Ad Redemptio escrita por Glasya


Capítulo 11
Confissões


Notas iniciais do capítulo

*Fun fact que descobri enquanto pesquisava sobre a França do século XV: O cargo de Frollo no filme da Disney (Ministro da Justiça) não existia na época! Os juízes eclesiásticos podiam, sim, se referir a si mesmos com essa alcunha, mas o cargo de "ministro" como conhecemos hoje não era uma exclusividade. No Antigo Regime, antes da Revolução Francesa, Frollo seria chamado de Lorde Chanceler da França ou Guardião dos Selos, e teria pelo menos outros cinco com o mesmo cargo. Esse conjunto de pessoas (os chanceleres, seus assessores, secretários e subordinados em geral) desempenhavam o papel do que atualmente temos como Ministério da Justiça. Interessante, não? Vou adicionar isso na fic, fodase.



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Frollo estava cansado, mas não conseguia dormir. Observava a mulher adormecida ao seu lado na cama, ainda sem saber o que fazer. Pensou em acariciar seu cabelo, mas ela dormia tão pacificamente que não queria perturbá-la. Também não queria parecer ainda mais patético do que já devia estar parecendo.

 

Levantou-se bem antes do amanhecer e desceu para os estábulos, levando consigo algumas maçãs. Eram as favoritas de Bola de Neve, e sabia que o animal seria muito mais difícil de controlar se tivesse um agrado. Era um cavalo de temperamento difícil, assim como seu dono. Selou o animal, oferecendo-lhe as maçãs como suborno, e galopou até Notre Dame.

 

Seus sapatos estalavam contra o piso da igreja conforme adentrava sua nave e fazia seu caminho escadaria acima até os aposentos do arquidiácono. Bateu vigorosamente na porta, até que uma voz embargada pelo sono pudesse ser ouvida do outro lado da porta.

 

— Um momento, um momento… — O Arquidiácono abriu a porta, e não pôde evitar uma expressão surpresa ao ver o juiz Frollo em sua porta. — Claude? O que houve? 

 

— Vim me confessar.

 

— O que? A essa hora?

 

— Se não fosse, eu não teria vindo agora. E você pouco se importou com o meu descanso, por que eu deveria me importar com o seu?

 

— Por Deus, eu ao menos esperei amanhecer!

 

— "Não ames o sono, para que não empobreças; abre os teus olhos, e te fartarás de pão."¹ Não que você precise de ainda mais pão.

 

— Bem… Ao que parece não tem dado muito certo para você.

 

— Vai ouvir minha confissão² ou não, velho tolo!? Foi você quem deu essa maldita ideia!

 

— Está bem, está bem! Santo Deus… Vamos descer, vou abrir o confessionário.

 

Frollo esperou não muito pacientemente o arquidiácono voltar para dentro de seu quarto e sair de lá com a chave do confessionário. Ambos desceram as escadas em silêncio, com bem menos pressa do que o juiz gostaria. Uma vez lá embaixo, o arquidiácono pendurou seu lampião em um gancho próximo e destrancou a saleta de confissões. Frollo entrou pelo outro lado e se sentou, olhando fixamente para a frente, em algum ponto perdido da parede de madeira. Fechou os olhos, respirou fundo e fez o sinal da cruz.

 

— Estou cobiçando uma mulher. Não, acredito que isso já tenha passado dos níveis de "cobiça". Mas não sou culpado, ela me enfeitiçou! Ela… Eu não consigo controlar meus pensamentos, nem mesmo meu corpo na presença dela! Céus, neste exato momento eu ainda sinto seu cheiro! É como se fizesse parte de mim! Eu devo estar ficando louco!

 

— Claude, Claude, espere! Se acalme… — O Arquidiácono o interrompeu. — Vá devagar, não estou entendendo nada. Vamos começar do começo, sim? 

 

Frollo estava sem paciência, mas sabia da importância da liturgia e da instituição sagrada, então faria do jeito de Henri por hora. Após uma breve reza, tornou a falar, bem mais devagar e em tom mais brando, mas ainda firme.

 

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, já se passaram décadas desde minha última confissão.³ Eu conheci… Essa mulher… Naquela maldita Festa dos Tolos, e não consigo tirá-la de minha mente. Na verdade, a cada dia que passa, ela ocupa mais espaço em meus pensamentos. Eu não tenho força de vontade alguma para resisti-la, e ela sabe disso. 

 

— Desculpe, mas eu devo perguntar… Está falando de Esmeralda?

