Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 12
O Sétimo Dia


Notas iniciais do capítulo

Frollo não fala sozinho, ok? Ele fala ~com Deus~



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Já fazia uma semana que Frollo mantinha Gothel em seu palácio, e a cada dia que passava se encontrava ainda mais impressionado com a sua inteligência; ela falava cinco línguas, tocava vários instrumentos musicais, possuía conhecimentos sobre literatura, arte, ciências, política e até mesmo direito. O juiz nunca havia passado tanto tempo conversando com outra pessoa por vontade própria.

 

Ficou estupefato quando viu que além da cultura secular¹ ela excedia as expectativas nos estudos bíblicos. Mesmo sem nunca ter tido contato com as escrituras sagradas, suas interpretações das passagens se alinhavam bastante com as do ministro, o que o deixava ainda mais admirado. Durante o dia, entre seus afazeres, tinha uma interlocutora excepcional; durante a noite, tinha uma amante cheia de paixão. Então isso era felicidade? Pela primeira vez na vida, Frollo sentia uma paz que pensou que só sentiria no reino dos céus.

 

Mas sua paz o abandonou assim que chegou a véspera do dia de domingo, onde teria que comparecer à missa². Era essencial para Gothel que também comparecesse, mas como convencê-la a ir? Poderia ele mesmo levá-la, mas todo o círculo da alta nobreza estaria presente, ele não podia simplesmente entrar na igreja de braços dados com uma cigana, seria um escândalo! As palavras do arquidiácono voltaram para assombrar sua mente, circulando-o como um abutre. "Para livrar-se deste pecado, deve honrá-la tomando-a como esposa."

 

Esposa. Mesmo agora, a palavra lhe parecia estranha, impossível. Ele já não era bem quisto entre os nobres, se o vissem na companhia de uma mulher pagã, eles… 

 

"Eles o que?" — Frollo sequer estava a par das tramóias da nobreza. Sua vida era seu trabalho, e o seu trabalho era a justiça. Nada mais. Nunca lhe interessaram as fofocas e joguetes da corte, e mesmo com seus iguais mantinha conversações curtas atendo-se exclusivamente ao trabalho. 

 

— Senhor, é isso o que quer de mim? — Olhou para a enorme cruz dourada que pendia na parede acima de sua lareira. — Vão me devorar vivo!

 

Ele havia ido contra homens poderosos em sua juventude, e raramente acabava bem. 

 

— “O meu coração está dolorido dentro de mim, e terrores da morte me assolam. Temor e tremor vieram sobre mim, e o horror me cobriu.” (3) Mas isto foi antes… Era apenas um moleque, recém formado. Hoje sou um ministro, o Guardião dos Selos, o próprio Rei requisita meus conselhos!

 

Andou de um lado para o outro da sala, em círculos. As coisas eram mais simples com Esmeralda, pois ela o desprezava. Agora que parou para refletir, não sabia dizer se chegou a esperar de verdade que ela escolhesse ele ao invés do fogo. De fato, não havia sequer cogitado o que fazer caso ela tivesse aceitado sua proposta. Mas com Esther era diferente. Ela estava ali, ela o havia procurado e o acolhido por conta própria.

 

— “Em Deus confio e não temerei. Que poderá fazer-me o simples mortal?”(4) O que eles podem fazer? Me tirar o cargo? Não, apenas o Rei tem esse poder. — Talvez a alcunha de "afável" do jovem Carlos VIII viesse a calhar, afinal. — Vou escrever uma carta, ou melhor, marcar uma audiência com o próprio Rei! 

 

Frollo olhou para o carvão em brasas à sua frente, cutucando-o com o espigão de ferro. Acrescentou mais lenha ao pequeno fogo que lutava para sobreviver e soprou-o com o fole.

 

— "Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, pois tu estás comigo, tua vara e teu cajado me consolam… Prepara-me uma mesa na presença de meus inimigos, unges minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda.”(5) Papéis… Ela precisa de papéis… Ser uma residente legalizada (6) da França. Sim, isso eu mesmo posso conseguir. 

