Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 13
O Sussuro das Cartas




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Todas as vezes que pensei em rituais de feitiçaria, imaginei mais sangue e menos tortas.

 

Enquanto Miguel e Daniel aguardavam na sala com o altar, Aninha fez questão me conduzir até sua cozinha. O clima do cômodo era tão diferente que parecia que eu tinha entrado em outra casa. Era a reprodução perfeita de uma cozinha dos anos oitenta, com os azulejos floridos e os armários azulados que eu tinha visto milhares de vezes no passado. Os eletrodomésticos possuíam um tom bege tão antigo quanto o do filtro de barro que se erguia sobre a pia. Os paninhos de crochê espalhados por cima das coisas davam exatamente o tom que a casa de uma vó deveria ter e isso não era nada mais nada menos do que reconfortante.

 

Aninha abriu a geladeira e puxou uma pequena forma de alumínio com uma massa de torta já pronta, dois limões e um vidro de creme de leite fresco. Observei enquanto ela pegava uma lata de leite condensado no armário. Ela sorriu para mim enquanto juntava tudo no liquidificador.

 

— Aposto que torta de limão é a sua favorita.

 

— Talvez fosse. — concordei. — Agora eu estou morta e a minha existência tem gosto de nada.

 

Ela sorriu com doçura.

 

— Podemos dar um jeitinho nisso também.

 

Eu tinha esquecido como era o som infernal dos liquidificadores. Teria coberto meus ouvidos com as mãos se Aninha não tivesse sido tão rápida. Em poucos segundos, a pequena senhora já dispunha de um creme esverdeado e lustroso. Observei enquanto ela o despejava com cuidado sobre a massa pré-pronta. Havia qualquer coisa de familiar no movimento que ela fez para limpar as bordas da forma, tanto que me senti tomada por ma sensação estranha e nostálgica. Era quase como se eu tivesse vivenciado algo assim no passado, em uma cozinha diferente, com outra avó, mas com a mesma receita.

 

Rezava a lenda que as tortas nunca mudavam e que, justamente por isso, elas faziam do mundo um lugar melhor.

 

Aninha sorriu para mim enquanto enfiava a torta no forno.

 

— São só alguns minutinhos para o merengue dourar, querida. Depois disso, vou pedir o Miguel para colocar para gelar. Ela vai ficar prontinha e você vai ganhar um belo pedaço!

 

— Mas eu não posso…

 

— Não se preocupe.

 

E eu realmente não me preocupei.

 

Quando retornamos para a sala do altar, Miguel e Daniel estavam metidos em uma calorosa conversa sobre lojas de conveniência.

 

— Por que não me disse que gostava de dançar em postos de gasolina desconhecidos? — Daniel me perguntou.

 

— Ah… Não parecia importante. É só uma coisa besta.

 

— Se tivesse me contado, eu teria tentado te devolver para um lugar que você realmente gosta ao invés de simplesmente te expulsar do meu prédio. — ele exibiu o mais próximo de um sorriso terno que eu já tinha visto em seu rosto. — Eu posso devolvê-la? — perguntou para a Aninha.

 

Apesar do tom divertido em sua voz, perceber que ele estava tão ansioso para se livrar de mim me deixava meio… chateada.

 

— Não mesmo. — Aninha respondeu no mesmo tom. — Mas vamos descobrir o que pode ser feito. — ela apontou para a mesa redonda. — Sentem-se vocês dois. Miguel, vá cuidar da torta.

 

Obedecemos sem pensar duas vezes.

 

Eu estava pronta para assistir a uma exibição de poderes místicos e leitura da sorte em uma bola de cristal, mas, para minha decepção, Aninha puxou um simples baralho de tarô. De olhos fechados, a vidente começou a embaralhar as cartas. Suas mãos pareciam se mover infinitamente, levando e trazendo as lâminas. Eu me sentia hipnotizada pelo movimento dos seus dedos. Daniel também não conseguia desviar o olhar. Então, subitamente, ela rompeu a magia e colocou as cartas sobre a mesa.

 

— Você tem um nome, garota?

 

— Nenhum que eu me lembre. O Daniel me chama de Nim.

 

— Nim. — ela saboreou meu nome em seus lábios. — Por favor, toque no baralho.

 

É claro que eu não podia tocar no baralho. Dirigi minha mão em direção as cartas e vi meus dedos atravessá-las como se fossem feitos de ar. Apesar disso, a vidente parecia ter ficado satisfeita.

 

— Daniel, por favor, corte o baralho.

 

Daniel separou as cartas em três montinhos e depois os juntou até virarem uma coisa só. Aninha anuiu e pegou o baralho. Sacou doze lâminas e as depositou sobre a mesa, com a face virada para baixo.

 

Algo nela havia crescido durante como esse movimento. Não era mais Aninha, a Vovó. Agora ela era Ana, a Bruxa.

