Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 13
Ser Mau Nunca Pareceu Tão Bom


Notas iniciais do capítulo

Esse foi o segundo capítulo mais divertido que escrevi na vida, eu devo ter problemas sérios.



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Frollo sentia olhos sobre si, e não eram os olhos de Notre Dame. Eram olhos muito mais cruéis e que o julgavam muito mais impiedosamente: os olhos da nobreza. Obrigou-se a manter sua cabeça erguida; não lhes devia nada, e apenas ao Rei e a Deus respondia.

Olhou de relance para Esther e notou que ela também mantinha a cabeça erguida, caminhando ao seu lado pela nave da igreja com classe e confiança. Sentaram-se entre as primeiras fileiras¹, onde era seu lugar de direito desde que conquistou seu cargo. Durante a missa sentiu o rosto de Esther se recostando em seu ombro enquanto as mãos macias acariciavam as suas, sem receios ou vergonha, e aquilo de certa forma o inspirava.

Estava lutando para conter o sorriso² que tentava se formar nos cantos de seus lábios quando seus olhos encontraram os do arquidiácono, facilitando o processo. Revirou os olhos quando viu que ele erguia discretamente um polegar em sinal de aprovação³.

Ao fim da missa, notou que alguns nobres se enfileiravam para as confissões semanais, formando um pequeno corredor entre eles e os que deixavam a igreja pelo Portal do Julgamento⁴, por onde teria que passar para acessar a saída principal. Como que guiada por Deus, as mãos de Esther o puxam para fora do caminho, circulando a nave e seu mar de gente, fazendo seu caminho agilmente em meio à plebe pelo Portal da Virgem⁵ até finalmente chegarem à carruagem. Definitivamente não haviam milagrosamente evitado os cochichos da nobreza, mas ao menos haviam evitado ouví-los, o que para o juiz já representava uma grande vitória.

— Desculpe pela pressa, eu queria aproveitar o mercado antes que fechasse. — Ela lhe disse enquanto ajeitava seus cachos no reflexo de um pequeno espelho⁶.

O mercado. Ele quase havia se esquecido. Pensou em inventar uma desculpa para não irem, mas além de ter dado sua palavra, ela havia gasto seus suprimentos por causa dele, afinal, cuidando de seus ferimentos. Ele a devia.

— Que seja. — Apertou os cantos dos olhos com o polegar e o indicador, fazendo sinal para que o cocheiro avançasse com a mão livre. — Mas sem delongas. Não quero passar meu dia de domingo em meio a ralé.

— Não se preocupe, vai ser breve, você vai ver.

Assim esperava, mas algo o dizia que seria tudo menos “breve”, e tão logo chegaram ao mercado sua intuição se provou certa. Gothel passeava entre as barracas com toda a calma do mundo, escolhendo a dedo ervas, flores e outros ingredientes perfumados.

A multidão se aglomerava cada vez mais, e o trânsito de carroças e carruagens fazia com que cada trotar de cavalos doesse como marteladas em seu crânio. Os gritos dos vendedores tentavam se sobrepor uns aos outros em meio ao calor do Sol que já estava a pino, absolutamente tudo lhe parecia perturbador e repulsivo.

— Você tem uma definição muito peculiar de "breve", Esther. — Soltou a frase entre os dentes, sem o mínimo esforço para esconder sua frustração.

— Ora vamos, Claude… Seja um pouquinho paciente, sim? Estou quase acabando. — Ela abanou uma mão em sua direção, sem tirar os olhos das ervas que selecionava.

Revirou os olhos e bufou, afastando-se da mulher em busca de um lugar menos lotado, mas de onde ainda fosse possível enxergá-la. Foi quando uma voz conhecida se sobressaiu aos gritos dos outros vendedores, anunciando suas próprias mercadorias; acompanhada por balidos de cabra, Esmeralda gritava a plenos pulmões, a anunciar suas verduras frescas a preços baixos. Em seu colo, uma criança batia animadamente em um pandeiro, enquanto uma cabra circulava no chão ao seu redor. Na barraca atrás da cigana, Phoebus de Châteaupers descarregava uma carroça de verduras.

