Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 12
A Vidente




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A fachada da casa não era muito atrativa. Consistia em um muro chapiscado encimado por um telhado envelhecido de cerâmica. Na extremidade esquerda havia um pequeno portão com um interfone e, na outra ponta, um portão maior de garagem. Ambos tinham sido pintadas no mesmo tom de marrom, que começava a exibir a oxidação do metal que está enferrujando. Se não fosse pela grande faixa pendurada sobre o muro, aquele lugar passaria facilmente despercebido.

 

 

 

CARTOMANTE - ANINHA VÊ-TUDO

 

CONSULTAS TODOS OS DIAS DE 7 às 22 HORAS

 

RITUAIS * BENZIMENTOS * LEITURAS DE SORTE

 

TRAGO SEU AMOR DE VOLTA EM 7 DIAS

 

 

 

Fitei a faixa e o sem-fim de números que se estendia após a mensagem escrita em letras garrafais. Pisquei algumas vezes, incrédula, e encarei Daniel.

 

— Trago seu amor de volta em sete dias? — perguntei. — Olha, existe muita coisa que um cartomante pode fazer para não passar credibilidade. Dizer que vai trazer o amor de alguém de volta em sete dias está no topo da lista.

 

— Não seja ingrata. — ele retrucou. — Quem entende melhor de assombração do que a macumbeira acostumada a ver as velhas fofoqueiras do bairro todo dia?

 

Eu poderia ter dado um tapa nele.

 

— Achei que visitaríamos uma profissional!

 

— A Aninha é uma profissional! Maior abridora de caminhos de Belo Horizonte!

 

— Tenho quase certeza que abridora não é uma palavra.

 

— Tudo pode ser uma palavra, bobinha, afinal todas as palavras foram inventadas.

 

Daniel desceu do carro e eu o segui, deslizando para fora da carroceria.

 

— Imagina o que as velhas fofoqueiras do bairro vão dizer quando te virem falando sozinho na porta da macumbeira. — brinquei enquanto o observava trancar o veículo.

 

— Problema delas. Eu não moro aqui. — ele deu de ombros. — Não é como se elas pudessem dizer que o filho da Márcia tá metido com feitiço.

 

— O nome da sua mãe é Márcia?

 

— Não. O nome da minha mãe é Denise.

 

— Por que você disse Márcia?

 

— Por causa do meme. — ele me olhou como se eu fosse tonta. — Você sabe. Aquele dos gatinhos.

 

— Não conheço nenhuma Márcia. Muito menos uma que tenha gatinhos.

 

Ele me olhou com um ar de reprovação e soltou um suspiro antes de apertar o botão do interfone. Ouvi o toque ressoar durante alguns instantes antes que alguém finalmente atendesse.

 

— Alô? — disse uma mulher do outro lado da linha.

 

— Oi, tudo bem? — Daniel respondeu. — Meu nome é Daniel Sanchez. Eu mandei um zap sobre o meu caso. Estou aqui para ver a dona Aninha.

 

— Certo! — a mulher respondeu. — Meu neto vai aí abrir pra você.

 

— O que é um zap? — eu perguntei.

 

Quando Daniel me olhou, o choque estava estampado em sua face.

 

— Meu Deus, garota! — exclamou. — Como você sabe pouco. Parece até que morreu!

 

Contive uma risada.

 

— Engraçadinho!

 

O portão se abriu algum tempo depois, revelando um rapaz alto e magro, com cabelos castanhos compridos e longas orelhas. Eu reconheceria aquele rosto em qualquer lugar.

 

— Miguel!

 

Miguel deu uma longa piscada antes de focalizar seus olhos em mim. Se eu ainda estivesse viva, teria provavelmente arrepiado.

 

— Eu sabia que você viria mais cedo ou mais tarde. — ele disse, fazendo um sinal para que entrássemos.

 

Daniel estava embasbacado.

 

— Cara, eu não sei nem por onde começar. Além de ver ela, você sabe quem ela é?

