Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 5
A Festa Dos Tolos


Notas iniciais do capítulo

Eu raramente gosto do que escrevo, mas esse capítulo foi particularmente divertido de se escrever, espero conseguir fazer mais capítulos assim.



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Dentre todas as coisas deste mundo que Frollo sentiu falta, a Festa dos Tolos¹ definitivamente não era uma delas. O ruído da multidão ensandecida a encher as ruas de Paris com seu cheiro de bebida alcóolica, vômito e urina enquanto faziam suas demonstrações públicas de depravação e imoralidade o deixavam nauseado. Ele, como figura pública, era obrigado a participar, assim como teoricamente o rei também o era… Mas para vossa majestade era mais proveitoso observar de seu castelo, pelo visto, e condenar seus funcionários a serem tragados pelo pandemônio. Se pudesse, Frollo aprisionaria cada bufão que chegasse a menos que dois metros de distância da liteira aberta que lhe servia de “camarote”, mas infelizmente não era possível. Como se não bastasse a frustração por ainda não ter encontrado o intruso de seu palácio, teria que se conformar com a algazarra.

 

— Atenção, atenção! — Empoleirado em um poste, o cigano com trajes de bobo da corte berrava, entre as mãos em concha, fazendo sua voz se sobressair ao tumulto. — Este ano nossa folia tem mais emoção! Por terras distantes ela viajou, trazendo histórias que nosso povo contou!

 

Sua máscara havia mudado de cor, mas Frollo reconheceria aquela voz afetada e rimas ridículas em qualquer lugar. Clopin de Trouillefou. O palhaço que se auto intitulava rei dos ciganos.

 

— Das terras distantes de Vlad, O Empalador! Ela traz canções de muito amor! — Continuou, deslizando do poste e saltando para um palanque de madeira. — Entra a cigana cuja voz é puro meeeeeel! Abram alas para...  Madaaaaaaame Gotheeeeeel!

 

Uma mulher subiu ao palanque, acenando para a plateia que se amontoava ao seu redor. Seus olhos verdes se voltaram diretamente para ele, e foi como se ela pudesse olhar no fundo de sua alma. 

 

— Vossa excelência, é uma honra. — A dita "Madame Gothel" sorriu e o cumprimentou, se curvando  respeitosamente. 

 

Frollo cruzou os braços e franziu o cenho, deixando claro que não estava nem um pouco ansioso para presenciar qualquer espetáculo pagão que houvesse ali.

 

— Hoje trago a vocês a história de Doja, a fada cigana². — Anunciou a mulher, e iniciou uma canção.

 

O olhar de desprezo abandonou o rosto do ministro quando Gothel abriu a boca. Tal qual uma sereia, não parecia haver nota que sua voz não alcançasse. Ela cantava, dançava e representava ela mesma todos os papéis sem desafinar, e não havia na platéia um único queixo que não estivesse caído, o de Frollo incluso.

 

Ao notar o olhar de Gothel sobre si outra vez, o juiz disfarçou com um bocejo. Quando virou-se para olhar a apresentação novamente, notou que ela havia subido em sua liteira, e encenava próximo ao seu assento.

 

"Como ela chegou aqui tão rápido?" — Frollo observou atônito enquanto a cigana encerrava sua apresentação ali mesmo.

 

O juiz já estava tendo dificuldades em tirar os olhos da mulher, agora com ela tão próxima era quase impossível. Seu vestido era vermelho como o pecado, e delineava sua silhueta curvilínea enquanto o cinto dourado acentua a curva de seu quadril avantajado, contrastando com sua cintura fina. Os cabelos negros caíam em cachos volumosos sobre suas costas, exalando um perfume de cravo e e rosas vermelhas.

 

Estava hipnotizado pelo movimento de seu quadril; precisou fechar os olhos para conter com oração os pensamentos pecaminosos que insistiam em se formar na sua mente. Cobriu parcialmente o rosto com uma das mãos, apoiando-se no braço de sua cadeira, esperando que o esforço para parecer entediado estivesse dando certo. Mas não estava.

 

— Vossa excelência, me permite? — Gothel agora se inclinava em sua direção, muito mais perto, uma mão estendida a ele. O cheiro de cravo e rosas que vinha de seu cabelo perfumava toda a liteira, tirando atenção do juiz de todo o resto.

