Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 9
Ad Meliora


Notas iniciais do capítulo

Atenção! Este capítulo contém spoilers da série animada Rapunzel's Tangled Adventure.

O último capítulo foi um pouco pesado pra mim, então nesse dei uma desacelerada.



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Gothel estava novamente escalando as laterais do Palácio da Justiça, e esperava que dessa vez seu tornozelo aguentasse melhor. Sem seu capuz, o vento frio da noite parisiense penetrava suas roupas como agulhas, gelando até mesmo seus ossos. Olhou para cima, e viu que a janela dos aposentos do juiz era a única de onde emanava luz; uma luz fraca, tremulante, provavelmente de uma lareira quente e aconchegante. Se apressou em subir os beirais, alcançando a janela com um salto arriscado. Seus dedos escorregaram no granito úmido com o sereno da noite, e precisou agarrar-se às abóbadas logo abaixo para não despencar.

 

“A pressa é inimiga da perfeição…” — Pensou, enquanto passava a cesta que carregava em uma das mãos para sua boca. Respirou fundo e tomou impulso para cima novamente, e agora com ambas as mãos, conseguiu içar-se para dentro do quarto de Frollo.

 

— Mas o que aconteceu aqui…? — Por um segundo, Gothel paralisou. Esperava encontrá-lo dormindo ou rezando, mas ao invés disso o encontrou no chão, enrolado em posição fetal em uma poça de seu próprio sangue.

 

De início pensou que ele havia sido atacado; ele tinha, de fato, um número considerável de inimigos na cidade, e se fosse alguém com habilidades similares às dela, não seria exatamente difícil invadir os aposentos do ministro. Pensou em apenas passar por cima dele e vasculhar o local em busca da pedra filosofal, mas já havia falhado nisso uma vez e obviamente ele não a guardava em um pote etiquetado. Precisava dele. Logo depois, outro pensamento terrível lhe passou pela cabeça: se parasse para ajudá-lo e porventura alguém abrisse a porta, estaria em apuros. Pega em flagrante por um crime que não cometeu.

 

Precisava sair dali. Mas precisava ao menos conter aquele sangramento. Precisava de sua pedra. Mas precisava não ser vista. Um turbilhão de pensamentos catastróficos passou por sua cabeça durante os poucos segundos que ficou ali de pé, observando o homem agonizante no chão à sua frente. 

 

Seus pés se moveram em um impulso. Abriu os armários e retirou todo tecido de linho¹ que pôde encontrar. Ajoelhou-se no chão ao lado do juiz, colocando dois dedos em seu pescoço para checar os sinais vitais. Estava inconsciente, mas seu coração ainda batia, ao menos. Colocou um pedaço de linho sobre o ferimento na cabeça de Frollo e o amarrou para estancar o sangramento. Virou-o de lado na tentativa de levantá-lo e se separou com suas costas destruídas. Em meio ao sangue, o flagelo que havia causado tamanho estrago.

 

— Velho idiota… Como pode fazer isso consigo mesmo? — Mesmo já tendo visto muita carnificina em sua longa existência, Gothel sempre detestou sentir dor e não conseguia conceber o fato de alguém infligir esse nível de ferimento em si mesmo por vontade própria.

 

Ergueu cautelosamente o corpo do ministro e o depositou de bruços em sua cama. Correu para a porta e certificou-se de que estava devidamente trancada, e só então voltou sua atenção para seus próximos passos. Os sulcos nas costas de Frollo eram bastante profundos, e certamente precisariam de sutura; ele também precisaria de algo para aliviar a febre e para evitar que as feridas inflamassem². Felizmente havia trago algumas ervas na cesta, então já era meio caminho andado.