 

— O que!? NÃO! Que queime no inferno, ela e aquele projeto de homem que chama de marido!

 

— Oh. Hum… Bem, então…

 

— E antes que venha de gracinhas, elas não têm absolutamente nada em comum!

 

— Espere, você disse que a conheceu na Festa dos Tolos? Eu fiquei sabendo de um… Incidente… Envolvendo você e uma cigana recém-chegada à cidade.

 

— Sempre dado à mexericos, velho. Não sei por que vim me confessar com você.

 

— Bem, foi um assunto muito comentado por dias, não tive como não escutar. É aquela cigana de cabelos negros e olhos verdes que usava um vestido vermelho e dançou em seu palanquim durante o festival?

 

— Isto é uma confissão, não sou obrigado a te fornecer detalhes. — Frollo franziu o cenho, massageando com os dedos os cantos dos olhos, próximos ao dorso do nariz.

 

— Hum. De fato, elas não têm absolutamente nada em comum. — O Arquidiácono tentou conter uma risada, mas Frollo havia percebido.

 

— Ela tem dons artísticos que aquela cigana maltrapilha de pés sujos jamais teve! A voz de um anjo, a agilidade de um felino, a delicadeza de uma flor… E é letrada!

 

— E você a ama.

 

A frase atingiu seu coração como um virote. Amor? Seria isso que o esteve levando à beira da loucura esse tempo todo? Ele pensava nela, sonhava com ela, queria desesperadamente estar perto dela… Porque a amava? Não, isso era ridículo. A vida não era um conto de fadas, as pessoas não se apaixonavam em questão de dias.

 

— A questão aqui não é essa! — Entrou na defensiva, e com razão. Odiava se sentir vulnerável, e nesses últimos dias foi o sentimento predominante na sua vida. — A questão aqui é o meu pecado!

 

— Amar não é pecado, Claude. E se for recíproco, acho que você deveria… 

 

— Fornicação! Foi esse meu pecado!

 

— Ah. Oh… — O arquidiácono fez uma longa pausa. — Bem, nesse caso… Creio que não preciso te lembrar o que a Bíblia diz sobre isso… 

 

Sim, ele se lembrava muito bem.

 

— "Fugi da fornicação. Qualquer outro pecado que o homem comete é externo ao corpo, mas o que comete imoralidade sexual peca contra o próprio corpo."⁴

 

— "Honrado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula…"⁵ — O arquidiácono o corrigiu gentilmente. — A melhor forma de se limpar deste pecado é honrando essa mulher e tomando-a como esposa.

 

O confessionário caiu em silêncio. Casar-se? Com uma cigana bruxa que o havia enfeitiçado? A corte já o desprezava, um casamento como esse seria sua ruína, especialmente após recusar ofertas de homens poderosos que queriam envolver suas garras na justiça divina, tentando vender-lhe suas filhas como cabras ao abate.

 

— Essa foi… A coisa mais ridícula que você já me sugeriu. Eu sou Ministro da Justiça!* Quer que eu me case com… — As palavras morreram em sua boca. Ela era uma bruxa, mas havia salvo sua vida. Ela poderia o estar enganando, mas até então havia tido inúmeras oportunidades de assassiná-lo e ao invés disso se entregou a ele mais intensamente do que ele achou que seria possível. O juiz apoiou os cotovelos nos joelhos e cobriu seu rosto com as mãos. Um pensamento terrível havia acabado de lhe ocorrer. — Casar… Com… Eu sequer sei o nome dela!

 

— Bem… Acredito que não seja tarde demais para perguntar, hum? Deus sabe de todas as coisas, meu caro. Não foi à tôa que ele não lhe permitiu ser padre.

 

Você não me permitiu ser padre. — Frollo cuspiu a frase, com raiva.

 

— Não era sua vocação, não estava nos planos de Deus. E agora sabemos por quê.

 

Queria responder, mandá-lo ao inferno, mas já haviam tido aquela discussão milhares de vezes sem nunca terem chegado a lugar algum. Limitou-se a completar metodicamente a liturgia da confissão e pedir perdão pelos pecados, rezar e fazer o sinal da cruz antes de sair do confessionário.

 

Montou em Bola de Neve novamente e retornou ao seu palácio. O Arquidiácono havia lhe dado muito o que pensar.

 

***

 

Gothel abriu os olhos assim que o juiz saiu do quarto. Havia cochilado, sim, mas não tão profundamente a ponto de não notar a movimentação do homem na cama ao seu lado. Ele estava inquieto, e ela já se preparava para o pior.