Lá estavam eles, os culpados por sua desgraça, vivendo vidinhas simplórias e miseráveis como fazendeiros, agora com um rebento a tiracolo. Frollo sentiu seu interior queimar, dessa vez não de paixão, mas de ira.

— Cigana imunda… — Cerrou os punhos. — Eu deveria mandar prendê-la imediatamente!

Mãos quentes tocaram seu peito e abdômen, abraçando-o por trás. Virou o rosto, surpreso, e viu o rosto de Gothel se aproximar do seu. Nas pontas dos pés⁷, ela o alcançou para um leve beijo.

— Fugindo de mim, Claude?

— O que? Não, só-

— Só estava arrumando uma desculpa para trabalhar em pleno domingo, pelo que ouvi. — Com um peteleco, ela derrubou o chapéu de sua cabeça. Por sorte, o juiz teve reflexos rápidos o suficiente para apanhá-lo antes que tocasse o chão. — Quem você queria prender? Aquela cigana? O que ela fez?

O que ela fez? O que ela fez? Frollo mal sabia por onde começar. Poderia dizer que ela havia sido sua ruína, sua perdição, o assassinou e o jogou no purgatório após ter manchado sua alma com os mais vis pecados… Mas nada disse. Esther era uma mulher lógica, prática, e ainda estava iniciando seus estudos bíblicos. Sua tragédia pessoal poderia ser muito pouco elucidativa. Precisava pensar em outra coisa para dizer, apesar da raiva consumí-lo tão intensamente que sentia que poderia ele mesmo sacar a espada de um dos guardas e fazer justiça com suas próprias mãos.

***

Gothel observava atentamente os ramos de seus ingredientes, grata por finalmente se ver fora da igreja, livre dos cochichos da nobreza e do sermão entediante. Havia lutado arduamente contra o sono por horas, e agora concentrava-se nas cores, fragrâncias e marcas de seus ingredientes. Se a planta não estivesse saudável, poderia comprometer não só o sabor mas também a eficácia de seus preparos, portanto a seleção era um trabalho minucioso. Trabalho esse que a impaciência do juiz Frollo estava atrapalhando.

Ele não sossegava um único instante; estava sempre se mexendo, reclamando, andando de um lado para o outro, e agora seu chapéu idiota encobriu o Sol dificultando ainda mais seu trabalho. Ele como sempre começou a murmurar, mas Gothel não se deu ao trabalho de prestar atenção.

— Ora vamos, Claude… Seja um pouquinho paciente, sim? Estou quase acabando. — Abanou uma mão na direção dele, na esperança de que ele saísse da frente da luz.

Para seu alívio, tinha luz novamente. Para seu desespero, quando ergueu os olhos ele havia sumido. Um pequeno frio se formou em sua barriga; ele não era uma pessoa querida entre os nobres, mas entre os plebeus era terminantemente detestado. Não que estivesse se importando com ele, mas definitivamente não queria vê-lo ser apedrejado ou espancado até a morte. Olhou desesperadamente à sua volta na tentativa de encontrá-lo; era um homem alto com chapéu triangular, não deveria ser uma tarefa difícil, mas só o encontrou após vários minutos. Suspirou aliviada enquanto se aproximava, ouvindo-o murmurar novamente, dessa vez praguejando contra um casal de feirantes.

Ela olhou bem para os feirantes em questão; a mulher tinha a pele bronzeada, os cabelos negros presos com o auxílio de um lenço, olhos verdes cansados e roupas puídas. Ainda assim, muito bonita. Carregava nos braços um menininho loiro com olhos verdes como os seus, e ao fundo um homem alto, de físico largo, com cabelos longos e uma espessa barba loira descarregava caixas de verduras na barraca. A julgar pela reação de Claude, deveriam ser os famosos Phoebus de Châteaupers e Esmeralda. Eles ainda não haviam notado Frollo, mas se não agisse rápido ele certamente acabaria fazendo algo idiota, como costumava fazer quando estava irado. Devido ao seu tempo no Pátio dos Milagres, sabia que Esmeralda ainda era bem quista entre os seus, e uma tentativa de prendê-la ou ferí-la certamente seria retaliada. Embora Gothel pudesse tirar bom proveito de um pouco de caos e desordem, temia que isso significasse o fim de Claude. De novo, não que se importasse com ele, é claro, apenas achava que ele merecia um fim um pouco mais digno.