 

“Não olhe pra baixo, não olhe pra baixo…” — Frollo repetia para si mesmo, a fim de não cair na tentação de encarar os seios macios que pendiam próximos ao seu rosto. Fixou seu olhar nos olhos verdes que brilhavam como os de um gato. Não fazia ideia do que ela estaria falando, mas não correria o risco de ser exposto ao ridículo.

 

Limpou a garganta, mas sequer teve tempo de vociferar uma recusa para seja lá o que ela estivesse sugerindo; a mulher o agarrou pelo braço e o pôs de pé em um único e firme puxão. Ela virou uma das mãos do juiz para cima, e com delicadeza se pôs a deslizar os dedos por sua palma. A plateia observava atenta e em silêncio a leitura da fortuna do ministro, provavelmente esperando que morresse em breve ou fosse amaldiçoado.

 

— Hum… — A cigana murmurou, enquanto acariciava a mão do ministro com cuidado. — Vejo uma grande decepção amorosa em seu passado, algo que partiu seu coração. Mas… — Ela sorriu e levantou os olhos para encarar os dele — Vejo que no futuro o amor irá sorrir novamente para o senhor.

 

Frollo mal respirava. Estava imóvel, atônito, encarando Gothel e sentindo a pele macia das mãos dela sobre a sua. Permaneceu assim por alguns segundos antes de puxar bruscamente sua mão, afastando-a do toque da bruxa. 

 

— Quanta baboseira! — Virou-se de lado, quebrando o contato visual.

 

— Talvez o nobre ministro se interesse mais por cartas. — Ela bateu com a lateral do quadril contra o seu, jogando-o de volta em seu assento.

 

— Não estou interessado em-

 

Mal teve tempo de se recompor, ou mesmo de terminar a frase. Ela havia tirado um baralho³ de uma das mangas e o estendia perto de seu rosto. 

 

— Retire uma carta, mostre à plateia e devolva. Mas por favor, não me digam qual é! — Terminou a frase cantarolando.

 

A contragosto, o ministro puxou uma carta e a mostrou à multidão. A dama de copas. Enfiou a carta novamente no baralho, e observou enquanto a cigana o embaralhou habilidosamente. Após alguns instantes, ela puxou uma carta do topo do monte: um ás de espadas. Uma vaia soou da plateia, alertando Gothel de seu erro. Ao invés de parecer frustrada, a bruxa soltou uma risada de contentamento.

 

— Oh, que coisa! Parece que preciso de ajuda para encontrar a carta do ministro Frollo! —  Jopgou o baralho em direção ao público, espalhando todas as cartas. — Vamos, quem encontrá-la ganhará um beijo!

 

A multidão, em especial os homens, se amontoavam em busca da dama de copas. Após alguns minutos, o alvoroço foi interrompido pelas palmas de Madame Gothel, que voltava a cantarolar.

 

— Vossa excelência, que coisa! Devolva a carta, por gentileza.

 

— O que? Eu não sei do que está falan-

 

Com um movimento rápido, ela arrancou o chapéu de sua cabeça, o virou e enfiou sua mão na parte interna. De lá retirou uma carta, a qual triunfantemente mostrou ao público: a dama de copas. A multidão foi à loucura; ovacionaram a cigana com palmas, assovios e suspiros surpresos.

 

— A bruxa… — Os olhos de Frollo quase saltavam de suas órbitas e ele se retesou em sua cadeira, em um misto de horror e fascínio. Havia, por fim, encontrado o alvo de sua missão.

 

— Como prometido, senhor ministro… — Gothel segurou o queixo de Frollo com a mão livre e o puxou em direção ao seu rosto. 

 

Nos breves instantes que se sucederam, o mundo de Frollo pareceu girar mais devagar. Estava ali sentado, sendo puxado em direção à bruxa e sequer tinha forças para resistir, como se a garra do próprio diabo o arrastasse diretamente para o inferno. Mesmo sem perceber, havia prendido a respiração novamente e sequer piscava os olhos, como se estivesse em transe completo pela mulher. Uma gota de suor escorreu por sua testa conforme o rosto de Gothel se aproximava. Se perguntou se ela desviaria o rosto no último instante, ou se afastaria caso ele fechasse os olhos, apenas para fazer-lhe troça. Engoliu em seco.

