Minha vida era quase perfeita. Eu tinha uma casa. Eu tinha comida. Tinha trabalho, Tinha amigos; mais do que isso, uma família. Peg havia voltado. Kyle estava sempre comigo. Tudo corria maravilhosamente bem. Uma pena que Kyle não se esquecesse de Jodi.

                O céu do deserto estava ficando mais escuro antes que a noite chegasse, sinal de que logo estaríamos em época de chuva. Todos preparávamos nossas coisas para que, logo que a chuva começasse, nos mudássemos imediatamente para a sala de jogos, que seria nosso dormitório.

                Candy – que finalmente lembrou de seu nome – e Lacey agora iriam dividir o antigo quarto de Wes. Jamie se mudaria para um canto vago na caverna de Aaron e Brandt, pois Melanie e Jared tinham coisas a fazer que não são exatamente o que uma criança deveria ver, se é que me entende (céus, tenho que parar com isso! Conviver com humanos está me deixando com a mente um pouco poluída...). Kyle está amplificando o antigo quarto de Walter, e nós dois ficaríamos juntos por lá. Eu havia oferecido para que Jamie se instalasse lá conosco, mas os outros não pareceram confiar muito em mim e em Kyle, o que me deixou muito corada. Agora todo espaço era necessário.

                Eu e Kyle estávamos andando até o refeitório, e nos deparamos com Peg e Jamie.

                -Hei – Kyle disse. – Tudo bem com vocês?

                -Ahn, sim – Peg respondeu sorrindo. – Ei, Sunny. Tudo bem?

                -Muito bem – respondi sorridente, mas ainda assim tímida. – Prontos para o começo da chuva?

                -Ah, estou muito ansiosa – Peg falou. – Lembro das memórias de Melanie e me sinto curiosa, principalmente sobre o cheiro da chuva no deserto...

                -É muito, muito legal quando chove!!! – Jamie se entusiasmou. – Ficamos todos juntos na sala de jogos, e conversamos bastante, e todas essas coisas legais. É diferente de normalmente.

                Eu sorri.

                -É, acho que agora vai ser mais legal – disse Kyle, com um sorriso torto.

                Rolei os olhos e dei um soco fraquinho no braço dele.

                -Ok, ok, vai ser muito mais legal – ele disse rindo.

                -Bem, estamos indo para o refeitório, e vocês? – perguntei.

                -Uh, vamos para lá daqui a pouco – Jamie contou. – Guardem um lugar para nós na mesa, está bem?

                Assentimos e saímos andando. Hoje tínhamos ovos mexidos borrachudos, pão e manteiga. Eu me servi com pouca comida. Sentamo-nos na mesa e começamos a comer em silêncio, e logo Ian, Jamie e Peg chegaram.

                                                               *********

                As chuvas já haviam começado. Eu e Kyle estávamos arrumando nossos colchões juntos, num canto do salão. Nossos colchões eram grandes e eu já estava exausta de carregar o meu, mas não contei ao Kyle. Ele olhou para mim e perguntou:

                -Ei, Sunny? Isso não está pesado para você não?

                -Ahn... er... não, imagina.

                Ele bufou e rolou os olhos, pegando o colchão dos meus braços e segurando-o com o seu braço esquerdo.

                -Quando você estiver cansada de algo, me diga. Não quero você insatisfeita, está bem?

                Sorri e assenti.

                -Desculpe – pedi baixinho.

                Ele parou e segurou meu queixo.

                -Não precisa pedir desculpa, ok? Está tudo bem.

                Ele beijou minha testa e nós continuamos nosso caminho até nosso cantinho na sala de jogos. Nesse exato momento, Sharon teve um ataque de ciúmes ao ver Candy com Doc, e arrastou seu colchão para perto do dele, sem mais explicações. Ao longe, do outro lado do salão, Jamie chamou Peg para dormir com ele e Ian.

                Kyle colocou nossos colchões no lugar.

                -Ei, Kyle – chamei, sem desgrudar os olhos dos três. – Olhe lá.

                Kyle se levantou, envolveu meus ombros com seu braço e olhou para Ian e Peg. Deu um assobio e eu comecei a rir.

                -Parece que esses dois vão finalmente se acertar – ele observou.

                -É – falei, pesarosa, pois sabia que demoraria um bocado para que eu e ele nos acertássemos. E então soltei um grande bocejo.

                -Venha, vamos dormir Sunny.

                Assenti e me deitei no colchão, junto a ele. Me enrolei e fiquei encostada em seu peito. Kyle colocou um cobertor em cima de mim, começou a acariciar meus cabelos e cantar uma cantiga bonitinha.

                -Música bonita -  observei.

                -É yesterday, dos Beatles – ele explicou. – Bonita, não?

                Assenti.

