Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 6
Gothel Sabe Mais




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Encontrar o dito pátio dos milagres não exigiu tanto esforço quanto Gothel presumiu que exigiria. Tudo o que precisou fazer foi se aproximar do primeiro grupo de ciganos que encontrou e contar histórias. Algumas que havia escutado em suas viagens, outras que havia ela mesma inventado. Uma breve leitura de mãos, um jogo de cartas… E rapidamente ganhou não só a confiança, mas também o respeito deles.

 

Por mais que tivessem sido lançados à margem da sociedade e condenados à criminalidade, eram em geral ingênuos e crédulos, rapidamente se prontificaram a levá-la ao seu pátio… O que Gothel não esperava era ser vendada e ter as mãos amarradas para tal. 

 

— Não se preocupe, é pra sua segurança. — Disse um homem, e foi o que a impediu de reagir. Não eram tão ingênuos assim, afinal.


Se deixou ser levada pelas ruelas de Paris. Como estava habituada a não depender apenas da visão, usou seus outros sentidos para se situar. Pelo tato notou que o vento já  não chegava mais diretamente até  sua pele; pela audição notou quando os passos começaram a ecoar contra paredes próximas, e pelo olfato sentiu o odor pungente dos esgotos da cidade. Haviam entrado no subsolo. Contar e memorizar os passos dados e esquinas viradas era uma das técnicas que usava desde menina para não se perder em florestas durante a noite, e quase sempre dava certo, então resolveu aplicar ali o mesmo método.

Após alguns minutos de caminhada, o barulho de pedras se movendo provocou um leve tremor sob seus pés. Provavelmente uma passagem secreta. A procissão  dos proscritos ainda tomou mais um tempo até  finalmente  anunciarem a chegada. Tiraram sua venda e desamarraram suas mãos, deixando-a de pé em frente a um conjunto de pessoas que a olhavam com desconfiança.

— Então  você  é  a recém-chegada… — Um cigano moreno com cavanhaque ralo e dentes falhados se aproximou, circulando-a para inspecioná-la com cautela. — Como se chama, forasteira?


— Pode me chamar de Madame Gothel.


— "Madame", hum? — O cigano pôs os braços para trás e parou diante da bruxa. — E de onde a madame é?

Gothel sabia que aquilo possivelmente era uma pegadinha. Não não sabia por onde aquele cigano já havia andado, nem quem ele conhecia, então não podia arriscar responder qualquer mentira e ser desmascarada. Também não arriscaria ser sincera e acabar tendo que responder uma série de perguntas a respeito de um local do qual mal se lembrava, então decidiu ser criativa.

— Ora, meu bem… — Sorriu, abrindo os braços  com seus trejeitos teatrais — De todos os lugares, e de lugar nenhum. Não se tem pátria quando o mundo inteiro é seu. Do oriente distante às praias do extremo sul, não há terra que meus pés já não tenham pisado.


— Você já esteve mesmo no oriente? — Uma moça de cabelos louro-acizentados dá um passo à frente, com curiosidade no olhar.


— E como é o extremo sul? — Um homem careca levantou a cabeça do pequeno pedaço de madeira que entalhava.


Em poucos segundos, a atenção de todos estava ainda mais voltada à Gothel; antes em julgamento, agora em curiosidade. O único que não parecia entretido era o cigano de cavanhaque, que ainda a inspecionava com certa desconfiança.

— Se viajou tanto, com certeza tem boas histórias para contar, não? Vamos lá, compartilhe conosco um pouco de suas aventuras! — Um dos ciganos que a havia guiado até ali lhe disse, cruzando os braços.

"Esses dois estão desconfiados… Devem ser os líderes, e esse na minha frente certamente é Clopin, o dito 'rei' cigano." — Gothel podia dizer pela postura dos outros em relação a eles. Ao "rei" era dado bastante espaço, e ninguém se interpunha em seu campo de visão. O segundo em comando só falou depois que o líder acabou de falar, uma atitude que demonstrava respeito. Por sua experiência, Gothel sabia que diferente de reis de verdade lideranças entre a ralé dependiam do apoio de quem os seguia e raramente tinham de fato a palavra final em algo. Portanto, ela não precisava cair nas graças deles, mas sim dos que estavam à sua volta. Se os outros gostassem dela, matá-la iria fazê-los parecer injustos e cruéis, consequentemente enfraquecendo sua influência sobre seus seguidores. Era um fenômeno que ela já viu acontecer várias e várias vezes. 