 

— Antes de vermos o que as cartas têm a nos dizer, preciso que vocês dois saibam que algumas coisas não podem ser mudadas. Se o destino de vocês dois for permanecer juntos, nem mesmo o tempo poderá separá-los. — ela disse. — Não acredito que esse seja o caso, mas, mesmo que seja, espero conseguir descobrir o que ligou vocês dois. Quem sabe assim vocês possam ter um descanso merecido?

 

Pessoalmente, eu não acreditava em descanso. Pelo menos, não quando aplicado a mim. Descanso era para quem se cansava e somente os vivos eram capazes de se sentir assim. Apesar disso, eu comecei a sentir uma pontinha cruel de esperança tocando meu espírito. Talvez aquela mulher, tão desconhecida e tão familiar, pudesse me dar uma pista sobre quem eu era. Talvez ela pudesse descobrir meu nome nas cartas ou me dizer se eu tinha algum parente vivo.

 

A compreensão de mim mesma era o mais próximo de um descanso que eu podia alcançar.

 

A medida que virava as cartas, os olhos de Aninha ficavam ainda mais vívidos. Embora os desenhos fossem bonitos, eu não tinha ideia do que eles significavam A vidente, por outro lado, parecia compreender tudo muito bem e fazia um leve movimento de concordância toda vez que desvelava uma imagem.

 

— Eu vejo muita solidão. — ela começou. — Tanto nessa existência quanto na outra, você sempre foi muito sozinha, Nim. Você era uma criança perdida em uma tempestade de trevas. Isso te fez muito mal.

 

Ela bateu os dedos nos lábios antes de continuar.

 

— Eu vejo um túmulo. É o lugar onde seu corpo descansa. Ninguém parece visitá-lo há muitos anos. Existe bastante mato ao redor. Acredito que jamais tenham lhe deixado flores. Isso explica porque você está tão fraca. A memória é fundamental para aqueles que já partiram, portanto, é importante não descuidarmos de nossos mortos. É importante lembramos dele. Quando esquecemos deles, eles também esquecem quem são.

 

Me movi desconfortavelmente em meu lugar.

 

— Você consegue ver o meu nome?

 

— Oh não. — Aninha respondeu. — Poucas coisas são mais poderosas do que um nome. É através dos nomes que sabemos o que as coisas são. Se eu te pedisse para trazer um objeto para mim, você ficaria confusa até eu indicar se estou pedindo uma almofada ou uma cadeira. Não, criança. Os nomes nos dão poder sobre as coisas e só você pode encontrar o seu.

 

Fiz um muxoxo entristecido.

 

— Você consegue nos dizer onde fica o túmulo? — Daniel perguntou.

 

Aninha balançou a cabeça negativamente.

 

— Ainda não. Talvez porque ela também não saiba.

 

— Eu não sei muita coisa. Se você está se baseando nisso, tudo que vai nos oferecer é respostas pela metade e pouco vai adiantar eu ter vindo aqui.

 

Aninha anuiu.

 

— Eu compreendo a sua revolta, mas ainda não é tempo de se sentir assim. Apenas acabamos de começar. — a vidente novamente se voltou para as cartas, batendo os dedos nos lábios enquanto as analisava. — Havia muita estagnação. Das duas partes. Um vagava pela morte, o outro vagava pela vida. Mesmo que não admita isso, é provável que enxergasse a sua existência pela mesma lente opaca que a Nim enxerga a dela, Daniel.

 

Notei quando Daniel comprimiu seus lábios por causa do desconforto.

 

— Então, houve um tiro na escuridão e vocês dois ficaram ligados.

 

— Nem me fale em tiros. — embora Daniel tentasse manter o tom bem-humorado de sempre, era evidente que ele se sentia desconfortável.

 

Mordi meu lábio inferior.

 

— Você não se lembra do Miguel, não é mesmo? — perguntei.

 

Ele me encarou.

 

— Como eu poderia me lembrar de alguém que eu acabei de conhecer?

 

Um longo minuto se passou antes que eu pudesse continuar. O silêncio também se estendeu sobre Aninha enquanto eu media minhas palavras.

 

— Não é a primeira vez que vocês se veem. — eu disse. — Ele estava lá. Na noite em que você foi baleado. Eu também estava.

 

O tempo pareceu parar enquanto nos encarávamos. Em vida, eu teria sentido minha boca seca. Em morte, tudo que me restava era o desespero.

 

— O que você quer dizer com isso?

 

— Q-quer dizer, não tinha como você saber... — tentei retomar a ordem da minha fala. — Mas eu estava lá. Quando você entrou com seus amigos e quando o assaltante chegou. Tudo aconteceu na loja de conveniências em que eu normalmente... dançava.

 

O rosto de Daniel estava muito sério quando ele desviou o olhar de mim. Percebi que ele não conseguia me encarar. Vi ele fechar os olhos e contrair os dedos. Se eu pudesse, teria pegado em sua mão. Mas, mesmo que eu pudesse, eu não poderia. Eu seria repelida. Para alguns momentos, tudo que é adequado é a distância.