— Fugindo de mim, Claude? — Sussurrou ao seu ouvido, abraçando-o por trás e se pondo na ponta dos pés para beijá-lo.

— O que? Não, só-

— Só estava arrumando uma desculpa para trabalhar em pleno domingo, pelo que ouvi. — Deu um peteleco em seu chapéu, e o observou se atrapalhar para pegá-lo antes que caísse no chão. — Quem você queria prender? Aquela cigana? O que ela fez?

Viu-o fazer uma careta de asco, mas ele nada disse sobre suas desventuras anteriores.

— Claramente ela não possui permissão para vender⁸ nada aqui! E o marido dela é um desertor da Guarda Real!

— Até onde eu sei, ele se aposentou⁹. E certamente um ex-membro da guarda real teria dinheiro para bancar a burocracia… — Rodopiou para a frente de Claude, segurando seu queixo com uma das mãos. — Isso está me cheirando a vingança pessoal…

— Para quem havia acabado de chegar, você parece conhecer bastante sobre os habitantes de Paris. E não se trata de uma simples-

Interrompeu-o colocando o indicador sobre seus lábios. O ar estoico de superioridade estava lá de novo, o que significava que ele falaria sem parar sobre justiça, leis e suas motivações ocultas, na tentativa de justificar suas ações perversas. Mas Gothel por um acaso preferia as ações perversas. Eram muito mais divertidas.

— E eu sei exatamente como fazer. — Continuou. — Ao invés de chamar os guardas inutilmente, ver os papéis deles, não prender ninguém e ainda sair como o vilão histérico da história, por que não optar por uma aproximação mais sutil?

— O que quer dizer?

— Por que não lembra a eles o quão generoso e nobre o Lorde Chanceler da França é, enquanto eles são apenas pobres coitados que precisam rastejar por algumas moedas… — Correu os dedos pelo peito e ombros de Claude, e um sorriso malicioso se formou em seus lábios. — Um golpe no orgulho fere mais profundamente que espadas. Apenas me acompanhe.

Um brilho perverso se acendeu no olhar do juiz. Aparentemente, ele havia entendido o recado. O agarrou pelo braço e caminhou em direção à barraca de Esmeralda. Não foi necessário esforço absolutamente algum para tirar a jovem cigana do sério; mal se aproximaram, ela já cerrou os punhos, olhando fixamente para Frollo.

— Você!? — Ela esbravejou — O que tá fazendo aqui!?

— Eu é que deveria estar lhe fazendo essa pergunta, mas para a sua sorte, é meu dia de folga.

— Achei que o diabo não tirasse folga. — Ela cuspiu no chão, entregando o bebê para o marido. — E ainda arrumou uma pobre coitada pra infernizar, meus pêsames, moça!

Poderia jurar que a essa altura Claude perderia a paciência e ela precisaria intervir para que ele não estragasse tudo, mas para o deleite de Gothel, ele estava se saindo surpreendentemente bem. Uma pequena multidão já se formava para assistir à comoção com olhares que variavam de assustados a curiosos.

— Certas pessoas nunca evoluem, não é mesmo? — Ele revirou os olhos, acenando desdenhosamente para Esmeralda. — Eu deveria trancá-la em uma masmorra pelo resto de sua vidinha infeliz pelo desaforo…

"Sabia… Ele não resiste." — Quase deixou escapar uma risada, mas se conteve. Era hora de intervir.

— Claude, querido, tenha piedade dessa pobre família esfomeada… Veja, ela sequer tem sapatos, seu bebê veste trapos, seu marido não parece ser o mais apto dos homens, e eles não parecem ter uma inteligência muito generosa como um todo…

— Como é que é!? — A cigana levou suas mãos à cintura.

— Viu o que eu disse? — Gothel se virou para Frollo, indicando com as mãos a família à sua frente.

— Escuta aqui, seus-

— Eu sou um homem justo e bom, não irei puní-los por sua natureza ignóbil. — Ele pôs uma mão no bolso interno de sua túnica, tirou de lá um pequeno saco de moedas¹⁰ e estendeu-o para Esmeralda. — Aqui. Não lhe dará classe ou virtude, mas ao menos lhe comprará sapatos.