 

Ajoelhou-se diante do fogo. Olhou para o crucifixo novamente e fez o sinal da cruz. Nada disso havia lhe passado pela cabeça antes, quando cobiçava a dançarina maltrapilha. Na verdade, nada disso havia se passado por sua cabeça até agora em sua vida. Casamento? Família? Coisas que sempre lhe pareceram ideias ridículas, agora eram quase sua obrigação. Havia cometido o pecado da fornicação, e estava persistindo neste pecado há quase uma semana. O casamento seria sua salvação… Não, deveria estar se preocupando com a Pedra Filosofal. Estava se deixando levar novamente, se desviando da missão dada pelo Senhor em prol de seus instintos luxuriosos. Mas se o Arquidiácono estivesse certo, nesta nova chance que havia recebido deveria cumprir todos os planos de Deus para sua vida, certo?

— E se ela me recusar? E se estiver esse tempo todo apenas brincando comigo? Ciganos não vivem entre quatro paredes… “Lança teu cuidado sobre o Senhor, e ele te sustentará. Não permitirá jamais que o justo seja abalado.”(7) Sim. Se é da vontade do Senhor, então será feito. Não há motivos para temer… “O Senhor é o meu pastor, e nada me faltará.”(8)

 

— Claude? — Aquela voz maravilhosa dizia seu nome de novo. Esther de repente estava na sala, e ele sequer sabia há quanto tempo. Uma onda de pavor o tomou; ele estava falando alto? E se ela o achasse louco? — Você acorda muito cedo, sabia? O Sol nem nasceu ainda…

Se levantou, sem olhar para ela.

 

— Arrume-se, iremos à missa hoje. Irei ordenar que preparem minha carruagem, a espero em meia hora.

 

Apressou-se em deixar o cômodo, sem nem ao menos esperar por sua resposta. 

 

***

 

Gothel estava sozinha no quarto outra vez. Era a segunda noite consecutiva que Frollo saía do quarto no meio da madrugada e se punha a andar de um lado para o outro em frente à lareira, murmurando e falando sozinho, às vezes gritando como um lunático. Começava a se perguntar se deveria se preocupar. Desta vez, respirou fundo e abriu a porta. 

 

— Claude? — Adentrou a sala da lareira com tanta naturalidade quanto foi possível. — Você acorda muito cedo, sabia? O Sol nem nasceu ainda…

— Arrume-se, iremos à missa hoje. — Ele respondeu, colocando-se de pé. O ar de superioridade estava lá novamente, como se ele lhe fizesse algum favor de valor inestimável. — Irei ordenar que preparem minha carruagem, a espero em meia hora.

 

O homem deu-lhe as costas e saiu da sala às pressas, provavelmente encabulado por ter tido seu diálogo não tão interno interrompido.

 

— Bom dia pra você também. — Ela lhe disse, mas não obteve resposta.

 

Já estava no palácio há uma semana e ainda não tinha tido sinal da Pedra Filosofal. Ele possivelmente a guardava em algum cofre ou compartimento oculto, e se fosse esse o caso seria um enorme problema. De fato, Hades não havia lhe dado um prazo; no entanto, isso também significava que ele poderia mandá-la de volta ao submundo na hora que bem entendesse.

 

Estava fazendo tudo o que estava ao seu alcance para cair nas graças de Frollo, inclusive usar as anotações do juiz como base para suas conversas quase infindáveis sobre possíveis interpretações da Bíblia para massagear-lhe o ego. Tirando os estudos religiosos entediantes, dizer que sua estadia com o juiz estava sendo desconfortável seria uma mentira; ele era extremamente cortês, e parecia legitimamente interessado em tudo o que ela dizia. Seu toque era um tanto desajeitado e exasperado, mas também cuidadoso e carinhoso; na maioria das vezes se mantinha abraçado à ela por horas afagando seu cabelo e a enchendo de elogios. Algumas vezes parecia que ele temia que ela simplesmente desaparecesse de repente. Nunca se considerou uma pessoa carinhosa, mas mesmo a contragosto devia admitir que estava começando a gostar da atenção. 

 

A julgar pela época em que o rei do submundo a colocou, podia afirmar que sua flor ainda estava intacta. Ela podia convencer Frollo a viajar com ela, e ambos seriam imortais. Jovens para sempre, fora da vista de Hades…  Riu consigo mesma, em vista de quão ridícula parecia aquela ideia. Devia se concentrar em tomar a Pedra Filosofal e desaparecer da vista de ambos, tanto de Frollo quanto de Hades. 

