Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 11
Fiat Uno




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A porta estava aberta e Daniel me esperava do outro lado.

 

— Isso não vai dar certo. — eu disse.

 

— É claro que vai.

 

Ele tinha muita certeza de que ia.

 

— Onde você aprendeu esse tipo de coisa?

 

— Eu olhei no Google, ora!

 

— Daniel, se toca. Postam qualquer coisa na Internet hoje em dia. Desde tutoriais para fazer sabão com pelo de cachorro até foto do pé.

 

— Mas o Josias Feitiçarias é batata, menina. — ele retrucou. — Vamos lá. Não acredito que vi um tutorial de uma hora ensinando a expulsar demônios e você nem quer tentar.

 

— Eu não sou um demônio!

 

— É uma adorável capetinha. — ele sorriu de um modo um tanto malicioso. — Agora venha. Basta dar um passo. Se não der certo, eu juro que não falamos mais nisso.

 

É claro que aquele assunto retornaria. Eu sabia que nós dois pertencíamos àquele tipo de pessoa que raramente gostava de receber visitas, então o que dizer de um... hóspede involuntário. Eu não podia culpar Daniel por estar desconfortável com a minha presença. Infelizmente, não era como se eu pudesse ir embora.

 

Respirei fundo e obedientemente dei um passo adiante. Para minha completa surpresa, meu pé atravessou o limiar da porta e num instante eu estava no corredor, de pé diante de Daniel. Mordi o lábio inferior. Ele comemorou.

 

— Viu! — ele disse. — Josias Feitiçarias nunca erra. Se errou, foi tentando acertar.

 

— Não entendo... Qual é a razão disso?

 

— Aparentemente, você está conectada a mim por alguma razão. Parece que aonde eu for você vai.

 

Soava estranho, mas explicava algumas coisas. A começar pelo fato de que eu só conseguia sair do apartamento quando Daniel também saía. Ainda sim, havia aquela força estranha que parecia estar me puxando para ele continuamente, me guiando em direção ao desconhecido que era seu olhar.

 

Imaginei que ele tinha a intenção de fazer apenas um teste, mas ele fechou a porta e passou por mim, em direção as escadas. Tinha vestido sua jaqueta de couro e tirou a chave do carro do bolso. Mesmo que eu não soubesse para onde ele quisesse ir, minha única opção era acompanhá-lo.

 

— Para onde vamos?

 

— Estamos indo até a melhor vidente desse Brasil. — ele disse. — Aninha Vê-Tudo, ou melhor dizendo, Mãe Ana de Angola.

 

Eu franzi o cenho momentaneamente.

 

— Certamente deve haver algum tipo de órgão regulador dos nomes dos místicos. — eu disse. — Você só pode ser um místico de verdade se tiver um nome brega. — falei imitando uma voz grossa.

 

Daniel deu uma risada tão alta que eu tive medo de que alguém o pegasse falando sozinho.

 

— Qual seria o seu nome de mística?

 

— Nim dos Sete Palmos.

 

— Olha só, você gostou do apelido. — ele disse. — Acho que o meu seria Danilo Bate e Volta.

 

— Você nem chama Danilo!

 

— Aposto que o nome da Aninha Vê-Tudo não é Ana. — Daniel sorriu. — Isso é o showbiz, gata. Para ser um bom vidente é importante ter um bom nome artístico.

 

Quando Daniel percebeu que eu sorria, ele piscou para mim.

 

 

 

A garagem era pior quando vista de perto. O chão era composto de pequenos azulejos de pedra despedaçados e o mato crescia alto nos lugares onde eles se desfaziam. O teto metálico que cobria os carros estava enferrujado devido à chuva e se inclinava para frente em um ângulo estranho, como se estivesse prestes a cair.

 

— Esse não é um lugar muito bom de se morar. — eu comentei.

 

— Não mesmo. — Daniel concordou. — Mas eu não sou um tatuador famoso ainda. É tudo que minha grana pode pagar.

 

Ele nos guiou até um Fiat Uno 99 na cor vinho. Abriu a porta do motorista e me olhou fixamente.

 

— Eu não preciso abrir essa porta para você, não é? — ele perguntou. — Não me leve a mal, mas esse lado não abre direito desde que eu comprei esse carro. Como um fantasma, pensei que você simplesmente pudesse atravessar.

