Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 8
Fogo do Inferno


Notas iniciais do capítulo

ATENÇÃO!!! ESTE CAPÍTULO CONTÉM CENAS DE AUTOMUTILAÇÃO!!



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O ministro Frollo não conseguia dormir. As palpitações em seu peito ainda não o haviam abandonado, tampouco o ardor em seu rosto. Os pelos de sua nuca se eriçaram ao lembrar do toque suave da mulher, e um formigamento se espalhou pelo seu corpo como se suas unhas ainda deslizassem suavemente por sua pele. Se revirou em sua cama, visivelmente perturbado pela visão da cigana que ainda estava vívida em sua mente; seu corpo, seus olhos, seu cheiro, a carne quente e macia de seus lábios. Queria sentir novamente aquela sensação embriagante, queria sentir novamente seu corpo, queria mais, muito mais…

 

Se levantou em um pulo e pôs-se a andar de um lado para o outro, como se dessa forma pudesse espantar o fantasma do toque da bruxa. Vestiu-se e tentou sentar-se em seu escritório para estudar, mas a concentração o abandonava a cada palavra que lia; sempre lhe vinha à mente a voz melodiosa da sereia que o encantou, a risada sonora e os lábios vermelhos da súcubo que o inflamou. A sensação de seus seios macios contra seu peito, os quadris avantajados encaixados em sua virilha, os movimentos lascivos da meretriz que o fez profanar a casa do Senhor… Havia sido enviado ali em uma missão de redenção, mas agora estava tão longe de salvar sua alma quanto jamais esteve. Acendeu sua lareira e prostrou os joelhos em oração, pedindo à Deus que o perdoasse por tamanho pecado.

 

Do bolso interno de sua túnica caiu a carta que a cigana o deixou; a dama de copas. A sua marca, vermelha como o próprio satanás, vermelha como a roupa que demarcava tão bem as curvas de seu corpo, atiçando seus instintos mais sombrios. O juiz se apressou em rasgá-la em pedaços tão pequenos o quanto seus dedos conseguiam segurar e atirou-a ao fogo. As chamas devoraram o papel como os olhos verdes da bruxa devoraram sua alma, e as labaredas tremulavam como o tecido vermelho esvoaçante que respondia aos movimentos de seu quadril.

 

Frollo levou os dedos aos lábios, onde a cigana o havia marcado. Era como se nunca o tivesse de fato abandonado… Seus beijos calorosos e intensos que trilharam um caminho por seu queixo e pescoço ainda eram tão vívidos que o faziam estremecer. Seu batom não havia manchado apenas sua pele, mas também sua alma, e ele queria mais. Precisava de mais. Sentia que seu peito poderia explodir caso não tivesse. 

 

Levou uma das mãos à virilha, buscando imitar os movimentos de Gothel para saciar aquela urgência que o consumia… Mas se interrompeu. Não poderia ceder ao pecado novamente dessa forma. Aquilo era demais pra ele, estava à beira da loucura. Perguntava à Deus e à Virgem Maria o que tinha feito para merecer tamanha agonia. Por toda sua vida havia seguido os planos do Senhor e lutado para fazer valer Sua palavra; levava uma vida de trabalho ininterrupto e jejum rigoroso¹, alimentando-se apenas o suficiente para manter seu corpo vivo. Sua virtude até então intacta² era a marca de sua santidade. Não conhecia homem mais livre de pecado que ele próprio, então por que a luxúria o tentava de maneira tão cruel? Por que havia o Senhor feito o homem tão mais fraco que o mal? 

 

Levantou-se do chão e caminhou de volta ao seu quarto, abriu a gaveta e de lá retirou o flagelo que usaria em seu expurgo. Se tratava de uma tira de couro atada à uma empunhadura. Na outra ponta, se subdividia em três tiras menores que terminam em pontas metálicas afiadas embebidas em água benta. Retirou de lá também seu cilício³, que por muito tempo negligenciou, mas agora se fazia necessário; faria o ritual completo. Voltou para a antesala e se ajoelhou diante de sua lareira novamente.

 

Deus meus, ex toto corde paenitet me omnium meorum peccatorum, eaque detestor, quia peccando, non solum poenas a te iuste statutas promeritus sum, sed praesertim quia offendi te… 

 

Enquanto proferia as palavras, palavra por palavra, foi retirando vagarosamente a manto negro que vestia. Tinha pressa, mas sabia que se quisesse alcançar seu objetivo deveria de fazer tudo com calma. Sabia que se fosse rápido demais não sentiria a dor, e a dor era o meio pelo qual chegaria ao perdão. Assim como Cristo, lavaria seus pecados com dor e sangue. Gostaria que houvesse outra maneira, mas a dor da culpa que aqueles pensamentos impuros provocavam-lhe era imensamente maior que qualquer uma que pudesse infligir a si mesmo. A dor física naquele momento chegava até mesmo a lhe parecer um alívio, e essa ideia lhe desagradava. A experiência não poderia ser de forma alguma prazerosa; a dor era a prova de que estava alcançando o perdão, verdadeiramente. 

