Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 15
Fome




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A fome doía.

 

E é claro que dizer isso tem uma conotação diferente se você estiver morto.

 

Em vida, a fome significa deterioração. Seus órgãos, mergulhados em necessidade, vão estar gritando tão avidamente por um pedaço de pão que é melhor ficar surdo do que ouvi-los. A combinação da proximidade da morte com a dor de não ter o que as outras pessoas possuem é a coisa mais fatal que existe. Nada se compara a um vazio que não pode ser preenchido. Nada pode preencher o lugar daquilo que não se tem.

 

Eu poderia falar da fome sentida pelos mortos praticamente com as mesmas palavras, mas o sentido jamais seria o mesmo. A coisa tem um caráter muito mais metafísico quando você não é nada. E o ser nada te faz justamente sentir esse vazio difícil preencher. Você está tão alheio a todas as outras coisas que a sensação de pertencimento e de significado não existem mais.

 

Então, basta provar a energia de alguma coisa e tudo muda.

 

As leis da física pouco importam quando você está morto, mas se alimentar faz com que o tempo e o espaço voltem a existir. As sensações podem ter te deixado há muito tempo, mas bastará uma simplesmente fatia de torta para que o mundo te toque de maneira irreparável, exatamente como toca uma criança que deixa o útero pela primeira vez.

 

Não, isso não pode ser definido.

 

Sentir isso é arrebatador.

 

Maravilhoso.

 

Terrível.

 

E explica perfeitamente porque alguns espíritos simplesmente se corrompem. Vale a pena se perder por uma coisa dessas.

 

Se me perguntarem, dificilmente saberei dizer o que aconteceu na casa de Aninha depois que comi a torta. Sei que palavras foram ditas, mas não posso dizer quais. Sei que voltei para a casa de Daniel, mas não posso dizer como e nem por qual caminho. Tudo que eu via diante dos meus olhos era a fome.

 

Eu queria tanto comer.

 

Se me dessem uma pedra, eu a teria devorado com toda vivacidade que meu espírito poderia reunir.

 

Mas isso não tinha acontecido nunca mais.

 

E doía tanto e tanto que havia apenas o torpor.

 

A vontade de implodir.

 

Eu queria existir. Ou, pelo menos, dar sentido a minha já limitada existência.

 

A comida fazia isso.

 

Eu queria tanto comer.

 

A minha sorte é que nada é eterno quando você já está na eternidade.

 

Eu provavelmente teria sido consumida pela fome se não tivesse começado a sentir falta de outra coisa muito mais fundamental. Algo que era tão obviamente fundamental que eu tinha deixado de notar.

 

A voz de Daniel.

 

Após consultar a vidente, ficamos dias sem nos falar. Jamais saberei precisar quantos foram. Eu estava tão vidrada na necessidade que eu mal me dei conta disso.

 

Ele estava me ignorando? Havia tentando se comunicar comigo durante meu estado catatônico e eu o ignorei? Ele estava com medo de mim?

 

Eu não sabia.

 

Por causa disso, eu o saudei muito rapidamente quando ele acordou no outro dia.

 

Eu ainda estava com fome, é claro. Meus únicos pensamentos ainda rodavam ao redor da questão de tudo que eu podia provar. Mas agora havia também uma espécie de curiosidade. Tinha outra coisa que eu sentia falta e isso me incomodava quase tanto quanto a fome, se não mais.

 

Ele não me respondeu naquela manhã. Nem pelo restante do dia.

 

Ele estava me ignorando.

 

E me dar conta disso também me dilacerou por dentro, de uma forma que julguei que seria impossível.

 

Acho que eu nunca tinha me dado conta, mas Daniel era a única pessoa com que eu podia conversar. Mesmo eu sendo obrigada a conviver com ele, ainda era uma convivência. Apesar da ironia e das piadas de cueca, isso era o presente mais precioso que eu já tinha recebido em morte e, só talvez, eu o tivesse rejeitado.

 

Daniel era tudo que eu tinha.

 

Perdê-lo era pior que não existir. Perdê-lo era perder a existência.

 

E eu queria existir.

 

Não por causa dele e nem apesar dele.

 

Mas com ele.

 

Eu queria existir com ele.


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