Um Reino de Monstros Vol. 1 escrita por Caliel Alves


Capítulo 9
Capítulo 2: A Cidade Subterrânea - Parte 3




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O Barão de Flande estava na mesa tomando o café da manhã quando um mensageiro trouxe um pergaminho.

— Estou fazendo o meu desjejum. Será possível que aquele macaco dos infernos não pode me deixar em paz?

A baronesa e a sua filha estavam fazendo companhia ao lorde, elas olharam uma para outra.

— Deve ser assunto político, meu bem. Não fica bem tratá-lo à mesa.

— Mas não foi o que eu disse a esse paspalho?

Ele abriu o pergaminho com rudeza e ele o leu, depois o releu e treleu até que a caveira ficou impaciente.

— Então, que resposta eu devo dar à Guarda Municipal de Monstros?

— À darei pessoalmente. Agora vá, vá.

A caveira revirou os olhos e seguiu até a porta aonde um grupo de soldados humanos lhe escoltou.

Diferente de muitos “colaboradores do Reino dos Monstros”, Gumercindo não confiava neles. E por meio de ameaças, conseguiu que alguns cavaleiros fizessem esse papel. Verdade é que todos, exceto os que eram favorecidos por ele o odiavam.

Chegara ao trono do baronato por meios duvidosos. Como um dos mais fiéis súditos de Zarastu, ele instituiu decretos e altos impostos para os humanos. Com a sua ganância, ele tinha colocado 90% dos flandinos abaixo da linha da pobreza.

— Oh, como eu odeio o capitão Nipi! Sempre estraga os meus desjejuns.

— Querido, não o desafie, sabe muito bem como aquele gorila é perigoso.

— Quando eu tiver oportunidade, eu mesmo serei o chefe da Guarda Municipal de Monstros.

A mulher arqueou as sobrancelhas, como o marido estava apressado, ela não o deteve.

Ele foi escoltado pelo mesmo grupo, aqueles cavaleiros flandinos não eram nada mais nada menos do que o remanescente que não estavam com os rebeldes e que não haviam sido mortos. Através de chantagem, eles decidiram proteger o Barão de Flande.

A filha do barão, trajada com um rico vestido adornado de pedrarias, continuou a comer. E como àquela invasão lhe tirou o apetite, jogou todo o prato fora. Quando muitos não tinham o que comer, ela desperdiçava. Não à-toa, vivia magricela. Seu medo de engordar era maior do que o medo da guerra.

Antes de sair, o barão voltou os seus olhos para trás. Tinha tudo o que queria, mas o verme da ganância em seu coração não estava saciado. Ele soltou uma maldição e saiu.

— Tragam uma sacola de maçãs. Não as boas, aquelas que já estão apodrecendo e peguem a sege de quatro cavalos.

No pátio, quatro alazões estavam atrelados a uma fina carruagem. Se não fosse com pompa, ele não saia. A carruagem tinha uma abertura no teto que o possibilitava jogar as maçãs para o povo famélico.

Não fazia isso por misericórdia, ele apenas se divertia ao ver dezenas de pessoas famintas e esfarrapadas brigando violentamente por uma maçã apodrecida, era o seu deleite.

O teto solar havia sido invenção do irmão mais velho de Clapeyron, o antigo barão costumava acenar para o povo enquanto saia pelas ruas.

Gumercindo adentrou na sege e o condutor deu uma chibatada nas ancas dos cavalos. O portão foi aberto e seguiu-se um galope veloz. Do portão para fora o que se viu foi uma cidade praticamente morta, mendigos e pilhas de lixos se amontoavam pelas ruas em contraste com os poucos burgueses restantes.

Devo baixar um decreto para tirar essas pessoas das ruas e praças principais, elas fedem e deixam a cidade feia.

— Para onde devo levá-lo, Vossa Alteza?

— Para a sede da Guarda Municipal de Monstros.

Gumercindo ajeitou a sua barriga saliente, e forçando suas perninhas, subiu pela entrada no teto com a sacola de maçãs nas mãos.

— Comam maçãs! Tomem, seus mortos de fome! Os porcos devem comer, huahuahua.

O condutor sentiu uma vergonha alheia, trabalhava num regime de semiescravidão em troca de comida e abrigo. Ele olhou para todos a sua volta e viu registrado em cada olhar um brilho de inveja, outros de ódio. O condutor virou o rosto e focou na estrada.

Uma das maçãs atingiu o rosto de uma criança. Ela se colocou em posição fetal e chorou de dor. Gumercindo riu tanto que começou a babar como se fosse um cão sarnento. E como os pobres flandinos não tinham mais força para brigar pela comida, para que continuasse a se divertir, fez tiro ao alvo usando as maçãs apodrecidas.

— Huahuahua, você deveria tentar, condutor. Veja como eu os acertos.

E para cada maçã que explodia no corpo de alguém, uma nova gargalhada se fazia ouvir. E assim foi todo o trajeto, até que as maçãs acabaram.