 

— Oh, mas é claro! Eu vim das terras distantes da Valáquia, guiada pelo Deus Arco-Íris¹. — Alguns se entreolharam confusos, outros se inclinaram para a frente com interesse. Os líderes não pareciam entretidos. — Comecei minha jornada quando era apenas uma garotinha… Para onde quer que fosse, não havia paz! Minha pobre mãe, que os anjos a tenham, não teve sorte na vida. Fugiu das tochas, mas foi pega pela peste!

 

A dramaturgia era um dom que corria em suas veias desde muito nova, e ela não hesitava em pôr em prática. Afastou-se do rei cigano, perambulando entre o povo que agora fazia um círculo à sua volta, comovido pelo trágico fim de sua mãe. Era bom que houvesse essa comoção, mas tentaria não deixar o clima tão pesado; ser alvo de pena daqueles infelizes definitivamente não era seu objetivo… O drama teria que se converter em clímax e culminar no triunfo da protagonista — ela mesma.

 

— Desesperada e sozinha, eu chorei e clamei aos céus por ajuda. Clamava por uma casa que fosse minha, precisava de um caminho, de uma luz! E então, quando olhei para cima, vi que um lindo arco-íris se abria sobre mim… Suas cores brilhavam cada vez mais, se alternando com tamanha rapidez, tal qual cordas de um instrumento musical! Uma melodia começou, bem baixinho, e meu coração antes tão atribulado se encheu de uma paz inesperada. — Voltou para o meio da roda, abrindo os braços amplamente. Colocando um toque de imponência na voz, continuou. — E então ouvi sua voz, clara e forte… Ele me dizia: “Cigana, a sina de seu povo é se espalhar pelo mundo todo, povoar as terras mais distantes, representando-me em sua beleza. O céu é seu teto. A terra seu palco e seu lar. Eu ofuscarei a visão dos seus perseguidores para que possa partir em segurança, para uma terra onde seu povo carrega consigo minhas cores.”

 

Girou nos calcanhares, apontando para uma moça de vestido verde em sua pequena plateia.

 

— Com o verde levam a esperança e a fartura. 

 

Apontou para uma idosa que possuía um lenço amarelo cobrindo-lhe os cabelos.

 

— Com o amarelo, a realeza e a riqueza.

 

Pegou nas mãos de um senhor com túnica violeta.

 

— Com o violeta levam a transmutação e perseverança.

 

Rodopiou novamente, bagunçando a franja de uma criança de vestido cor-de-rosa.

 

— Com o rosa, o amor, a beleza e a música.

 

Virou-se para Clopin, ajeitando-lhe o chapéu azul na cabeça.

 

— Com o azul levam a serenidade e a intuição. 

 

Estendeu uma das mãos em direção ao homem de túnica laranja que a trouxera.

 

— Com o laranja, a energia, a vitalidade e a emotividade.

 

Por último, voltou ao centro da roda, levando uma de suas mãos ao peito e inclinando-se em uma mesura respeitosa à todos que estavam ali.

— E com o vermelho, levam a vida, o entusiasmo e a paixão. 

 

Palmas e assobios foram ouvidos da plateia, que estava extasiada por suas belas palavras. Até mesmo Clopin batia palmas, embora com bem menos entusiasmo que o resto, mas isso pouco importava; o objetivo havia sido concluído, a ralé a adorava. Em pouco tempo estava rodeada de pessoas que a cobriam de elogios, lhe ofereciam presentes e dividiam com ela a pouca comida que possuíam, tudo sob o olhar sombrio de Clopin.

 

Já passava de meia noite quando o rei cigano se aproximou, convenientemente quando a maioria já havia se recolhido para dormir e Gothel se encontrava sozinha, arrumando o próprio conjunto de tecidos que lhe serviriam como cama naquela noite.

 

— Você tem uma história impressionante, muito impressionante. Mas… — Clopin se interrompeu. Apesar de não estar impressionado de fato, ele parecia ser do tipo que faria de tudo pelo seu povo. Até mesmo aceitar a presença de uma estranha em seu pátio dos milagres. — O Deus do Arco-Íris mentiu pra você. 

 

— Como assim? 

 

— Aqui não há fartura, nem esperança, nem riqueza, nem serenidade, nem nada daquelas coisas. Aqui só há uma cidade fria e dura, que nos persegue e nos massacra, seja pela espada ou pela fome. 