                -Kyle... se ela não voltar... eu... você...

                -Shh – ele pediu delicadamente, pousando seu indicador em meus lábios. – Tudo vai ficar bem, Sunny. Eu gosto de você. Você gosta de mim. Agora durma.

                Mesmo sem ter recebido uma resposta concreta para a minha pergunta, relaxei. Sonolenta, ouvi ao longe a voz de Jeb mandar:

                -Apagar as luzes. Todo mundo de boca fechada para eu poder fechar os olhos.

                Dei um risadinha baixa e senti o corpo de Kyle se mexer, sinal de que ele ria também.

                -Boa noite – murmurei, me aconchegando em seu peito à medida que as luzes se apagavam.

                -Boa noite – ele respondeu, beijando minha testa e fazendo eu me encher de calafrios.

                                                                                 *********

                A época das chuvas passou. Nossos suprimentos estavam minguando. Logo era tempo de outra incursão. Ninguém queria que Peg fosse ainda, pois achavam que ela ainda não tinha se recuperado totalmente. Queriam me levar, mas tenho que admitir que a simples menção da palavra “incursão” já me dava arrepios. Só de pensar que eu teria de sair da minha segurança, de sair sem Kyle, eu já morria de medo. Sou uma covarde.

                Além do mais, eu não havia sido “testada” ainda, sabe? No final das contas, Peg foi a escolhida.

                Depois de meus protestos, Kyle decidiu ficar comigo. Jared, Ian, Mel, Peg, Aaron e Brandt iriam dessa vez. Seria agora que testariam se o rosto de Peg seria “útil” ou não. Sem falar que Mel também já tinha certa experiência com almas.

                Havia pouco tempo que eles tinham saído, mas eu estava muito nervosa e ansiosa. Jamie estava comigo, preocupado também. Eu, ele e Kyle estávamos no meu quarto, deitados na cama, jogando “stop”.

                -Ei, parem vocês dois – Kyle pediu. – Garoto, Sunny, tudo vai ficar bem. Já fomos em muuuuuuitas incursões.

                Eu assenti.

                -Ele deve ter razão, Jamie. Nós estamos nos preocupando à toa.

                Jamie assentiu.

                -Sei disso... mas nunca se sabe, não é, Sunny?

                Assenti.

                -Vamos ficar perto da entrada, por favor? – pedi.

                -Sunny... – Kyle resmungou, preguiçoso.

                -Por favor... – fiz meu olhar de cachorro pidão e Kyle sorriu, assentindo.

                Fomos andando para perto da entrada e ficamos sentados lá, enquanto eu contava sobre a minha vida com os ursos. E, então, ouvimos passos. Eu me encolhi de medo e agarrei o braço de Kyle com força, Jamie apertando minha mão. Kyle levou o indicador aos lábios, pedindo silêncio. Se separou de mim, me deixando agarrada a Jamie, e se levantou, erguendo uma pedra e se preparando para arremessar em quem quer que estivesse entrando.

                Mas foi aí que eu vi Mel e Jared rindo, à frente.

                -Kyle, não! – pedi. Ele virou para mim. – São eles.

                Ele respirou fundo, aliviado e largou a pedra no chão.

                -Hei, vocês nos assustaram, sabiam? – ele disse para Jared.

                Nossos incursionistas entraram mas.... haviam mais sete humanos com eles.

                -Jamie, chame Jeb logo, por favor – Mel pediu.

                -Sem chance – ele retrucou. – Pô, Mel, quero saber que história é essa!

                -Chame o Jeb e você vai saber, Jamie.

                Ele bufou e correu atrás de Jeb. Lancei a Peg um olhar interrogativo. Mas, antes que eles respondessem qualquer coisa, eu sem querer ergui a lanterna que estivera segurando, apontando-a para os olhos de um ruivo do grupo. Seu rosto tinha muitas sardas e seus olhos eram azuis-escuros. Mas havia um círculo prateado em volta deles.

                -Outro?! – perguntei, assustada.

                Nossos incursionistas riram. Os outros ficaram quietos, sem entender.

                -Gente, essa é Sunny – Aaron me apresentou. – Outra alma... como você chamou, Cal? Ah, é: aculturada!

                -Ahn... er... oi – eu disse, tímida, corando no mesmo instante e me agarrando a Kyle.

                -Eu sou Cal – o ruivo alma estendeu sua mão. – Prazer em conhecê-la.

                -Prazer – eu disse, apertando sua mão fraquinho. – Ahn... e vocês... quem são vocês?

                -Sunny, Kyle – Mel adiantou-se. – Estes são os membros de outra célula de resistência humana. Somos 5 ao todo. O mundo não está tão perdido assim, não é?

                E então, eu sorri. Não tinha mais tanto medo deles. Afinal, agora eu era quase... humana.