A cigana trincou os dentes, tinha fúria em seu olhar. Com um tapa, derrubou a bolsa no chão, espalhando moedas por toda a calçada. Imediatamente os curiosos se transformaram em coletores ávidos, amontoando-se uns sobre os outros na esperança de garantir suas moedas.

— Eu vou dizer onde você enfia esse seu dinheiro, velho asqueroso!

— Esme, Esme! — Phoebus finalmente resolve agir, segurando sua esposa pela cintura. — Deixa pra lá, não vale a pena! Não vê que é isso mesmo o que ele quer?

— Como presumi… Continua uma selvagem. — O juiz soltou um suspiro teatral, voltando os olhos para os céus. — Pobre mulherzinha da ralé… Que Deus se apiede de sua falta de bom senso.

— VAI À MERDA!!!

A cigana praticamente espumava de raiva, e Phoebus começava a ter dificuldade em segurá-la.

— Não se preocupe, vou rezar por você.

Desta vez, Gothel não conseguiu conter a risada, e nem Frollo. Ambos saíram assim como chegaram, de braços dados, mas desta vez com um humor muito melhor.

— Amor, não! — A voz de Phoebus mal foi audível em meio à algazarra que ainda acontecia em prol das moedas, mas foi o suficiente para chamar a atenção de Gothel.

Avistou algo vindo em sua direção, um pequeno vulto avermelhado. Uma maçã? Por reflexo estendeu sua mão para apanhá-la, e graças a isso conseguiu interceptá-la antes que esta atingisse a nuca de Frollo. Olhou para a cigana que mal se continha de raiva e sorriu. Deu uma mordida na maçã e tornou a caminhar com Frollo de volta para a carruagem, triunfante.


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Notas finais do capítulo

¹Durante a Idade Média e boa parte da Idade Moderna, os assentos das igrejas eram definidos por classe social: a nobreza se sentava nas primeiras fileiras, a burguesia no centro e os pobres ao fundo, isso QUANDO se sentavam.

²Sorrir na igreja era quase um pecado. Aliás, expressar qualquer emoção durante uma missa era considerado um ato abominável, e fazer qualquer coisa que atrapalhasse a missa era passível de punição com todo o rigor da lei. No século XV o Estado era tudo, menos laico.

³Esse sinal de "joinha" é um anacronismo proposital que fiz pra ficar engraçadinho, mas na realidade um arquidiácono francês da idade moderna muito dificilmente faria esse sinal. Principalmente porque o significado dele na época possivelmente era outro. Ao contrário do que vemos na mídia, o polegar pra cima em Roma indicava que os gladiadores derrotados não deveriam ser poupados, enquanto o polegar para baixo indicava que deveriam viver. Como, quando ou onde rolou a confusão que trocou os significados do "joinha", eu não sei. Não pesquisei tão a fundo assim.

⁴É o portão principal de Notre Dame, bem ao centro. Antigamente, era comum que pessoas de classes sociais diferentes além de ocuparem lugares distintos também entrassem por portas diferentes da Igreja. Não sei como funcionava em Notre Dame no século XV, mas com certeza a porta principal era destinada à nobreza.

⁵Porta esquerda da catedral, datada do século XIII e inteiramente trabalhada em uma representação realista da iconografia referente à Maria.

⁶Espelhos eram artefatos caríssimos e muito raros na época, então dificilmente Frothel teria um assim à tiracolo. A não ser, é claro, que se considere que ela é um ser tecnicamente imortal que teve bastante tempo para roubar ou até mesmo fazer um ela mesma.

⁷Frollo tem 1,80m de altura, e Gothel 1,70m. Só uma trivia que encontrei enquanto cavucava os confins da internet em minha pesquisa pra não precisar rever os filmes de novo.

⁸O conceito de "alvará" não é novidade; muitos reis faziam de tudo pra matar pobre, seja de fome, frio, ou enforcado, mesmo.

⁹Outro anacronismo proposital. Aposentadoria não existia na época, as pessoas exerciam suas profissões até morrerem ou até que as matassem.

¹⁰Era muito comum para nobres dessa época andarem com uma bolsa de couro cheia de moedas destinadas exclusivamente à esmolas. Dessa forma podiam se vangloriar sobre o quão caridosos eram.



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