Um Conto de Fadas e Maldições escrita por Mialee Aurestelar


Capítulo 4
IV.




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Parei diante do espelho, e não pude deixar de abrir um pequeno sorriso. Faria uma semana que o baile tinha sido realizado, e mesmo assim, me encarava e, mesmo com poeira e manchas por toda a roupa, ainda encontrava alguma coisa diferente no reflexo. Algo brilhante como o sapato de cristal que estava escondido em meu quarto. 

Nos últimos dias, tinha passado minhas horas, livres ou não, processando o que acontecera. Tinha visto uma abóbora virar uma carruagem, ganhara, por algumas horas, o vestido mais lindo em que já pusera os olhos e um par de sapatos que era tão absurdo quanto lindo. Descobrira em uma fada que deveria ter centenas de anos uma pedaço de minha família. Astherin me explicara que não podia ficar tempo demais ao meu lado, seus deveres a impediam, mas afirmara que estaria sempre olhando por mim, o que já era muita, muita coisa. 

E, claro, havia o príncipe. Encantada como estava com tudo que acontecera, me vi naquela conversa com ele, fazia tempo que eu não falava tanto. Nunca gastara muito tempo imaginando como o príncipe era, mas agora sua imagem, meio cético e curioso, com um dos sorrisos mais bonitos que eu já vira, estava passando pela minha cabeça constantemente. E mesmo que tivesse que aceitar em algum momento que nunca mais o veria e a noite do baile seria uma memória bonita, me deixei sonhar enquanto podia. 

Quando a notícia chegou de que uma comitiva real visitaria todas as partes do reino em busca da senhorita em quem servisse um misterioso sapato de vidro deixado para trás no baile, mal pude acreditar. Parecia bom demais para ser verdade. E talvez fosse mesmo.

— Ellora, querida, venha aqui — ouvi a voz de Lady Tremaine vindo da sala. A calma em sua voz me colocou em estado de alerta. Quando entrei na sala e a vi segurando o delicado sapato de cristal, senti a tênue certeza em uma resolução feliz que eu viera cultivando desabar — Quero uma explicação, e espero que seja muito boa.

— Eu…

— Uma coisa tão fina assim ter parado em suas mãos… Você roubou-o?

— O que? É claro que não, foi um presente — respondi, ofendida. O medo que costumava sentir estava misturado uma raiva antiga — Me devolva, por favor.

— Oh — ela levantou as sobrancelhas, tornando a raiva debaixo de sua fachada calma mais evidente — Um baile e você já está se achando a dona do mundo? Não se engane, pode ter conseguido enganar o príncipe, que não tinha ninguém para avisá-lo com o que estava lidando, mas acha mesmo que alguém da comitiva real vai acreditar que você é a quem eles estão buscando?

Tinha escutado variações daquele discurso por anos, e sempre procurara domar a raiva quente que sentia, sem querer causar um confronto que não seria capaz de aguentar. Mas, com as experiências que tivera recentemente, estava mais inclinada a deixar minha indignação aparecer.

— Não enganei ninguém — Deus, não achei que fosse ter vontade de chorar — Durante todos esses anos tudo que fiz foi ajudar você e suas filhas, por mais que me tratassem como um nada. Quem é você para me dizer que não mereço ser escolhida?

Ela se levantou e veio em minha direção. Havia tanta raiva em sua expressão que dei dois passos para trás.

Eu me sujeitei a um casamento com o imbecil que era seu pai pelo bem das minhas filhas. Não fiz isso para ter que viver de restos nessa casa antiga e definitivamente não o fiz para a filhinha mestiça dele casar-se com um príncipe enquanto vivo nessa espelunca — ela abriu o sorriso mais desprovido de humor que já vi — E também coincido de ter nas mãos sua única chance de convencer a comitiva de que está dizendo a verdade. 

Me dei conta do que ela faria tarde demais, vendo em choque o sapato ser reduzido a estilhaços no chão. Agora pareciam tão comuns quanto qualquer copo quebrado, espalhados pelo tapete. 

— Não! — gritei, e as lágrimas estavam queimando em meus olhos. Ao mesmo tempo, a campainha tocou, e ouvi as exclamações de Anastasia e Drizella:

— Mãe, a comitiva real! 

— Nem pense sair desse cômodo — disse ela, se dirigindo para a porta — Limpe isso enquanto estiver aí, sim?

Alguma coisa dentro de mim tinha quebrado. A inércia que tinha me mantido quieta durante todos esses anos, obediente e solícita, tinha se partido junto com o sapato e a última esperança que Lady Tremaine pudesse ser capaz de me enxergar como alguém respeitável e que, por isso, não merecia minha gentileza. A oportunidade da minha vida estava ao alcance da minha mão, e eu deixaria ela ir embora por medo? De jeito nenhum.

Cheguei até a porta da sala pouco antes de Lady Tremaine fechá-la, já com a chave para trancá-la no trinco. 

— O que você acha qu… — ela começou a dizer, mas puxei a porta para trás, passando por ela com um empurrão.

Conseguia ouvi-la gritando e vindo em meu encalço, mas não parei até chegar até onde a comitiva estava com minhas meias-irmãs. 