 

Eu revirei os olhos e abaixei um pouco o corpo, atravessando a carroceria e indo parar direto sobre o banco do carro. O painel frontal estava um lixo: havia papéis de doces, sacos de salgadinhos de queijo e latas de refrigerante por toda parte. O banco de trás estava pior. Papéis com desenho se espalhavam por todo lado.

 

— Eca! — eu disse. — Isso é um carro ou um lixão?

 

— O que você preferir, princesa.

 

— Me chamar de princesa não vai mudar que você é um grande porco.

 

— Não fui eu que deixei assim. Foram os amigos do meu irmão, na noite em que...

 

Ele abruptamente fechou a boca. Percebi que os nós dos dedos, que estavam fechados ao redor do volante, ficaram brancos de tanto que ele apertou. Eu sabia de qual noite ele falava.

 

— Na volta eu te ajudo a arrumar. — eu disse.

 

— E você consegue tocar nas coisas? — ele perguntou. — Quer dizer, eu ainda estou esperando você passar direto pelo banco do carro e bater no asfalto.

 

Daniel deu partida e começou a manobrar o carro para fora do prédio. Percebi, com certo alívio indefinido, que ele tinha voltado a si.

 

— Às vezes sim. Acho que depende do tipo de coisa.

 

— E em outros seres humanos?

 

— Desde que estejam mortos...

 

— Você não consegue interagir com pessoas vivas? Tipo, a ponto de empurrar alguém da ponte?

 

— Talvez. — dei de ombros. — Se estiver sentindo raiva o bastante. Isso tudo é novidade para mim também.

 

— Então você morreu a pouco tempo?

 

Soltei um suspiro.

 

— Não sei dizer. Pode ter sido semana passada ou há cem anos atrás.

 

— Nah. — ele disse. — Não foi a tanto tempo assim. As pessoas não usavam tanto delineador preto no começo do século. Nem tinham essa pose de emogótica triste.

 

— Uns dez anos atrás então?

 

— Pode bem ter sido na semana passada. — ele disse. — Sabe como é. Os jovens ressuscitaram essa moda alternativa com o TikTok.

 

— Eles ressuscitaram as modas antigas com... a Kesha?

 

— Antes fosse. TikTok é um... — Daniel suspirou. — É melhor você não saber. Ignorância é uma benção e eu não quero que você fique ainda mais chateada com a raça humana.

 

— E te empurre de uma ponte?

 

— Definitivamente eu não quero que você me empurre de uma ponte.

 

Eu sorri. Ele também sorriu.

 

Daniel girou a alavanca e abriu a janela do lado do motorista. Esticou-se sobre mim e abriu a janela do meu lado. Depois de algum tempo, ele apertou um botão no display e o rádio começou a tocar. Aquele aparelho parecia ser a única coisa nova dentro daquela lata-velha.

 

A voz de Tim Maia embalava a cidade. Fitei a paisagem e, enquanto as casas passavam por mim, percebi que elas pareciam nunca mudar. Eu nunca tinha visto aquela parte da cidade antes, mas a arquitetura típica brasileira era mais do que familiar. Casas de até dois andares, com portões de várias cores ou grade na frente... Eu me sentia inexplicavelmente em casa, embora eu tivesse certeza que nunca tinha morado ali. Talvez aquilo que te faça, de fato, pertencer a uma nação seja a sensação de que todo lugar parece o seu lar, mesmo não sendo.

 

Daniel tinha começado a cantar. Me peguei prestando atenção na voz dele, me deixando levar pelo timbre que, apesar de não ser necessariamente afinado, era bastante gostoso de ouvir. Quando me dei por mim, já estava cantando junto.

 

 

 

Ela partiu, partiu

 

E nunca mais voltou

 

Ela sumiu, sumiu

 

E nunca mais voltou

 

Se souberem onde ela está

 

Digam-me, e eu vou lá buscá-la

 

Pelo menos telefone, em seu nome

 

Me dê uma dica, uma pista, insista

 

Ei, iê, iê, iê

 

E nunca mais voltou

 

Ela sumiu, sumiu

 

E nunca mais voltou

 

 

 

— Cara... — Daniel disse. — Essa toca fundo na minha alma.

 

— Ela partiu? — perguntei de brincadeira.

 

— E nunca mais voltou, cara. — havia uma nota de tristeza em sua voz. — Algumas pessoas nunca voltam.

 

A resposta tinha me pegado de surpresa. Me feito sentir desconfortável.

 

De repente, o carro parou. Daniel puxou o freio de mão e olhou para mim.

 

— Vem, fantasminha. — ele disse. — Vamos te ajudar a voltar para o além.


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