 

Então, aconteceu. A mulher cobriu seus lábios com os dela, fazendo com que Frollo apertasse os braços de sua cadeira com tanta força que os nós de seus dedos ficaram brancos. O coração do juiz palpitou aceleradamente dentro do peito, e um ardor incontrolável subiu à sua face. Assim que Gothel se afastou, seu primeiro instinto foi o de cobrir o rubor do rosto com as mãos, mas se interrompeu ao perceber o quão ridículo pareceria se o fizesse. Com um sorriso malicioso, ela esfregou lentamente um polegar sobre o lábio inferior do juiz, retirando uma mancha deixada por seu batom carmesim.

 

Um trovão ressoou com estrondo na cidade, sobressaltando tanto o ministro quanto a plateia, que começou a se dispersar conforme a chuva caía. Frollo estava tão absorto na apresentação da bruxa que até o momento não havia reparado nas pesadas nuvens cinzentas que se formaram sobre a cidade e há muito tempo se preparavam para lavar os pecados da plebe infame logo abaixo. 

 

— M-meu chapéu… — Foi a primeira coisa que conseguiu balbuciar. Uma coisa estúpida, patética, tal como estava se sentindo no momento. Mas ao olhar à sua volta, não havia mais sinal de Gothel.

 

— O que!? Onde ela foi!? — Esbravejou, mas os guardas apenas deram de ombros. — Idiotas, prendam aquela bruxa!

 

— Mas… Sob que acusação, senhor?

 

Uma veia saltou em sua testa e seus lábios se contorceram em uma careta furiosa. Respirou fundo e fechou os olhos, se perguntando o que havia feito para merecer estar tão completamente cercado por imbecis.

 

— Sob a acusação… De ser… UMA BRUXA!! Andem, rápido! ENCONTREM-NA! — Bradou com um dedo em riste, fazendo com que os guardas se pusessem em movimento desordenadamente. 

 

Em seus pés, um pedaço de papel chamou sua atenção; era a maldita dama de copas. Pegou a carta e a girou entre os dedos, observando suas cores. Era vermelha como o vestido da bruxa que o enfeitiçou. Vermelha como o batom que manchava sua pele, como o pecado que se alastrava sob suas túnicas e lhe chegava ao rosto como as chamas brutais de um incêndio. Dois pajens se aproximaram com um guarda-chuva⁴, mas Frollo os enxotou com um movimento brusco. Guardou a carta sob a manga da túnica e se pôs a andar em direção ao Palácio da Justiça.


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Notas finais do capítulo

(¹)A Festa dos Tolos, ou Festa dos Loucos, era uma celebração tradicionalíssima na França até meados do século XX, e é a avó do nosso Carnaval moderno. Acontecia inclusive na mesma época, logo antes da Quaresma (o que lá na Europa correspondia ao início da primavera, apesar de não necessariamente ser em seu solstício). Era uma forma que a Igreja encontrou de incorporar a cultura pagã à sua própria doutrina e fazer com que a população se sentisse menos incomodada com seu regime rigoroso; afinal, eles tinham a Festa dos Tolos, onde tudo era possível sem que houvesse retaliações. Era a hora de "pecar à vontade", antes que o jejum da Páscoa começasse.

(²)Doja, a fada cigana é uma lenda da tradição oral do povo rom. Foi coletado e transformado em vídeo por Magda Szécsi, uma roma da Hungria e traduzida para o português neste blog: http://ciganagabriela.blogspot.com/2017/05/conto-doja-fada-cigana.html?m=1

(³)O baralho como conhecemos hoje foi inventado na França apenas no século XVI. Antes disso já haviam cartas de tarot, mas eram usados exclusivamente para divinação. Como Gothel faleceu só no século XVIII, tomei a liberdade de dar a ela um desses pertences "modernos", e na fic Frollo só sabe do que se trata pra facilitar a narrativa, mesmo.

(4)O guarda-chuva é uma invenção que acompanha a humanidade há 6000 anos. No século XV, os guarda-chuvas dos nobres se assemelhavam a grandes toldos sustentados por dois pés de madeira. Obviamente, precisava ser carregado por mais de uma pessoa.



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