— Huahuahua, essa foi à viagem em que mais me diverti. Foi muito bom, muito bom.

— Chegamos, Vossa Alteza.

Gumercindo ainda sorria quando dois olhos flutuaram do chão para o ar.

— Oh não, se afaste de mim.

Dois lábios apareceram sorridentes, as presas estavam amostra.

— Pobre menino rico, de tão pobre só tem dinheiro.

Durante todo o trajeto, Leona estava perto dele. Ninguém poderia perceber, pois ela tinha uma incrível conjuração: a invisibilidade.

Essa magia divina de extrema dificuldade era dominada por ela facilmente. Embora a dominasse à perfeição, Leona não conseguia adentrar nas passagens secretas dos rebeldes, porque se assim fizesse, logo a sua forma visível era denunciada.

— Leona.

— Para você, é capitã do Batalhão Espectral, seu grande idiota.

Saindo da forma invisível, ela se mostrou ainda mais feroz que antes, mas não o atacou.

Ela estava irritada com Gumercindo, não que ela se importasse com o mau tratamento dado aos humanos, mas sim por acreditar que o direito de os torturar era só dos monstros. Para Leona, alguns seres humanos tinham atitudes mais monstruosas que as deles.

— Desça dessa carruagem, o capitão Nipi deseja vê-lo.

— A senhora poderia me adiantar o assunto?

— Isso não é problema meu, e não fui eu que o chamei aqui, que fique bem claro.

E antes que Gumercindo desse uma resposta, ela desapareceu.

O barão tremeu dos pés à cabeça. Mesmo com passos trôpegos, continuou a caminhar. Duas caveiras estavam de guarda, e quando o barão se aproximou, elas fizeram uma reverência. O problema é que as lanças que portavam deceparam a cabeça uma da outra.

Gumercindo abanou a cabeça com ar de decepção. Os corpos das caveiras começaram a se debater como se fossem baratas tontas no chão.

O convidado adentrou a porta da sede da extinta Guarda dos Cavaleiros Flandinos. Uma placa com o lema da instituição que havia numa xilogravura em carvalho, agora tinha um outro escrito: “Sobre domínio do rei Zarastu”.

Ele seguiu pela recepção de cabeça baixa, algumas caveiras iam de um lado para o outro bafejando a morte entre suas mandíbulas.

— Onde está o capitão Nipi?

— Como vou saber, humano idiota?

Mas idiota é responder com outra pergunta, cretino.

Não ousou dizer os seus pensamentos em voz alta. Não queria passar uma noite nos calabouços da guarda municipal. Além da sede do Exército local, o lugar também funcionava como uma área de treinamento para novos membros e portava em seus calabouços muitas celas.

Se antes as celas eram usadas por ladrões e baderneiros, agora serviam para acomodar os rebeldes que durante dia sim dia não sofriam horríveis torturas nas mãos de Nipi.

O nobre subiu pela escada em espiral. Nas paredes, diversos quadros de Nipi estavam pendurados. Muitos como se ele fosse o próprio Barão de Flande. Aquela briga de egos entre os dois fazia com que o próprio domínio da cidade estivesse em risco.

O aristocrata o achava confiante demais e um tanto presunçoso. Nipi não via nenhum perigo em Gumercindo, e mal sabia da aproximação do mesmo com o rei. Se ele assim soubesse, com certeza já o teria colocado em algumas das suas máquinas de tortura.

O homem chegou até o quarto andar, uma caveira andava para lá e para cá com uma lança em riste. Gumercindo se aproximou sorrateiramente e percebendo a distração do monstro, indagou com severidade:

— O capitão Nipi se encontra?

— Quem vem lá?

— O Barão de Flande, seu idiota.

— Perdão, Vossa Alteza...

Com rispidez, Gumercindo abriu passagem pela porta. Dentro da sala, estava Nipi, sem sua armadura. Usava um robe marrom e uma caveira com uma toca na cabeça, vestida de empregada, polia a sua armadura prateada. Outra aparava suas unhas, e uma terceira limpava o escritório.

Havia papéis e tinta esparramada na mesa, livros abertos e o capacete jogado de lado. Aguçando os olhos, Gumercindo notou que não havia pêlos na barriga do mapinguari.

Então é por isso que usa essa armadura, não é?

Todos que combatem monstros sabem que cada um deles tem determinada fraqueza. A dos mapinguaris se concentrava no ventre, pois seus pêlos rijos como fios de aço não nasciam ali na área do ventre.

Para se livrar desse ponto fraco, Nipi usava uma pesada armadura. Mas essas informações de nada valiam se você não pudesse derrotá-lo num único ataque. As chances de um contra-ataque eram perturbadoras demais para serem pensadas.

Nipi, percebendo a invasão do barão, fez um gesto dispensando as caveiras.

— Vossa Alteza demorou tanto que quase me esqueci de que existia.

