Um Reino de Monstros Vol. 1 escrita por Caliel Alves


Capítulo 23
Capítulo 5: Inatural - Parte 3




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Nos túneis da Cidade Subterrânea, os flandinos esperavam uma resposta. Rostos pálidos, olhos esperançosos. Ouviam a cacofonia de golpes sendo desferidos e magias sendo executadas. Até que um grande abalo ocorreu, esse ainda maior.

Minutos de aflição se arrastaram como uma eternidade. Até que a tampa do bueiro se abriu. Os flandinos arregaralaram os olhos, por fim, tudo havia terminado.

— Vamos, venham!

Saragat ordenara com seu tom de voz firme. Um a um os flandinos saíram do bueiro. Era noite, a praça central e algumas casas haviam sido destruídas. Centenas de pessoas estavam sendo cuidadas por Arnaldo e Dumas. Muitos dos refugiados reconheceram no meio dos recém-purificados amigos e entes queridos.

Não demorou para que os reencontros acontecessem às lágrimas. Pais e filhos, irmãos e irmãs, amigos de longa data puderam se abraçar e sorrir alegremente. Para os purificados, as lembranças tinham uma grande lacuna. Muitos se lembravam apenas de estar sendo perseguido pela Horda e acordar na praça principal de Flande.

Outros lembravam claramente que estavam em batalha contra os monstros, e de repente, a memória falhava como se nunca tivesse existido. Muitos ainda guardavam na memória o dia em que ficaram frente a frente com Zarastu. Mas nenhuma deles tinha consciência de que tinham sido monstros um dia.

— Você está bem?

Tell inclinara a cabeça. Ele estava com os joelhos dobrados ao lado da estranha garota de bandana e blusa listrada. Ela bebia um copo de água a goles rápidos.

— Sim, muito obrigada.

Index bateu as suas orelhas, e num instante, passou a voar ao lado da garota. Ela estremeceu.

— Argh! Um monstro! Tira esse bicho daqui!

Com um tapa, a garota mandou a criatura para longe. Tell sorriu ao ver a expressão de horror dela. Tentando acalmá-la, o jovem começou a explicar-lhe:

— Oh, não, ele não é um monstro, ele é o Guardião do Mons...

— Tell, sua mãe nunca te disse para nunca falar com estranhos?

Saragat e a jovem cruzaram olhares. Ao conjurador, os seus olhos pareciam oblíquos e dissimulados demais. Tell não deu nenhuma importância à afirmação do servo de Nalab.

— Ah, é verdade! Prazer, meu nome é Tell de Lisliboux.

Aos ouvidos da garota, esse nome lhe trouxe vagas lembranças, mas, reservou um lugar especial em sua mente para ele. Index voava como uma abelha tonta na cabeça de Tell.

— E eu sou Index, o Guardião do Monstronomicom, eu não digo que foi um prazer.

Ela sorriu. O primeiro encontro de ambos não tinha sido agradável. Estendendo a mão, ela cumprimentou o garoto e acariciou Index, depois, disse o seu nome:

— Meu nome é Rosicler, Rosicler Cochrane.

Sua pele negra contrastava com seus lábios róseo-pálidos, como se fosse à cor da aurora. Seus olhos eram castanho-claros, com um brilho cheio de vida.

Plaft, Saragat deslizou a mão da testa até o queixo, gritou com Tell e Index. Mas nada podia ser feito. O encapuzado se virou para os lados e indagou:

— Onde está o velhote?

— É verdade, nosso comandante ainda não retornou.

Dumas retrucara do outro lado da praça. Para surpresa geral, uma voz sonolenta respondeu:

— Estou aqui, meninos.

Todos inclinaram suas cabeças para a direção da voz, e deram passagem ao interlocutor. Os flandinos saudaram alegremente o seu herói, e logo gritaram o lema da Ordem dos Cavaleiros Flandinos. Clapeyron agradeceu pela comoção e respondeu com voz pastosa:

— Obrigado a todos, mas não precisam fazer isso.

— Tell, se apresse. Vá à guarda municipal e purifique Nipi.

— Não será necessário, Dumas. Nipi preferiu morrer como um monstro a viver como um humano.

Tell inclinou a sua cabeça. As poucas palavras do espadachim já lhe tinham revelado muito. Saragat de modo consolador, pôs a mão no ombro dele.

O quê? Esse garoto está triste pela morte de um monstro... O que ele quis dizer com “purificar”?

Os questionamentos rodopiavam envoltos na cabeça de Rosicler. Esperaria algum tempo até obter as informações necessárias.

Saragat continuava a observar a ex-alma de gato com olhos reticentes de quem já viveu o bastante para saber que se deve ter um olho aberto e outro fechado com as pessoas.

— Ainda falta alguém...

Dumas se direcionou até a praça e ordenou:

— Gumercindo e seus asseclas não estão aqui, encontrem-nos.

Tell e Saragat ficaram ali sem entender nada, mas resolveu ajudar cada um a seu modo.

A expressão de Dumas era fria, os seus olhos chamejavam de fúria. Diferente dos monstros que nada mais eram do que pessoas possuídas pela monstruosidade, Gumercindo e muitos outros burgueses se aliaram a Horda por livre e espontânea vontade. Depois da chegada ao poder, o barão Gumercindo instaurou um reino do terror.

Clapeyron se recompôs e foi até Dumas, que já desembainhara o seu sabre.

— Não tome nenhuma atitude precipitada, meu filho.

— Cale-se, não lhe devo satisfações.

Os flandinos passaram a procurar. Arnaldo se juntou ao grupo, e logo Tell, Index, Saragat e Rosicler também. Clapeyron tentava tirar esclarecimentos com Dumas.

