Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 16
Franqueza


Notas iniciais do capítulo

Peço perdão pela demora! Acabou que eu trabalhei bastante nos últimos dias e não tive muito tempo para atualizar vocês. Prometo responder todos os comentários e trazer novos capítulos em breve. Agradeço por não desistirem de mim!



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Era tudo uma espécie de borrão.

 

Em um segundo, eu estava no apartamento. No próximo, eu seguia um carrinho de supermercado ou olhava os doces na padaria, qualquer coisa assim. Tudo isso para no momento seguinte me encontrar estirada no sofá de Daniel, com as pernas abertas e as mãos pousadas ao lado do corpo. Meu pescoço e estava apoiado no encosto do sofá e eu fitava o teto, tomada pelo tédio do nada.

 

Havia também uma espécie de torpor naquele movimento. Voltar a realidade era esquisito. Quase como estar de ressaca ou se deixar preencher pelo tédio após uma noite de festança violenta.

 

Então o mundo se partiu no meio.

 

Um sabor doce preencheu meus lábios. Eu conseguia sentir a textura aveludada do creme e de uma massa macia e açucarada. O familiar formigamento tomou as pontas dos meus dedos e eu soube de maneira quase instantânea que estava comendo.

 

Era um prazer familiar que eu não sabia nomear.

 

Eu ainda sentia uma enorme vontade de comer, mas não estava mais com faminta, se é que isso faz sentido. Aquela sensação não me fazia embarcar em uma viagem pelo desconhecido do instinto. Era algo mais próximo de apreciar uma refeição depois de um dia inteiro sem almoçar.

 

— Oi. — Daniel disse.

 

A voz dele era mais doce que qualquer outra sensação.

 

Eu estava determinada a não deixar transparecer isso.

 

— Oi. — respondi.

 

Virei a cabeça apenas levemente, para olhá-lo quase que de soslaio. Ele estava com os cotovelos apoiados no balcão da cozinha e os dedos se entrelaçavam ao lado de um pequeno prato de louça com um pãozinho e uma vela branca e flamejante.

 

Eu conhecia aquele pãozinho. Sua imagem era tão familiar quanto o gosto. O nome permanecia desconhecido, mas estava na ponta da língua.

 

— Eu te trouxe um sonho da padaria. — Daniel disse. — São meus favoritos. Pensei que você fosse gostar.

 

Um sonho, é claro!

 

— É realmente bastante gostoso.

 

Ele sorriu para mim. Um sorriso pequeno e cínico.

 

— Vejo que saiu do seu transe.

 

— E você saiu do seu. — retruquei.

 

O sorriso dele se alargou.

 

— Justo, justo.

 

Embora eu evitasse olhá-lo diretamente, não pude deixar de reparar em cada parte do seu corpo enquanto ele caminhava até o sofá e se sentava ao meu lado. O cabelo preto ainda estava molhado, indicando que ele tinha acabado de sair do banho. Vestia uma blusa branca e uma calça jeans surrada, com um par de chinelos de tira preta. Sucinto. Bonito. Simplesmente Daniel.

 

— Acho que você me deve um pedido de desculpas.

 

Ergui a sobrancelha.

 

— É você que me deve um.

 

— Pelo quê?

 

— Talvez, mas só talvez, por ser um grande babaca e me ignorar por vários dias.

 

— Pelo menos eu não invadi sua casa e me obriguei a te aceitar como colega de quarto.

 

— Eu não tive escolha!

 

— Não muda o fato de que foi enfadonho.

 

Quando finalmente olhei para ele, soube que meu rosto estava crispado de raiva. Tentei desferir um tapa, mas minha mão atravessou o braço de Daniel como se ela fosse feita de pó.

 

— Me exorciza então, seu filho da p...

 

— Opa, pera lá! — ele me interrompeu. — Se eu quisesse mesmo te exorcizar, não teria te trago um sonho da padaria. — ele inspirou profundamente antes de continuar. — Isso — seu indicador sacudiu no espaço entre nós dois, partindo de mim para ele. — é o que temos agora. Acredito que é hora de ter uma conversa franca e tentar tornar essa situação a melhor possível para nós dois.

 

— Então deveria ter começado a conversa me pedindo desculpas.

 

— Aaah... Sabe como é, né? Eu sou meio orgulhoso...

 

— Pois eu não sou. — retruquei. Ainda havia um leve tom de irritação em minha voz. — Sinto muito pelo... enfado de ter invadido sua casa e me tornado sua colega de quarto involuntária.

 

— Enfado. Essa palavra existe?

 

— Um grande filósofo disse uma vez que toda as palavras existem, pois podem sempre ser inventadas.

 

Minha brincadeira arrancou um sorriso dele, quebrando o clima de tensão que havia se instalado entre nós.

 

— É um homem sábio. — ele disse. — Concordo com ele, mesmo desconfiando um pouco que sua presença aqui é meio voluntária. Quer dizer, nenhuma mulher jamais conseguiu resistir ao meu charme.

 

— Eu ainda preferia o Robert Pattinson.

 

— Não é culpa sua. Quem não gosta de morcegos?

 

— O Van Helsing.

 

— E o Ozzy Osbourne.

 

Caímos na gargalhada.

 

— Enfim. Me desculpe por ter sido um grande babaca. — ele disse. — Eu apenas não estava pronto para lidar com o que isso significa.

 

— E o que isso significa? — perguntei.

 

— Ora, vamos lá. — ele disse com certa impaciência. — Não quero que a conversa sobre morcegos acabe numa sessão de terapia.

 

— Pelo que eu me lembre, você queria ter uma conversa franca para melhorar a convivência.