 

Levantou-se e observou pelo buraco da fechadura; ele havia deixado um guarda na porta, e é claro que deixaria. O que significava que seu precioso escritório estava fora de alcance… Mas ao menos poderia vasculhar o quarto.

 

O cômodo era tão escasso de móveis que não foi uma tarefa nem de longe difícil; a cama e a cômoda eram luxuosas, mas os pertences do juiz Frollo eram bem mais comedidos. Além das vestes eclesiásticas ele possuía apenas uma roupa que poderia ser considerada "de luxo", possivelmente era a que ele usava em eventos da nobreza. De resto, alguns casacos de lã e camisas de linho nas cores mais desbotadas que Gothel esperaria ver no guarda roupas do ministro da justiça da França.

 

Até mesmo a caixa de jóias estava vazia, com exceção de seus anéis. O rubi era claramente um anel de formatura, e o azul seu selo de autoridade. O crisoprásio era um mistério, mas a julgar pelo entalhamento muito provavelmente também era relacionado ao magistério. 

 

Gothel voltou sua atenção para a estante de livros. Quase todos eram sobre direito, ou de teor religioso. As poucas exceções interessantes pareciam muito pouco usadas. Aparentemente, ele vivia do trabalho e para o trabalho apenas. Gothel tomou o cuidado de colocar tudo meticulosamente de volta em seu lugar. Definitivamente a pedra filosofal não estava ali, certamente estaria no escritório, e ela precisava dar um jeito de entrar lá. 

 

Verificou suas botas e tirou de lá seu punhal. Tentaria ao máximo dar um jeito no guarda sem precisar usá-lo, mas era melhor se precaver. Pôs a mão sobre a maçaneta da porta, mas se conteve; não tinha garantias de que a pedra estava de fato no escritório, matar um guarda e invadir o local chamaria muita atenção. Por hora, seria mais vantajoso esperar até que o juiz baixasse totalmente sua guarda. Precisava tê-lo na palma de sua mão.

 

Ouviu a voz do guarda verbalizar um "boa noite, monseigneur Frollo" e apressou-se em guardar o punhal na bota novamente e deitar-se na cama. Em instantes, era como se nunca tivesse despertado. Esperou que ele entrasse e se sentasse na cama ao seu lado para abrir os olhos.

 

— Você acorda muito cedo… — Deslizou os dedos pelas costas do homem, simulando morosidade na voz. 

 

— “Estando eles angustiados, de madrugada me buscarão…”(6) — Ouviu Frollo murmurar, mas tinha certeza de que era mais para si mesmo que para ela.

 

— Também murmura bastante.

 

— Muitas coisas a seu respeito me intrigam, madame Gothel. — Ele falou, sem olhar para ela. Seu tom era austero e distante, porém polido e comedido. Um mal sinal. — A primeira delas é qual seria seu interesse em minha pessoa.

— Achei que tinha deixado claro meu interesse em vossa excelência. — Ela se aproximou, abraçando-o por trás.

 

— E agora que teve sua diversão irá embora, eu suponho. Desaparecerá e nunca mais voltará. Estou certo? — Gothel não conseguia discernir o que ele queria dizer com aquilo. Seu tom polidamente monótono pouco entregava, e sem conseguir ver seu rosto ficava ainda mais difícil. Precisava tirá-lo do sério, e rápido.

 

— É isto que o monseigneur deseja? — Enfiou as mãos sob suas roupas e acariciou-o com cuidado.

 

— Não responda uma pergunta com outra.

 

— Mas não me fez perguntas, apenas afirmações.

 

— Perguntei se estavam corretas.

 

— E eu perguntei se quer que elas estejam.

 

— Basta! — Ele ergueu a voz. — Responda de uma vez, sim ou não!

 

— Ora, então vá direto ao ponto! — Ela também ergueu sua voz, um pouco além da dele.

 

Ele se virou para ela, irado. Gothel cerrou um dos punhos, pronta para um enfrentamento físico se ele chegasse a esse ponto. Ele segurou um de seus pulsos com firmeza.

 

— O que você quer de mim? Dinheiro!?

 

— Se eu fosse prostituta, cobraria adiantado. — Não conseguiu esconder o escárnio na voz.