 

— É claro. — Miguel respondeu. — Houve uma época em que ela aparecia todos os dias no lugar em que eu trabalhava.

 

Miguel começou a andar, guiando-nos por um pequeno corredor até a casa nos fundos.

 

— E-eu não sabia que você podia me ver. — gaguejei.

 

— Eu sou um médium. Vez ou outra eu sempre topo com um espírito, afinal eu atraio naturalmente esse tipo de coisa. — Miguel voltou a cabeça para trás, mirando-me por cima do ombro. — Eu não queria que você ficasse desconfortável, sabe? Você estava tão bonitinha fazendo a coreografia do John Travolta.

 

— Nossa Senhora!

 

Daniel soltou uma risada.

 

— Tentei de mostrar algumas vezes que eu conseguia te enxergar, mas acho que você nunca percebeu. Talvez se sentisse mais confortável não percebendo.

Anui. Eu gostava de Miguel, principalmente porque ele não era tão enfadonho quanto os outros vivos. De certa forma, eu não podia negar que o que fortalecia esse sentimento era o fato de que eu era invisível aos seus olhos. Não ser percebida me tranquilizava e, mais do que isso, permitia que eu o conhecesse como ele realmente era.

Agora isso tinha se perdido.

 

— Não precisa se preocupar. — ele disse. — Aposto que minha avó consegue ajudar você.

 

Miguel abriu uma porta antiga, composta de vidro canelado, metal pintado de marrom e um postigo, e nos guiou para um ambiente que tinha a exata vibração que a casa de uma bruxa deve ter. Encostada na parede da direita, havia uma longa mesa que servia de altar. Sua superfície estava coberta de todo tipo de apetrecho mágico: cristais coloridos, bonecas de pano, um pesado caldeirão de metal, ervas, conchas, baralhos e todo tipo de item que pudesse ser obtido na natureza. Uma mesa redonda tinha sido posicionada no centro do cômodo, cercada por quatro cadeiras e coberta com uma toalha azul e cheia de estrelas douradas. Sobre ela, havia uma bola de cristal que emitia um brilho próprio e místico.

Muito embora houvesse um lustre, a luz do ambiente provinha de velas acesas por toda parte. Vários palitos de incenso tinham sido acesos e cuspiam fumaça dançante. Eu não conseguia sentir o cheiro deles, mas conseguia imaginar. 

Aninha Vê-Tudo era bem diferente do que eu imaginei. Para começo de conversa, ela não parecia uma picareta. Era apenas uma senhora baixinha e morena, com dedos muito longos e um sem-fim de colares coloridos. Usava o cabelo preso em um coque volumoso e roupas na moda indiana. Ela sorriu quando nos viu.

 

— Daniel Sanchez. — ela disse com uma voz aveludada. — Você e o espírito que te acompanha são bem vindos nessa casa. Como eu posso ajudá-lo nessa noite?

 

— Você consegue ver o fantasminha camarada que está me seguindo também?

 

— É claro. — seus olhos pousaram em mim. Havia muita ternura em sua voz. — Não é um espírito ruim, embora esteja fragilizado.

 

— Certo. — Daniel disse. — Mas como eu exorcizo? Jogo dois punhados do sal em cima do ombro e começo a rodopiar enquanto falo latim?

 

Aninha tomou a palavra antes que eu pudesse revidar.

 

— Ela não é um demônio, Daniel. Além disso, você gostaria mesmo que ela fosse embora?

 

— É claro! — ele respondeu. — Eu não tenho nem mais privacidade. Sequer posso andar de cueca na minha casa com medo dela ver o meu...

 

— Faça-me o favor. — eu interrompi. — Você acha mesmo que eu tenho algum interesse nesse seu pintinho murcho, meu anjo?

 

— O que eu tenho aqui é um gavião, querida. Um gavião!

 

Não pude conter a risada. Miguel também ria.

 

— Vou ajudar vocês a se acertarem. — havia um sorriso misterioso no rosto de Aninha. — Mas, primeiro, devemos fazer uma torta.

 

 

 


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