O jovem nobre manteve sua postura firme. Cada canto e construção foi revirado, os humanos purificados se aglomeraram no centro da praça e esperaram novas ordens. Dumas subiu no palanque acompanhado do mestre de armas. O diálogo continuou num monólogo. O espadachim continuou resignado, cruzou os braços e observou a busca.

— Não está tentando fazer o que acho que estou pensando, está?

— Se eu fosse um rato temendo ser pego pelo gato, onde eu me esconderia?

Dumas desconversou como se não estivesse dando a mínima atenção a Clapeyron.

Rosicler meditou as palavras do jovem nobre. Ela tinha especialidade no quesito furtividade. Analisando cada canto da praça principal, descobriu o paradeiro dos fugitivos. Retirando o seu punhal da cinta, ela o lançou na direção de um barril. Um grito foi emitido e o barril rodopiou em cima da telega e caiu no chão, se espatifando.

Dentro dele, um assustado Gumercindo saiu. A população o pegou antes que evadisse. Em pouco tempo todos, os outros também estavam sob domínio da população.

Os flandinos os arrastaram até o palanque, e como se adivinhassem as ordens de Dumas, os puseram em forcas. Gumercindo ouvia a voz de sua filha esquálida e de sua robusta mulher debulhando lágrimas. Banqueiros e comerciantes, além de guardas do palácio estavam na espera da forca.

Dumas nada sentia, o seu coração estava rijo como pedra. O jovem nobre pronunciou:

— Pelos crimes de abuso de poder, cárcere privado, corrupção ativa e passiva, heresia, homicídio doloso, traição e tortura... sentencio Gumercindo e sua família, bem como todos os que participaram direta ou indiretamente da sua ascensão ao poder, a morte pela forca. Dou-vos ordem de execução pelo poder a mim concedido como herdeiro direto do Baronato de Flande, anexado ao Reinado da Casa dos Habsburgos.

— Mas, você ainda não foi nobilitado Barão de Flande. Eu ainda continuo com o título, você não pode me executar sem uma ordem da Coroa ou de um Tribunal de Guerra.

— Situações extremas exigem medidas extremas.

— Mas o quê?

Clapeyron não acreditava nas palavras de seu sobrinho. Dumas tinha os olhos tão sombrios que era impossível dizer qual sentimento ele tinha no momento. Flande enlouquecera, gritos de execução reverberavam. Tell não podia acreditar no que ouvia. Então ele subiu no palanque e pediu a palavra.

— NÃO! Se Flande executar essas pessoas, nós... nós seremos tão monstros quanto Nipi. Não deixe que o ódio tire a razão de vocês. Prendam-nos, mas não executem essas pessoas, afinal de contas, elas são humanas, e humanos erram.

— Sai daí, seu garoto idiota.

— Ele fala pelos monstros!

A população se agitou ainda mais. Saragat pegou a perna de Tell e pediu para que ele descesse. O povo se armou com pedras e frutas podres, e jogaram nos prisioneiros. O garoto ficou resignado e abriu os braços em cruz. Se colocou na frente de Gumercindo, o defendendo da ira popular. A população se inflamou. Index voou até Dumas.

— Faça alguma coisa, Dumas. Só você pode acabar com isso.

— Dumas, uma prisão perpétua já é mais que suficiente...

— Não, Clapeyron. Eu me recuso a gastar qualquer energia e moeda para manter esse séquito de mercenários na prisão. Eu, como o seu barão, seu superior direto e nobre, ordeno que você cumpra as minhas ordens, assim como todos os outros. Você já me tirou o direito a uma vingança, não terá nova oportunidade.

O mestre de armas se calou. Aquele definitivamente não era o jovem delicado e justo que conhecia, era a sua versão vingativa.

Saragat, Saragat... pressinto terríveis acontecimentos nesse impasse. Deixe que eu acabe logo com isso. Nas discussões acaloradas, os homens passam a perder a razão.

Seja feita a tua vontade...

No meio da multidão, Saragat começou a sofrer uma estranha transformação. A sua sombra se adensou na atmosfera, os seus olhos ficaram escuros como se fosse à noite.

A sua capa esfarrapada adquiriu contornos assustadores, como se a sua sombra tivesse ganhado vida própria. Com sua voz duplicada em dois timbres, a sonoridade ríspida de Saragat e a voz melodiosa da deusa, o conjurador bradou aos flandinos:

— Criaturas humanas, tantos crimes já passaram da condição do julgamento humano e agora como uma deusa virtuosa, eu Nalab, a Senhora das Sombras, reclamo para mim o conluio dos homens de Flande.

Todos se ajoelharam em respeito, mesmo que inconscientemente. O conjurador manifestando o ente divino ergueu o cajado e clamou:

— Que vossas almas sofram o eterno suplício do Limbo.

O cajado disparou um raio de sombra no céu estrelado, que de modo instantâneo, tornou-se um imenso buraco negro. Raios e um redemoinho abriram o céu para outra dimensão. O redemoinho celeste sugou Gumercindo e todos os outros que tinham contribuído mesmo que a mínima parte na traição, e desapareceram no portal dimensional.

Logo, os condenados partiram, Saragat caiu desacordado. A sua face estava serena. As nuvens tempestuosas cessaram o seu movimento rodopiante, e o lume das estrelas pôde ser visto de novo. O povo começou a dar gritos de congratulações, estavam livres!

Ploc-ploc, começara a chover em Flande devido ao fenômeno atmosférico. As pessoas dançavam em meio à lama formada pelos escombros dos casarões. Dumas olhava para o céu, soltou o ar exalando toda a tensão do seu corpo.

— Um Julgamento Divino! Isso é mais do que razoável.


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