 

Gothel não estava habituada a cuidar de ninguém além dela mesma, então a pressão a fazia sentir como se algo estivesse esmagando seu peito. Bem, havia cuidado de Rapunzel e de Cassandra antes disso, mas os machucados que as duas crianças arrumavam nem de longe se comparavam à isto. Olhou à sua volta, e avistou um jarro de água ainda cheio sobre a cômoda ao lado da cama. Umedeceu alguns pedaços de linho e limpou cuidadosamente os ferimentos, aplicando-lhes unguento. Vasculhou o quarto do ministro em busca de algo que poderia lhe ser útil, e felizmente encontrou linhas de sutura³ e agulhas. Haveria de funcionar.

 

Voltou para a cama e sentou-se ao lado de Frollo. Ponto após ponto, Gothel suturou o melhor que pôde a pele lacerada das costas do juiz. Cobriu as suturas com bandagens⁴ de linho, e colocou o juiz de lado na cama. Hora de ver o ferimento em sua cabeça. Era um corte profundo e perigosamente perto da têmpora.

 

A pele de Frollo ardia em febre; e claro que arderia, com ferimentos tão profundos. Quando terminava de fazer a sutura, Gothel sentiu os dedos do homem se fecharem ao redor de seu pulso, porém sem firmeza alguma. 

 

— Minha… Salvação… — Ele balbuciou, mas as palavras mal eram audíveis; tão logo proferiu as palavras, perdeu a consciência novamente.

 

— Ah, ótimo, está delirando. — Gothel depositou gentilmente a mão do juiz ao lado de seu corpo e se apressou em terminar o serviço. Retirou de sua cesta algumas ervas secas, umedeceu-as com um pouco da água do jarro e triturou-as em seu pequeno pilão. Ergueu a cabeça de Frollo com talvez um pouco menos de cuidado que deveria, e enfiou-lhe o xarope na boca torcendo para que engolisse sem engasgar. Isto deveria ajudar a diminuir a febre.

 

***

 

A luz da alvorada brilhava intensamente quando Frollo abriu os olhos e viu diante de si uma forma luminosa. Sua voz era suave, extremamente agradável aos ouvidos. Um anjo? Uma santa? 

 

— Minha… Salvação… — Tentou indagar-lhe sobre os planos de Deus para si; ele estava salvo? Ou a bruxa o condenara à danação eterna? Havia seu sacrilégio sido perdoado? O que seria de sua alma? Mas não conseguiu. A escuridão o abraçou novamente, afogando-o com o amargor de seus pecados.  

 

"...qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela." — As palavras de Mateus 5:28 ressoaram em sua mente.

 

De repente estava de volta à sua mesa de estudos. Não a do palácio da justiça, mas sim a de sua casa fora dos limites da cidade. À sua frente, seu tutor e sua Bíblia. Ao seu lado, o cinto de seu pai repousava ameaçadoramente sobre a mesa, e sabia mesmo sem olhar que ele o observava logo atrás, esperando que cometesse um erro para puní-lo.

 

— Vamos, Claude. Primeira Coríntios, 6:18. — A voz de seu pai o fez estremecer. Suas mãos até então rechonchudas se fecharam nervosamente ao redor do tecido de sua roupa.

 

— Hã… — Balbuciou, e sua voz ainda rachada falhou.

 

— Primeira Coríntios 6:18! — Seu pai repetiu, agarrando o cinto com firmeza.

 

Mas sua mente estava em branco. Lágrimas quentes rolaram por suas bochechas, pois ele sabia o que viria caso não respondesse corretamente.

 

— F-fugi da imoralidade sexual… — Sentia os olhos do tutor e de seu pai sobre si, esperando que ele terminasse. — Pois… Hum… O homem… O pecado… 

 

— "Qualquer outro pecado que o homem comete é externo ao corpo, mas o que comete imoralidade sexual peca contra o próprio corpo". — Seu tutor completou. 

 

Não era justo, ele sequer havia tido tempo pra responder. Mas isso não fazia diferença para seu pai.

 

— Vergonha! É isso o que você me traz, vergonha! — A voz do homem era distante, mas o estalar do cinto contra sua pele foi ensurdecedor.