 

Vestiu-se e desceu para a rua, onde a carruagem do juiz Frollo a esperava. Ele estava parado ao lado de uma das portas, e cordialmente a ajudou a subir.

 

— Podemos parar no mercado na volta? — Perguntou casualmente — Preciso repor as ervas que gastei com você. 

 

Ele a encarou em silêncio por alguns instantes, com um olhar que poderia ser classificado como no mínimo desconfiado.

 

— Claro. — Ele finalmente disse, desviando o olhar para a janela, fechando-a firmemente. — Meus guardas irão acompanhá-la.

 

— Não preciso de babás, será uma parada rápida… Além disso, não gosto de ter homens armados em meu encalço.

 

— É para sua própria segurança. 

 

Gothel revirou os olhos. Dado o histórico do juiz, ele claramente só estava querendo se assegurar de que ela não fugisse.

 

— Não precisa se preocupar, eu sei me cuidar muito bem.

 

— Paris é uma cidade perigosa, mesmo para alguém com as suas habilidades. A companhia de um guarda ou dois não irá matá-la.

 

Estava na hora de jogar sujo. Inclinou-se na direção dele e com o indicador virou o rosto de Frollo para si, obrigando-o a olhar em seus olhos.

 

— Pois eu preferiria que fosse a sua companhia, não a de "um guarda ou dois". 

 

— A minha? — Ele corou, com uma expressão surpresa no rosto. Desviou brevemente os olhos, como se pensasse sobre o assunto — Eu… Não costumo andar por mercados… "Seja vosso costume sem avareza, contenta-vos com o que tens…"⁹ 

 

— Não é avareza, é uma necessidade. Você viu em primeira mão como essas ervas são úteis. 

 

— Posso pedir para que algum servo as compre… 

 

— Eu gosto de selecionar a dedo meus ingredientes. — Tocou na ponta do nariz do homem com o indicador, depois gesticulou amplamente com a mão — E além do mais, já faz uma semana que não saímos daquele lugar pra nada, vai ser bom esticar as pernas… 

 

— Porque ciganos não vivem entre quatro paredes, não é mesmo? — Havia um tom azedo na voz do juiz, e seu cenho se franziu.

 

Lembrava-se vagamente de já ter ouvido um ditado similar entre os locais, mas se isto fosse verdade, eles não teriam para si um "Pátio dos Milagres" escondido sob bem mais que quatro paredes.

 

— Bom, esta cigana tem vivido muito confortavelmente, graças ao monseigneur. — Apertou uma das bochechas do homem, desfazendo sua careta azeda. — Vamos, é só uma voltinha!

 

— Não compreendo seu anseio em se misturar com a plebe… Mas já que insiste… 

 

— Ótimo! — Puxou-o para um beijo intenso, deslizando uma das mãos por seu colo.

 

— N-nós chegamos. — Anunciou Frollo nervosamente, ajeitando suas roupas e abrindo a porta da carruagem, livrando-se do abraço de Gothel.

 

Ele cordialmente a ajudou a descer da carruagem, e ambos entraram na igreja de braços dados. 


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Notas finais do capítulo

¹ Tudo aquilo que não era "sagrado".

² A missa era um grande evento social da época; uma grande competição para ver quem é o fiel mais fervoroso (e estiloso) se dava nas missas, num processo que envolvia rezas longas e vestidos de luxo. Ou o contrário, se vestir bem porém modestamente também somava pontos na disputa de egos. Era selvagem.

(3) Salmos 55:4-5

(4) Salmos 56:4

(5) Salmos 23:4-5

(6) Sim, a Europa imigrou pro mundo todo mas sempre achou ruim quando imigravam pra lá, e exigia documentos e assinaturas mesmo numa época em que ninguém sabia ler. Enfim, a hipocrisia.

(7) Salmos 55:22

(8) Salmos 23:1

⁹Hebreus 13:5

(Todas as notas eram para ser com o número sobrescrito, mas por algum motivo quando eu colo no nyah! fica quase tudo zuado. Vai entender...)



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