 

Desnudou suas costas e retirou por completo o manto que caía sobre seu colo, deixando sua figura completamente nua diante do Criador. Flexionou um dos joelhos e colocou o cilício em volta de sua cintura de uma vez, porém não rápido demais. A dor lhe veio intensa e tão profunda que por um momento todos os pensamentos sumiram de sua mente. A única coisa que permanecia era aquela sensação, aquela sensação terrível e ao mesmo tempo tão apaziguadora. Porém, sabia que não deveria ser daquela maneira, então se apressou em desferir logo as chibatadas.

 

Bateu de um lado e depois do outro, mas não rápido o suficiente para que a dor do último golpe aliviasse a dor do posterior. Assim, sua mente permanecia limpa de quaisquer desejos impuros… Pelo menos no começo, a dor era anestesiante. Sua mente parecia simplesmente não conseguir conjecturar quaisquer outros pensamentos. A cada chibatada conseguia sentir o sangue escorrer por entre as feridas abertas, desde o primeiro golpe. A essa altura suas costas já deveriam estar completamente tingidas de vermelho. Era pungente o cheiro forte de seu próprio sangue, que agora impregnava completamente o ambiente. 

 

Então, os pensamentos retornaram com ainda mais força, como uma tempestade que vinha depois de uma calmaria. Um golpe. A imagem da bruxa veio novamente de dentro dos confins de sua mente pecadora. Outro golpe. A imagem estava próxima de si, tão próxima que era possível sentir o calor de seus lábios avermelhados, a cor daquele sentimento impuro. Mais outro golpe. Ele e a Jezebel que o seduziu estavam envolvidos nas mais tórridas cenas de amor carnal, numa imagem mais nítida que muitas de suas próprias memórias. Deferia mais golpes em si na tentativa vã de fazer com que as imagens sumissem. A única coisa que conseguia era fazer com que elas se alternassem, ainda permanecendo com o mesmo teor sexual e depravado. 

O desespero tomou conta de si ao olhar para sua virilha e ver que aquelas visões o estavam excitando, e o mesmo desespero fez com que aumentasse a intensidade e a velocidade das chibatadas de uma forma que a dor se tornou tão intensa a ponto de quase não conseguir mais suportar. Frollo fechou os olhos. Em um momento havia apenas a dor, nítida, e então ela parou, desapareceu de uma forma tão repentina quanto um estalar de dedos. Ela cessou porém no meio do movimento de uma das chibatadas, sua concentração havia sido prejudicada pela rapidez dos movimentos, pelos pensamentos profanos e pela intensidade da dor. 

 

O último golpe acabou por atingir sua face, ferindo seu crânio e marcando-lhe profundamente. O sangue lhe escorreu pelo rosto e o vermelho lhe encobriu visão, enchendo sua boca com o sabor do seu próprio sangue. Frollo estava no chão e suas forças o haviam abandonado, a dor se espalhando de forma homogênea por todo o seu corpo. Com esforço virou-se, tentando observar a janela do outro lado do quarto, para ver se o sol já estava despontando. A alvorada ainda não havia chegado, mas conseguiu ver um vulto negro se erguer da janela e adentrar seus aposentos. Certamente o demônio havia vindo pessoalmente buscá-lo.

 

— Este é meu fim… — Murmurou, abaixando os olhos.

 

Conseguiu não apenas avistar a sombra que entrava por sua janela, mas também ver sua imagem refletida na parte metálica de uma cômoda, e aquela visão lhe deu asco. A única coisa que viu foi o reflexo de uma coisa impura, suja e pecadora. 

 

— Não há salvação para mim… — Foram as últimas palavras que saíram de seus lábios antes de perder completamente os sentidos.


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Notas finais do capítulo

¹ Era muito comum na vida monástica até pouco antes das Reformas do século XVI os "jejuns intermitentes", onde se passavam vários dias sem comer, testando os limites da inanição. Outra modalidade de jejum para o clero era, durante a quaresma, se alimentar apenas de pão e água duas vezes por dia ou menos.

² "Virtude" aqui se refere à virgindade. Apesar de juízes eclesiásticos não serem obrigados a fazer votos de castidade, manter-se virgem era uma prática muito bem vista, extremamente valorizada e encorajada na época por várias seitas e denominações dentro da Igreja.

³ O cilício se tratava de uma espécie de cinto de ferro com pequenos ganchos, que era amarrado ao corpo para mortificar a carne antes de uma sessão de auto flagelo. Alguns penitentes sequer retiravam seu cilício depois, como era o caso de Carlos Magno, que foi sepultado junto com o cilício que usava regularmente.



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