 

Gothel voltou os olhos para o cigano. Esperava ver em seu rosto uma expressão tão sombria quanto aquela que ele lhe lançou algumas horas antes, durante sua pequena apresentação; mas ao invés disso ele carregava um olhar triste e desesperançoso. Se havia um momento perfeito para se estabelecer como “digna de confiança”, o momento era aquele. A bruxa se levantou, ajeitou o vestido e se aproximou de Clopin.

 

— Desculpe, mas não entendo o que quer dizer. Não há fartura? Então como fui tão bem alimentada? Não há riqueza? Então de onde vieram tantos presentes? O Deus do Arco-Íris jamais citou bens materiais… — Passou um braço ao redor dos ombros do homem e apontou para as pessoas que dormiam logo abaixo. — Olhe ao seu redor, e diga se isto não é serenidade? E a esperança, meu caro… — Abrigou o rosto do outro entre as mãos. — Para mim está bem claro quem a mantém viva.

 

Os olhos de Clopin se arregalaram em surpresa. Gothel sorriu, e se sentou novamente em sua cama improvisada. O cigano baixou o olhar por alguns segundos, depois voltou a olhar para a bruxa.

 

— Você… Vai participar da Festa dos Tolos? — Em uma fração de segundo, seu olhar havia mudado de melancólico para eufórico, como o de uma criança que acaba de receber um presente de aniversário. 

 

Gothel se perguntou se a brusca mudança de atitude era uma tentativa de esconder seu momento de guarda baixa ou de estudá-la. 

 

— Festa dos Tolos? — Por via das dúvidas, achou melhor se fazer de desentendida.

 

Clopin falou sobre a folia ininterruptamente durante mais de meia hora, e Gothel já estava começando a ter dificuldades em fingir interesse quando ele finalmente parou, esperando por uma resposta. É claro que ela participaria, mas suas motivações para tal seriam bem diferentes das que Clopin esperava.

 

***

 

Quando a festa começou, o Sol já estava a pino. Mas não por muito tempo; à distância, Gothel observou as pesadas nuvens de chuva que o vento trazia consigo. Teria que ser rápida. Seus olhos correram a multidão em busca de seu alvo, e para sua sorte não foi difícil encontrá-lo. Rodeado de guardas e servos, um homem portava orgulhosamente seu uniforme eclesiástico enquanto todos os outros usavam trajes simples ou fantasias ridículas. Só poderia ser o juiz Claude Frollo.

 

Sorriu ao ser anunciada por Clopin, e marchou para o palco. Ali, sob os olhares de todos, foi atingida por uma sensação nostálgica da época em que atuava com sua grande trupe de teatro, viajando o mundo colecionando aplausos e amores… Eram épocas simples, épocas felizes, antes de sua vida ruir sob seus pés e tragá-la para um abismo do qual jamais pôde sair. Mas não estava ali para ter reminiscências. Estava ali pela pedra filosofal.

 

Seus olhos encontraram os do ministro, que olhava fixamente para ela. Pela sua postura, podia dizer que ele estava ali a contragosto. O nariz empinado e olhar severo tentavam dar a entender que desprezava toda aquela gente, mas os ombros encolhidos e lábios repuxados demonstravam que na verdade ele tinha medo. De sofrer um atentado? Da multidão? Da própria festa? Gothel não saberia dizer. 

— Vossa excelência, é uma honra. — Fez uma longa mesura antes de iniciar sua apresentação.

 

Contou a história de Doja, a fada cigana de longos cabelos negros que tentou guiar o povo cigano para uma terra abundante onde puderam chamar de lar. Segurando em seus cabelos, os ciganos voaram pelos céus em direção à sua terra prometida, mas o peso era demasiado para a bondosa fada. Aos poucos, os ciganos caíram e espalharam-se por todo o mundo, condenados a vagarem até se reunírem novamente para que pudessem um dia reencontrar Doja.

 

O público estava emocionado; alguns tinham lágrimas nos olhos, outros lhe jogavam flores e galanteios, mas o juiz não parecia entretido. Mesmo depois de ter subido em seu próprio palanquim, o cretino ousou bocejar durante sua apresentação arrebatadora! Quis esfaqueá-lo ali mesmo, mas isso colocaria tudo a perder. Não podia deixar aquele velho sem a mínima sensibilidade artística tirá-la do sério. Deveria levar o plano adiante, e assim o fez.