— Vossa Excelência é tão vaidoso ao ponto de esquecer que os outros existem...

Nipi saltou em cima de Gumercindo torcendo o seu pescoço. O rosto do homem arroxeou e ficou rapidamente inchado. Não contente com isso, Nipi o levou até à janela. Do lado de fora, o vento sacudiu as vestes do barão. Sua peruca branca foi levada pelo vento.

Enquanto isso, as caveiras treinavam no pátio da guarda. Depois de se divertir bastante, Nipi o colocou para dentro, o jogando no chão.

O corpo rechonchudo foi embolando até bater na parede. Gumercindo apalpou a garganta, parecia que os seus órgãos internos haviam desprendido de dentro do seu corpo.

— Levante-se, ainda não terminei com você.

Se eu tivesse um punhal, eu é que estaria rindo agora, seu selvagem. Mas deixe estar, quem ri por último rir melhor.

— Um mensageiro me trouxe um pergaminho pedindo para que eu viesse, mas não achei que fosse para me matar, bluf...

— Jamais faria isso deliberadamente. Sei que goza dos privilégios de Sua Majestade. Isso não significa que a sua posição de subalterno tenha mudado.

Os olhos de Gumercindo queimavam de ódio. Por um momento, ele desconfiou que os seus planos houvessem sido descobertos. Mas analisando melhor, não dava para saber.

Nipi pulou pela sala até chegar a Gumercindo, fazendo-o voltar a ficar de pé pela força de seus braços. O barão, com as pernas tremendo, ficou ereto, mas por dentro, ele morria de medo. Sentia-se um boneco nas mãos daquele enorme gorila.

— Olhe para estes punhos, meu caro barão. Com a minha magia divina Poaçú, eu posso destruir qualquer coisa com um simples toque. Posso lutar por horas e horas sem perder a minha força. Além disso, eu sou um conjurador de Enug, a minha magia provém da fé que deposito nele, e não da minha energia mágica. Não ouse me desafiar outra vez ouviu!

— Sim, capitão Nipi.

— Sente-se antes que eu me arrependa.

Nipi foi até à sua mesa e sentou usando um dos pés para coçar a sua barriga rosada.

Gumercindo teve náuseas. Evitando olhar para àquela cena que julgava deplorável, fez a pergunta que Nipi esperava.

— Em que posso ajudar o chefe da guarda municipal?

O mapinguari soltou uma estridente risada de escárnio. Ver a humilhação de um ser humano para ele era equivalente a assistir a uma peça de comédia.

— Repita a primeira parte, por favor.

— Em que posso ajudar...

— Huhuhuhuhuhuhuhuhuhuhu, você não passa de uma piada, barãozinho de quinta. Olhe para si mesmo, mais parece um peru de ceia do que um nobre. Metade da decadência dessa cidade é por sua avareza, a outra metade é pela sua incompetência, huhuhuhuhuhu.

Gumercindo engoliu todas as ofensas, e no fim daquele saboreio amargo, ele soltou um doce sorriso que fez Nipi se calar de imediato.

— O que foi?

— De acordo com as minhas informações, ontem à tarde você foi encurralado por um grupo de rebeldes. Com todo respeito à Vossa Excelência, mas acredita estar apto a resguardar esta cidade? Não estaria na hora de nosso rei não o substituir?

Nipi apertou os seus punhos e bateu na mesa fazendo grotescos sons simiescos. Os dois ficaram se encarando.

— A Resistência só consegue atuar porque as suas políticas de combate aos rebeldes foram ineficazes, seu burguês imbecil! Nosso rei errou por colocar um simples homem fazer o trabalho de um monstro.

— Agora você desafia até o próprio rei? Você é que foi incompetente, evitou derramar sangue e quebrar ossos para não perder os seus brinquedinhos, não é Nipi?

O mapinguari urrou ainda mais. Desarrumou o escritório todo de novo e jogo a mesa pela janela, matando assim mais algumas caveiras lá embaixo.

— Está bem, a partir de segunda-feira, para cada um que tivermos preso, nós exigiremos a entrega de um outro rebelde. Caso a população flandina não nos entregue, vamos executar todos os presos em praça pública, um por um.

— Faça como quiser, capitão.

— Saia daqui seu humano nojento.

Gumercindo saiu com um sorriso de orelha a orelha. Não havia conseguido apenas tirar Nipi do sério, pôs também uma grande preocupação em sua cabeça: o que ele mais temia era perder o poder.

O barão desceu as escadas rapidamente com as pernas curtas e roliças, e chegou à sege estacionada na frente da guarda. Sem demora ele entrou e pediu ao condutor que o levasse novamente para sua mansão. O condutor não ousou perguntar, mas ao que tudo indicava, o barão havia sofrido um escalpo.

Gumercindo resmungava dentro do coche. Em outra oportunidade levaria um afiado punhal e derramaria os intestinos de Nipi pelo chão.


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