 

— Você interferiu? — Aninha perguntou.

 

— Um pouco. — eu disse. Minha voz quase sumia. — Eu só empurrei uma estante, mas...

 

Ela voltou a consultar suas cartas antes de responder. Pegou outro baralho, um menor, e o embaralhou antes de sacar algumas cartas dele.

 

— Eu imaginei que isso poderia ser o momento que ligou vocês, mas embora seja, também não é. — ela disse. — Se o destino de Daniel fosse morrer naquela hora, a sua interferência geraria uma dívida kármica difícil de eliminar. Felizmente, não é esse o caso. — ela puxou três cartas e as estendeu em nossa direção, apontando para as figuras. Uma foice, um caixão e uma mulher. — O fio da morte é cortado pela foice, que é carregada pela mulher. O destino de Daniel é permanecer vivo, mas ele só conseguiu que isso acontecesse por causa de você. Mesmo que não tenha agido diretamente, você foi a responsável por isso.

 

Ela depositou as cartas na mesa e tornou a pegar outra dupla. Dessa vez, Aninha nos mostrou uma cruz com um anel.

 

— O anel é carta das relações, dos laços, da ligação. Quando vem junto com a cruz, pode representar uma relação destinada. Justamente por isso, essa relação costuma significar um peso muito díficil de carregar, assim como... Bem, uma cruz. — explicou. — Isso fala sobre porque vocês estão vinculados. Mesmo que não fosse naquela loja de conveniências, vocês dois iam se encontrar. O dever de vocês é cumprir algo juntos.

 

— O que nós devemos cumprir? — perguntei.

 

— Assombrações às vezes são a representação daquilo que ficou faltando. — ela sorriu ternamente para mim. — Não me leve a mal, mas você está assombrando uma pessoa viva. Às vezes isso acontece porque o morto ficou muito apegado a pessoa, como um pai de família que segue os filhos na morte porque foi o principal sustento de seu lar em vida. Às vezes, podem haver questões mal resolvidas. Como um segredo que foi levado para o túmulo.

 

— Não guardei segredos dele, pois sequer nos conhecemos antes.

 

— De fato, não vi nada muito específico sobre isso nas cartas. — Aninha concordou. — No entanto, é algo que vocês vão ter que resolver para voltar a seguir caminhos opostos. Vocês devem entender que dívida é essa.

 

Assenti.

 

Olhei de soslaio para Daniel. Ele olhava para Aninha, mas sua mente parecia estar em um lugar muito distante.

 

— Não deveriam estar tão preocupados. — Aninha olhava diretamente para Daniel. — A última carta do tarot a sair foi a carta do sol. Acredito que vão conseguir resolver essa situação da melhor forma possível. Além disso... Existem elementos que podem te ajudar a resolver a questão.

 

— Como...

 

— Como uma amiga antiga, vinda de outro tempo. Ela tem um conhecimento importante, mas você só vai acessá-lo quando romper o manto que a cobre. — ela pensou por um segundo ou dois. — Há uma casa alta também, talvez um prédio, com cortinas azuis. Foi lá onde tudo isso começou.

 

— Ou terminou. — eu disse.

 

Pensar na janela com a cortina fez com que um arrepio percoresse a minha coluna. Era minha memória mais antiga ou, talvez, a única coisa próxima de uma memória que eu possuía.

 

Aninha parecia não ter me ouvido. Seus olhos estavam cobertos por uma sombra estranha.

 

— Vejo um homem alto e nefasto, coberto das cinzas da morte. Ele vive, mas foi responsável pelo fim da vida de vários outros. Ele tomou a filha da mãe e a mãe da filha. Ele roubou ouro, amor e tempo. Sua mão transformou o inocente em pó e dilacerou o afeto com seus pés. A raiz de todo abandono é maldade desse homem.

 

Sua voz soava estranha. Quase como se outra pessoa falasse junto com ela, como se ambas tivessem a voz de um trovão.

 

— Quem ele é?

 

— Deveria ser um pai, mas é um algoz.

 

— O meu pai?

 

A sombra que anuviava os olhos da vidente partiu tão rápido quanto tinha chegado. Em um instante ela tinha voltado a ser a senhorinha das tortas e eu tive a sensação de que ela não me diria mais nada.

 

Daniel permenecia calado, mas estava claramente chocado com a estranha visão da pitonisa. Seus olhos fitava a mulher, arregalados.

 

— Não sei, querida. — havia muito cansaço em sua voz. — Infelizmente, acho que não consigo ver mais nada.

 

— Tudo bem. — falei condescendentemente. — A senhora me prestou uma grande ajuda.

 

— Eu espero que sim, querida.

 

Quando ela se levantou da cadeira, todos os seus ossos estalaram.

 

— Acho que vou buscar aquela torta. Enquanto isso, seu amigo pode decidir se vai me pagar no crédito ou no débito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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