 

Se histórias belíssimamente encenadas e canções cantadas em sua magnífica voz não estavam impressionando um velhote da igreja, certamente mágica iria. Ciganos eram famosos por serem cartomantes e videntes, não seria difícil convencê-los de que ela sabia ler mãos.

— Hoje, em homenagem aos Tolos, vou ler a fortuna do nosso prezado ministro da justiça! O que será que o destino tem reservado para ele?

Sob risos e palavras de encorajamento da plateia, a mulher se aproximou de Frollo. 

— Vossa excelência, me permite? — Gothel se inclinou na direção do ministro, e pôde notar que ele se encolheu ainda mais em seu assento. Quanto mais se aproximava, mais o homem se encolhia, e teve que se controlar muito para não soltar um riso de escárnio. Chegava a ser cômico, o homem que todos viam como um predador agindo como uma presa encurralada.

 

Tomou a mão de Frollo entre as suas, e o puxou em sua direção. Pela tensão nos ombros dele, pensou que seria mais difícil arrancá-lo de seu assento, então acabou usando mais força do que o necessário. O que significava que o juiz era mais leve do que aparentava… Ou seja, por baixo de toda aquela roupa ele devia ser bem magricela.

 

— Hum… — Murmurou, enquanto acariciava a mão ossuda do ministro com cuidado. Sorriu ao notar que além de trêmulo, ele suava frio nas palmas. — Vejo uma grande decepção amorosa em seu passado, algo que partiu seu coração. Mas… Vejo que no futuro o amor irá sorrir novamente para o senhor.

 

Fingir ser vidente era muito mais fácil quando se estava a par dos segredos sujos de seu alvo. Frollo a encarava fixamente, com certeza havia captado sua insinuação, mas Gothel não sabia dizer se ele estava excitado ou em pânico. Talvez os dois.

 

— Quanta baboseira! — Ele havia puxado a mão bruscamente, e virou-se de lado como se tentasse proteger seu corpo do toque da bruxa. 

 

“Que homenzinho patético… Bem, acabou a brincadeira de criança. Hora de ir direto ao ponto.” — Gothel derrubou-o de volta a seu assento e decidiu que era hora de um pouco de mágica, e ela conhecia uma série de truques. Se lembrava bem das vezes em que quase foi presa por retirar moedas dos ouvidos de crianças… Desta vez, tiraria cartas do chapéu de um juiz.

 

O velho tolo estava perplexo, aterrorizado por um simples truque que mais tinha a ver com destreza do que com magia. Como gran finale, segurou-o pelo queixo e selou seus lábios com um beijo breve, mas intenso. Retirou o excesso de batom dos lábios de Frollo, mas não tudo; sempre gostou de deixar sua marca por onde quer que passasse.

 

Finalizou seu número bem a tempo da tempestade chegar e esvaziar as ruas de Paris. Era sua hora de desaparecer antes que fosse presa². Com dois passos rápidos, saiu por trás da liteira de Frollo e se ocultou caminhando sob os toldos das barracas que eram levantadas às pressas para não serem varridas pela chuva. Tão logo saiu de vista, tomou seu rumo para Notre Dame, onde estaria fora do alcance da guarda. Se o ministro a quisesse, teria que vir buscá-la pessoalmente… O próximo passo de seu plano em breve entraria em ação.


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Notas finais do capítulo

¹ Esse é um dos contos da tradição oral cigana do Brasil, adaptado por Augusto Pessoa em sua coletânea. Por razões narrativas e em respeito à cultura cigana, decidi por não colocá-lo na íntegra nessa história. Ao invés disso, optei por apresentar uma "versão Gothel" do conto. A versão original pode ser encontrada facilmente na internet, pois se trata de uma história cigana relativamente famosa.

² No século XV era extremamente fácil para uma mulher ser presa por bruxaria, por literalmente qualquer merda. Tem gatos? Bruxa. Faz bolos muito gostosos? Bruxa. Discutiu com a vizinha e o filho dela amanheceu doente no dia seguinte? Bruxa. Cantava muito bem? Bruxa. Conhecia plantas que aliviavam cólica? Bruxa. Era solteira, independente, vivia a própria vida sem incomodar ninguém? Bruxa, bruxa, bruxa. No caso de Gothel, um truque de mágica que hoje é tido como bobo naquela época seria considerado um caso flagrante e irrefutável de bruxaria.



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