na penumbra de uma centena de estrelas apagadas. Eu não sabia quantas lâmpadas eu havia queimado, mas ouvi o som de cada uma delas e senti quando os estilhaços de vidro atravessaram meu corpo. Eu vi as faíscas saltarem da TV antes que ela simplesmente apagasse.

 

Eu tinha estragado tudo.

 

Comecei a chorar.

 

Mesmo na penumbra, eu vi quando Daniel estendeu a mão para mim e sussurrou meu nome.


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