 

— Droga.

 

Silenciamos. Daniel havia assumido a postura taciturna de quem está perdido nos pensamentos mais escuros da própria alma. Não ousei interromper.

 

O tempo se estendeu tão longamente que eu achei que ele nunca mais voltaria a falar.

 

Então ele falou.

 

— Acho que ainda estou tentando lidar com o fato de que você esteve na pior noite da minha vida. — ele mordeu os lábios, buscando a coragem para continuar. — Eu não queria que a nossa convivência piorasse por causa disso, mas agora eu não consigo olhar para você sem lembrar.

 

— Acho que eu também sempre vou me recordar... E é por isso que temos que conversar. Uma memória ruim não ressignificada conduz à corrupção.

 

— Aposto que você tirou essa frase de um biscoito da sorte.

 

Dei de ombros.

 

— Nunca vi um pessoalmente. Para mim, biscoitos da sorte só existem na televisão.

 

— Queria que assaltos também só existissem na televisão...

 

— Daniel... — sussurrei.

 

Estendi minha mão para ele, mas puxei rapidamente de volta quando me dei conta do que estava fazendo. Eu estava morta. Fantasmas não prestam apoio. Fantasmas não podem ser tocados.

 

— Acho que a pior parte não foi levar o tiro, mas tudo que veio depois. — ele começou. — A bala me destruiu por dentro. Precisei transplantar um rim e ainda não posso dizer que me sinto cem por cento, apesar de todo esse tempo. Tudo isso aconteceu há mais de um ano, mas eu não posso dizer que me sinto totalmente recuperado física e psicologicamente. E não estou dizendo isso porque virei o Homem Meio-Rim. Estou dizendo isso porque depois daquele dia eu perdi tudo que importava.

 

Não pude esconder minha surpresa. Eu sabia que o assalto tinha acontecido há algum tempo, mas eu não imaginava que poderia ter sido tanto assim. Quantos meses Daniel passou no hospital? Quando ele saiu de lá? Quando eu saí?

 

E, além disso... Um rim?

 

— Eu me só feri assim para proteger a minha namorada. — ele continuou. — Não sei o que dizer, mas quando eu vi aquele cara tocando nela... O sujeito estava completamente maluco, fora da caixinha, mas acho que eu também fiquei. Quando me dei por mim... — ele levou as mãos a cabeça e bagunçou os cabelos de um modo que beirava a histeria. Quando voltou a falar comigo, seus olhos estavam cheios de dor. — Eu nunca mais vi ela depois daquele dia. Mesmo sabendo que eu estava apodrecendo em cima de uma cama de hospital, ela não apareceu um dia sequer. Nem pra cheirar o defunto. Quando eu fiquei um pouco melhor, ela simplesmente mandou o irmão dela levar um bilhete para mim. Foi com um guardanapo manchado que ela terminou nosso namoro.

 

As lágrimas brotavam em seus olhos como grandes gotas de chuva. Eu nunca tinha visto ninguém naquele estado. Meu instinto primordial era abraçá-lo, mas como isso seria possível se eu não possuía um corpo feito de carne?

 

— Nós dois estávamos juntos há quase quatro anos e eu evidentemente tinha muitos planos para o futuro. Sempre quis ser um tatuador, mas me esforcei em dobro apenas para ter uma renda bacana e me casar com ela. Eu já tinha planejado tudo... E a maldita sequer teve o mínimo de consideração!

 

O peito dele explodiu em soluços. Senti que eu mesma estava a beira das lágrimas.

 

Eu podia chorar?

 

— Acho que é isso que mais doeu. P-perceber que as pessoas com quem você mais... se im-importa... — ele soluçou. — Não se im-importam com você.

 

Daniel pousou os cotovelos em suas coxas e enterrou a face entre as mãos.

 

Em um gesto involuntário, eu deslizei meu braço ao redor dele e pousei minha cabeça em suas costas tombadas. Esperava atravessá-lo, como eu sempre fazia, mas dessa vez eu não o atravessei. Permaneci lá, imóvel, tocando-o sem o tocar, sentindo-o sem o sentir. Nossos corações pesavam uma tonelada.

 

— Eu não era assim antes. — ele sussurrou entre os dedos. — Eu era alegre e motivado. Agora, eu sequer tenho ânimo para sair de casa. As mensagens dos meus amigos se acumulam. Se eu não pudesse tatuar, se eu não pudesse ouvir música... Acho que já teria enlouquecido. No fim, todas as pessoas partem. No fim, elas sempre te abandonam.

 

— Eu não vou abandonar você. — murmurei.

 

Tive a impressão de falar muito baixo, mas acabou sendo perfeitamente audível. Daniel se afastou de mim de supetão e me olhou nos olhos pela primeira vez desde que nos conhecemos. Seus olhos vermelhos e úmidos carregavam uma dor incomensurável, tão pesada que eu poderia tocar.

 

— Não é justo. Você não tem escolha.

 

— Mesmo que eu tivesse. — falei com firmeza. — No fim das contas, não iria atrás do Robert Pattinson. Continuaria perto de você.

 

— Por quê? — a voz dele sumiu na última sílaba. Eu podia sentir a confusão que crescia em seu ser.

 

— Porque a própria existência me abandonou. Quando o mundo todo se tornou irrelevante, você se transformou no meu único amigo, ou em algo tão perto disso que não faz diferença.

 

— Amigos também vão embora.

 

— Não eu.

 

— E se eu mandar?

 

O sorriso que tomou minha face era um misto de condescendência e tristeza.

 

— Talvez seja nesse momento que você mais vai precisar de mim.


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