 

— Isto é uma piada para você!? — Estava dando certo. Ele começava a ficar ofegante novamente, e havia uma mistura de raiva e medo em seu olhar. — Você, a quem nunca vi na vida, demonstra súbito interesse em mim, me beija em público, me tenta dentro da casa do Senhor, me faz sucumbir à luxúria…! Sem nem ao menos me dizer seu nome… 

 

Gothel ficou em silêncio por um tempo. Ele parecia exasperado, e ela não sabia como reagir. Aquilo era normal? Nunca havia visto um homem agir daquele jeito; normalmente os homens com quem se relacionou em sua longa vida eram brutos e violentos, e as mulheres mesquinhas e cruéis. Este homem, no entanto, fugia à regra. Como lidar? Sabia que precisava fazê-lo confiar nela, do contrário não teria sua pedra filosofal… 

 

— Se queria saber meu nome bastava perguntar, não precisava ser tão dramático. — Revirou os olhos, gesticulando desdenhosamente a mão livre em direção ao juiz.

 

— Dramático!? Sua-

 

— Esther.

 

O juiz se calou, e por duas vezes fez menção de que ia começar a falar novamente, mas nada disse.

 

— Um nome cristão… — Ele finalmente disse, liberando seu pulso. — Um tanto incomum entre os seus.

 

Gothel demorou alguns segundos para perceber que ele se referia aos ciganos.

 

— Nem tanto. Alguns aderiram à sua fé.

 

— E quanto a você?

 

Ele havia tocado em um ponto delicado. Ela não poderia lhe dizer que achava aquilo tudo uma grande baboseira que se apossou de arremedos de cultura pagã para fazer sua doutrina e tradição enquanto lambia as bolas de reis e nobres para se manter influente entre o povo… Havia visto como começou, e onde chegaria, mas no momento, quanto menos ele soubesse sobre suas opiniões, melhor.

 

— Bem… — Ela encolheu os ombros — Eu nem sei ao certo do que se trata.

 

— Nunca ouviu a palavra do Senhor? 

 

— Ninguém se ofereceu para me dizê-las. — Mentiu.

 

— Neste caso… É meu dever como representante da Igreja instruí-la no caminho da salvação. — Havia orgulho em sua voz, a vaidade de quem se via em uma posição confortável de dominância pela primeira vez em dias. Gothel conhecia bem as nuances do ego humano… 

 

— E teremos tempo para isso, monseigneur? Parecia prestes a me expulsar ainda há pouco.

 

— Eu não a estava expulsando, apenas queria entender suas motivações. — O ar austero e polido estava lá novamente, mas desta vez sem tanta frieza. — Ainda quero, para falar a verdade.

 

— Ao contrário do que parece, eu sempre fui uma mulher solitária. — Não era de todo mentira, mas ocultou que o era propositalmente. — "O amor é amargo e doce, encantador e cruel, doce é alcançá-lo, mas triste é procurá-lo e não o achar." Acho que duas almas solitárias inevitavelmente se atraem.

 

— Teógnis de Mégara…⁷ — A boca do juiz se abriu em surpresa.

 

— Você tem versículos bíblicos, eu tenho poemas helênicos.

 

— Como uma cigana conhece alta literatura?

 

Gothel deu de ombros.

 

— Como eu disse, viajei bastante. — Passou os dedos pelo cabelo do homem, massageando-lhe gentilmente a nuca. — Façamos o seguinte, você me fala sobre Deus e eu te falo sobre minhas viagens.

 

— Feito. — Ele ainda tentava manter sua pose ascética, mas seus olhos denunciavam sua empolgação.

 

Para um homem conhecido por ser tão duro, ele estava se mostrando extremamente crédulo e facilmente manipulável… Enquanto o beijava, Gothel lembrou-se que certa vez já foi chamada de "ruína dos homens". Não havia para ela alcunha mais precisa.


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Notas finais do capítulo

¹Provérbios 20:13

²Você provavelmente está se perguntando "mas que fogo no cu todo é esse pra se confessar, Frollo?" Bem, acontece que no século XV se confessar era quase o rolé obrigatório da galera. As pessoas se reuniam pra ir se confessar, como se fosse um evento, e entre os nobres era muito bem visto que se confessassem ao menos uma vez na semana.

³Não sou católica, nunca me confessei na vida. Achei essa liturgia na internet, e duvido que seja igual à do século XV.

⁴ 1 Coríntios 6:18

⁵Hebreus 13:4

(6) Oséias 5:15

⁷Poeta Helênico (Grécia Antiga) do século VI A.C. Trecho adaptado. No século XV o Renascimento estava à pleno vapor; valores e cultura da Antiguidade estavam na moda entre os círculos aristocráticos, e algumas peças de teatro inclusive ganhavam as ruas.



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