Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 14
Sobre os espíritos




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Daniel pagava suas contas no débito, mas apreciava cada pedaço de torta como se fosse à prestação. O garfo subia e descia como uma espécie de bailarina de metal, à medida que eu observava o merengue tocar seus lábios com um fascínio estranho. Havia beleza naquele movimento. Havia beleza em tudo que ele fazia.

 

 

 

Aninha surgiu depois de um tempo, trazendo consigo uma caixa pesada.

 

 

 

— Antes de vocês irem, eu gostaria que vocês aprendessem algo.

 

 

 

A vidente tornou a sumir de vista, mas logo retornou. Dessa vez, ela trazia um pedaço de torta e um sorriso enigmático no rosto. Olhava diretamente para mim quando pousou o prato sobre a mesa.

 

 

 

— Eu sigo uma fé antiga e animista. — ela começou. — Isso quer dizer que eu acredito que todas as coisas no mundo estão dotadas de espírito, ou ânimas, que as tornam aquilo que elas são. Tudo aquilo que vive está animado, mesmo que em níveis diferentes. Embora não possamos dizer que uma árvore e um cão são iguais, ambos estão vivos com espírito próprio.

 

 

 

Antes de continuar, ela sorriu novamente.

 

 

 

— O espírito dos homens é um pouquinho diferente... Nossas almas não são únicas e se alteram de acordo com condições específicas, especialmente quando morremos. Quando alguém falece dentro de um seio familiar afetuoso, com pessoas dispostas a cultivar sua memória e devido a causas naturais, seu espírito parte tendo a total compreensão de quem é e para onde deve ir. Nós chamamos esses espíritos de númenos, pois tem a luz do conhecimento consigo. Quando a situação é o inverso, no entanto, o espírito pode se tornar um...

 

 

 

— Esquecido. — completei.

 

 

 

— É uma forma de dizer, mas eu não gosto muito desse termo. Talvez "perdido" soasse melhor, mas os estudiosos da minha fé preferem chamar os espíritos que sofrem dessa condição de anúmenos. Pessoas que se perderam de si mesmas.

 

 

 

Definitivamente eu tinha me perdido de mim mesma.

 

 

 

— Esse status não é fixo. Um númeno pode ser tornar um anúmeno com o passar do tempo ou vice-versa. Existem muitos caminhos para se iluminar a própria consciência, o que nos leva a outros tipos de espírito.

 

 

 

Fiquei esperando que Daniel fizesse uma piada, como sempre, mas ele permaneceu em silêncio. Quando olhei para ele, notei que havia uma espécie de vazio gigantesco em seus olhos, profundo demais para que eu pudesse atravessar.

 

 

 

— Por mais incrível que possa parecer, fantasmas também comem. Os espíritos não conseguem ingerir nenhum alimento propriamente dito, uma vez que estão desprovidos de seus corpos físicos, mas ainda podem se alimentar de energia. Como tudo é energético, qualquer fonte de energia poderia servir na teoria. Na prática, vemos que não é bem assim.

 

 

 

"Passada a imaterialidade, o próximo estágio é o de poltergeist. Esses espíritos não podem incorporar ou qualquer coisa desse tipo, mas possuem força o suficiente para interferir no meio que os cerca. Isso pode significar uma televisão que liga sozinha a noite ou um show de luzes. Em outras palavras, embora ainda estejam limitados ao mundo imaterial, o mundo físico passa a ser acessível para eles. Os poltergeist podem mudar o estado das coisas e, embora isso tenha se popularizado como algo ruim, nem sempre o é."

 

 

 

"Embora sejam listados estágios intermediários, basta dizer que um poltergeist pode evoluir para uma aparição, que é o mais próximo de um corpo físico que um fantasma pode chegar. Nesse ponto, os espíritos podem ser vistos pelos vivos como qualquer outra pessoa seria, chegando até mesmo ao toque físico. Algo assim influencia profundamente o ambiente ao seu redor e, mesmo sem ter intenções malignas, o espírito precisará ser banido ou drenado."

 

 

 

Eu escutava cada palavra com o máximo de atenção, pronta para absorver qualquer grama de saber que Aninha pudesse me oferecer. Talvez aqueles fatos fossem um lugar-comum entre os outros mortos, mas nenhum deles tinha me dado uma explicação tão boa quanto aquela. Minha mente estava polvilhando com um milhão de perguntas que eu não sabia verbalizar. O que tudo aquilo poderia significar?

 

 

 

— O que tudo isso significa? — Daniel perguntou. Era como se uma eternidade tinha se passado antes que eu ouvisse novamente a sua voz.

 

 

 

— O fortalecimento é uma forma de fazer com que Nim alcance suas memórias. Com a comida e o afeto adequados, rapidinho ela vai estar pronta para entender qual é o seu lugar no mundo. Ou depois dele.

 

 

 

— Fantasmas não comem. — repeti bobamente.

 

 

 

— Há uma maneira. — Miguel disse. Durante todo aquele tempo, eu sequer tinha notado sua presença. O rapaz tinha se mantido de pé e muito imóvel, escondido bem na quina da sala.

 

 

 

Aninha abriu a caixa, revelando uma infinidade de velas tão brancas como pérolas. Pegou uma das que estavam por cima e levou até o altar, junto com a fatia de torta. A pitonisa puxou um palito incandescente de algum lugar e, em menos de algum segundo, o pavio já estava sendo consumido por uma chama alta.

 

 

 

No mesmo instante, ela se voltou para mim.

 

 

 

— Nim, eu te ofereço essa refeição para que você cresça forte e se lembre daquilo que escondeu.

 

 

 

Mesmo que se passassem cinquenta anos, eu ainda seria incapaz de explicar aquele momento. Mesmo que eu passe o restante da minha vida — ou da minha morte — pensando no que havia acontecido, seria impossível expressar.

 

A primeira sensação que me tomou foi o formigamento. As pontas dos meus dedos das mãos e dos pés começaram a pulsar com uma sensação incômoda, mas, ao mesmo tempo, tão familiar que eu me senti tola por ter esquecido dela.

 

Meu corpo vibrava. Era como um quebra-cabeça se unindo ou um vaso despedaçado finalmente se colando e voltando a ser novo. Cada partícula parecia finalmente... existir como uma coisa viva e não uma coisa perdida na morte. Então, subitamente, veio o cheiro de torta fresca de limão e contiguamente algo que eu estava muito menos preparada para receber.

 

O sabor.

 

Eu podia sentir as texturas derretendo na minha língua, a crocância da massa de biscoito e uma doçura que vinha amarga na medida certa. Aquilo era como poder respirar depois de longos minutos de afogamento. Era como dançar na chuva em um dia quente. Era como encontrar um oásis de água fresca após ter vagado dez dias no deserto.

 

Aquilo tinha me partido ali e, simultaneamente, me unido em tantas formas de dissidência que eu finalmente me sentia algo próximo de um "eu".

 

Então, a sensação começou a passar.

 

Eu poderia ter me matado se não tivesse morta.

 

Chorei as lágrimas mais amargas de minha existência, imateriais como a morte, mas tudo que eu podia aparecer.

 

Eu podia ter berrado ali. Podia ter rasgado minha pele e me feito pó.

 

Mas eu só chorei.

 

Chorei porque eu nunca tinha experimentado nada igual.

 

Chorei porque tinha sido como nascer novamente e era terrível nascer.

 

Mas, principalmente, eu chorei porque tudo que restava depois de se perder tudo que se tinha era o nada e, naquele breve segundo, enquanto os sabores dançavam na minha língua, eu me encontrei.


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