— Boa tarde, senhores — disse, interrompendo o silêncio surpreso que se instalara no cômodo — Imagino que eu também deva experimentar o sapatinho, certo?

— E a senhorita, quem é? — perguntou um dos homens. 

— Uma empregada da casa — ouvi a voz de Tremaine atrás de mim, sua mão agarrando meu ombro, já tentando me puxar para fora dali — Por favor, não percam seu tempo com ela, na noite do baile ficou trabalhando aqui.

— Sou a dona dessa casa e fui ao baile — disse, firme, saindo do alcance dela e indo até o homem que parecia o comandante da comitiva — Ellora Ducayet, muito prazer.

A expressão dele se iluminou.

— Conheci seu pai, senhorita, é uma honra finalmente conhecer a filha de quem ele falava com tanto carinho. É tão bonita quanto sua mãe — ele sorriu — Sente-se, por favor. 

Sob o olhar chocado de minha madrasta e meia-irmãs, o sapato serviu. Nessa resolução saída de um sonho, me sentia completamente acordada pela primeira vez em anos. 

(***)

— Cassian — Ella soava incerta — Preciso te contar uma coisa.

— O que é? — perguntei, um tanto preocupado. Ela tinha estado estranha o dia inteiro.

— É sobre mim, sobre… Minha aparência.

— Ellora — falei, sério — Eu sei.

Um silêncio surpreso.

— Sabe?

— Metade da corte já veio me contar, Ella, e não faz diferença nenhuma para mim — nem todas as descrições tinham sido bem-intencionadas, e essas eu descartara. Mas algumas, de gente em quem eu confiava, me deram a oportunidade de poder imaginar Ellora: pele escura, cabelos castanhos e cacheados, compridos, olhos castanhos e um sorriso sempre chegava aos seus olhos. Não poderia ser mais bonita. Falei minhas próximas palavras com cuidado — Mas espero que você saiba que pode falar sobre isso comigo quando quiser. Não faço ideia de como você experiencia o mundo, e gostaria de aprender.

— Obrigada — a voz dela estava embargada. Segurei sua mão e ela descansou a cabeça em meu ombro — Você sempre pode me contar sobre suas experiências também, viu?

— Claro — ponderei um pouco sobre o que diria em seguida — Por que essa preocupação agora? Aconteceu alguma coisa?

— Não. Quer dizer, aconteceu de que as coisas estão indo tão bem que comecei a desconfiar que algo daria errado, e isso ficou ocupando minha cabeça.

Depois de quase duas semanas de corte, o casamento parecia iminente. Mantive firme minha pretenção de pedi-la em casamento só dali mais duas semanas, completando um mês de convivência, mas a cada dia minha certeza era mais firme. 

— Ella… 

— Eu sei, eu sei. Cada dia está mais fácil, mas reconstruir minha confiança ainda é um trabalho lento. 

— Disso eu entendo — respondi, rindo. Mas era realmente mais fácil todo dia, e com ela, e sua presença indispensável, era mais fácil ainda — Alguma coisa a mais que deveríamos conversar? — brinquei.

— Já que tocou no assunto — respondeu ela, soando mais séria do que eu esperara — Talvez seja hora de eu te contar sobre minha família.

— Seu pai não era um mercador famoso? — perguntei, sem ver qual poderia ser a grande surpresa ali.

— Isso, e minha mãe era uma fada.

— Você está brincando, certo? — perguntei, achando que tinha escutado errado. 

Ela riu.

— Se prepare para uma boa história, meu príncipe.

(***)

Minha mãe era um tipo de pessoa rara. Meu pai também. Por um certo tempo, acreditei que, sem eles, não havia mais ninguém na minha vida que fosse especial de uma maneira tão doce quanto a deles. 

Então descobri uma tia que, mesmo que presente por uma noite, acendeu alguma coisa em mim, e está comigo sempre, de longe, como uma estrela. Fiz amigos na corte, alguns que se pareciam comigo, e eram únicos de seu próprio jeito. E Cassian. Cassian, o rei mais que competente, a pessoa que eu mais amo nesse mundo. O melhor dos amigos que já tive.

E havia eu mesma. Agora, quando olhava no espelho, havia uma luz que nunca ia embora. Não vinha dos vestidos elegantes ou da coroa reluzente na minha cabeça, mas da certeza que eu era capaz de navegar por aquele mundo, apesar de todos os seus percalços, com a delicadeza que meus pais tinham me ensinado e com uma bravura que era minha. E, assim, eu estava inteira. 

“Era uma vez uma garota extraordinária. Ela era gentil, corajosa, confiante e assertiva. Ela era, em sua completa humanidade, a prova de que magia existia naquele mundo.

Era uma vez um garoto comum. Ele era um tanto impaciente, irônico e carinhoso. Ele era o príncipe que não experienciava o mundo como os outros, e não havia maldição alguma nisso. 

Ninguém foi salvo. Mas a garota e o garoto, ao se encontrarem, decidiram que era hora de salvarem a si mesmos. Afinal, eles amavam um ao outro com a mesma dedicação com que tinham sido amados um dia, com corações grandes e fortes. E isso certamente era um final feliz.”

 

 


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