 

Frollo acordou em um pulo, que o colocou sentado na cama, ou o mais próximo disso que conseguiu. Espasmos de dor espalharam-se por todo o seu corpo de uma só vez conforme seus curativos se repuxaram. Felizmente estava em seu palácio, intocável por quem quer que fosse…

 

Sobressaltou-se ao sentir uma mão quente tocando seu peito. A bruxa estava ali, empurrando-o em direção à sua cama. O vestido vermelho continuava a demarcar suas curvas, e agora que estava sentada Frollo podia ver com clareza as pernas longas cruzadas sob o tecido.

 

— Na-na-ni-na-não. Pode ir deitando de novo. — Gothel cantarolou, fazendo Frollo se perguntar como uma criatura demoníaca como ela poderia ter uma voz tão angelical. 

 

Mesmo sem o vermelho que os tingia, os lábios da bruxa ainda eram demasiadamente convidativos, e ele sequer tinha forças para lhe resistir. Deixou seu corpo ceder de volta à cama, sentindo as pontadas dos curativos contra suas feridas.

 

— Deite de bruços, ou vai acabar arruinando os pontos.

 

Frollo estava tendo dificuldade em entender o que estava acontecendo. Pontos? Alguém havia lhe dado pontos e feito curativos, mas quem? A bruxa? Ela estava cuidando dele? Haveria ele morrido novamente e agora estava no inferno? Seria ela a sua danação eterna? Eram muitas perguntas, poucas respostas. Mas por hora, fez o que a bruxa disse.

 

Deitado de bruços na cama, com o rosto virado para a mulher, observou quando ela deixou um livro de lado — um de seus livros — e se inclinou sobre ele, colocando uma das mãos em sua testa.

 

— Já está sem febre, isso é um ótimo sinal! — Ela se debruçou sobre si mesma e alcançou uma cesta no chão, cada movimento espalhando no ar o cheiro de cravo e rosas que o juiz nunca conseguiria esquecer. — Vou te dar outra dose do remédio.

 

— Remédio...? — Murmurou. A maldita Jezebel o estava envenenando? Quais eram suas intenções por trás disso? Fazia parte de seu ritual satânico? Estaria ele sendo cobaia de seus feitiços? Queria gritar, esmagar todo aquele aparato de bruxaria sob seus pés, jogá-la em uma cela escura da qual nunca sairia… Mas tudo o que seu corpo o permitiu fazer foi fechar os olhos e engolir o líquido amargo que ela lhe enfiava garganta abaixo.

 

— "Mumumumum" — Ela imitou jocosamente seu tom de voz. — Já falei pra não murmurar, eu não entendo nada. Se não consegue falar, é melhor que fique caladinho, não acha?

 

Gothel apertou uma de suas bochechas. Frollo tentou franzir o cenho, tentou protestar, mas a exaustão não o permitiu. "Maldita bruxa!" — Pensou, enquanto estava perdendo os sentidos novamente.


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Notas finais do capítulo

¹Por ser um tecido com bastante capacidade de absorção, o linho era usado para ataduras, fraldas e "absorventes". Embora no século XV o algodão já tenha se popularizado, resolvi manter o linho na história por questões estéticas.

²O antibiótico foi uma invenção do início do século XX (praticamente ontem!). Até então, era extremamente fácil uma infecção qualquer evoluir pra uma gangrena. Junte isso aos péssimos hábitos de higiene da Idade Média e Moderna, e não é difícil saber por que a expectativa de vida era 45 anos...

³A sutura é uma prática que data desde a Antiguidade, por volta de 2000 A.C. já tínhamos procedimentos que usavam barbantes finos ou tendões de animais para costurar a pele. Mas a anestesia é uma invenção de meados do século XIX, então pode-se imaginar o quão doloroso devia ser precisar levar pontos antes disso...

⁴Frollo é rico. É perfeitamente justificável que ele tenha todo o tipo de tecido em seu guarda-roupa e até um "kit médico".



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