Um Conto de Fadas e Maldições escrita por Mialee Aurestelar


Capítulo 1
I.


Notas iniciais do capítulo

Essa história surgiu de uma ideia que eu vi em um post sobre o príncipe e do porque ele não poder reconhecer a Cinderela pelo rosto e ter assistido a versão de 1997 de Cinderella. Espero que gostem!



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Era uma vez uma fada. 

Ela era poderosa e bela. Costumavam dizer que era protegida do Sol, e seu vestido dourado, pele escura e luminosa e cabelos trançados com fios de ouro realmente corroboravam com essa crença. 

A fada viveu por muitos séculos e realizou o desejo de vários seres humanos, feliz em cumprir seu papel no mundo. 

Um dia, a fada conheceu um jovem. Ele, como tantos outros, tinha um desejo. Ele queria conhecer o mundo. A fada lhe ofereceu tapetes mágicos, a habilidade de se transportar com um estalar de dedos. Ele negou. Tudo o que queria, na verdade, era um bom navio e uma boa tripulação. Queria conhecer o mundo com suas próprias mãos, e com a jornada difícil que enfrentaria para tal. 

A fada realizou seu desejo e, por curiosidade, seguiu-o em sua viagem. Meses se transformaram em anos, e o jovem se tornou um homem. A cada viagem se tornava mais sábio, conhecia mais gente. E a fada, que se deixara ficar por tanto tempo, percebeu, um dia, que o amava.

O homem também a amava, ela sabia. Sabia porque ele a olhava como se fosse o primeiro raio de sol a irromper no horizonte. A amava de longe, sabendo que tinham vidas diferentes. Provavelmente a amaria por toda sua existência sem nunca pedir nada em troca, nem mesmo que ela ficasse ao seu lado. 

No dia em que o homem decidiu ancorar seu navio e fazer morada na terra por algum tempo, a fada decidiu que iria com ele. Abriu mão de sua imortalidade e poder para seguí-lo em uma vida mundana, porque sabia que não seria capaz de abandoná-lo.

A fada nunca se arrependeu de sua decisão. Mesmo quando os seres humanos, agora seus iguais, trataram-na com maneiras escusas. Mesmo sabendo que seu corpo se cansaria depressa. Porque, ainda que tivesse vivido mil anos, sua vida como mortal fora seu momento mais feliz.”

Minha mãe era um tipo de pessoa rara. Andava pelo mundo com a cabeça erguida, com uma elegância e uma delicadeza que davam a impressão de que ela sempre sabia o que estava fazendo. Nunca vi ela ser rude ou elevar a voz para ninguém, e era respeitada por isso. 

As memórias que tenho dela estão sempre banhadas de luz. Se fosse defini-la em uma cor, certamente seria o amarelo. Vivaz, sólida, aconchegante. Ela tinha o talento de fazer os outros se sentirem tranquilos em sua presença, sem fazer esforço nenhum para tal. Minha mãe tinha essa presença morna que, nos meus olhos de criança, era nada menos que mágica.

Minhas últimas lembranças dela também são bonitas, ainda que tenham uma nota melancólica perpassando-as. Em seus dias finais, minha mãe já não podia levantar da cama. Apesar de tanto eu quanto meu pai estarmos chorosos, na última conversa que tivemos, me lembro de que ela sorria. 

— Não chore, meu amor. Venha aqui, preciso que preste atenção agora, está bem? — disse, me puxando para o seu colo. Sua voz saía baixinho, e ela parecia cansada — Sabe, você nasceu com um privilégio muito grande, grande demais para entender agora. Mas o mais importante é que ele não é completo. Isso você também vai descobrir quando for mais velha — um suspiro pesado escapou de sua boca. Seus olhos marejaram. Foi a única vez em que a vi mostrando sinais de mágoa — As pessoas serão rudes com você, vão te julgar antes mesmo de que uma palavra saia de sua boca. Você vai precisar ser muito forte, meu amor.

— Como você, mamãe? — perguntei, tentando tirar algum sentido do quebra cabeças que ela me apresentava. 

— Algo assim — respondeu, parecendo se dar conta das lágrimas em seus olhos só naquele momento, limpando-as rapidamente — Você vai descobrir sua própria maneira de navegar pelo mundo Ella, mas em primeiro lugar preciso que você seja melhor dos que duvidarem de você. Tenha coragem para continuar mesmo com todas as palavras rudes. E seja gentil. Sempre. Perdoe a ignorância das pessoas, elas não tem como fazer melhor.

Dormi em seu colo naquele dia, pela última vez. O calor do abraço dela ficou em mim por muito tempo, como um fantasma de sua presença. Não era muito, mas qualquer coisa era melhor que o vazio puro instalado nos lugares que ela ocupou. Sem ela, meu pai e eu descobrimos o quão grande e solitária aquela casa ficava.

Meu pai também era um tipo de pessoa rara. Ele era bom em escutar, em aprender pelas experiências dos outros. Até o último dia de sua vida ele estava em busca de algo novo, mais um pedaço de conhecimento para encaixar no trabalho em progresso que era. Se tornava mais sensível a cada ano que passava. Depois de sua morte, ouvi dizerem que ele estivera se tornando um velho sentimental e fraco. Nunca entendi isso. Depois que minha mãe faleceu, ele teve a coragem de se tornar cada vez mais doce, mesmo que doesse mais assim. Seu coração era mais forte do que o da maioria das pessoas que encontrei durante minha vida. 

Minha mãe estava certa. Eu demorei um tempo para entender do que ela falava, em parte por mérito e culpa do meu pai e seu coração maior que o peito. Ele ativamente me protegia com sua presença, e, só mais tarde fui me dar conta, deve ter me tirado de uma dezena de situações que me mostrariam meu lugar no mundo. Não tenho como saber se ter evitado essas experiências teria ajudado ou piorado, e consegui, na maioria das vezes, não ressentir meu pai por suas ações. Havia amor em tudo que ele fazia, até nas coisas que, no fim, não deram lá muito certo.

Ele não poderia me proteger de tudo e todos, porém. Aos doze anos eu já sabia que sussurros corriam ao meu redor, sabia quais olhares me enxergavam como alguém e os que me enxergavam como o outro. Foi com essa idade também, cinco anos depois da morte de minha mãe, que papai decidiu se casar novamente. 

Não sei de quem foi a culpa. Se de seu coração grande e forte, mas incapaz de assumir que os outros poderiam ser ruins. Ou minha, em uma busca incessante por ser tão boa e calma quanto minha mãe foi. Me concentrei na possibilidade de ter irmãs, de que meu pai pudesse se apaixonar de novo, e ignorei o sentimento esquisito que eu tinha às vezes. 

Isso até meu pai sair em viagem de negócios e, ao invés de abrir a porta para recebê-lo de volta, cansado, sorrindo e saudoso, tudo o que recebi foi a notícia do naufrágio do navio em que ele viajava. Foi só então, em meio às lágrimas e um luto pungente demais para ser explicado, que eu percebi de onde a estranheza vinha. Sozinha naquela casa com minha madrasta e meia-irmãs, eu finalmente encarei-as e percebi que olhar recebia de volta. Nunca imaginei me enxergariam como o outro, uma intrusa, na minha própria casa.

Seria mentira dizer que não sabia como tinha acontecido. Eu tinha deixado. Mesmo após a noção devastadora de como minha agora única família me enxergava, as palavras de minha mãe tinham mais força. Então eu entendia e tentava perdoar tudo. Entendia ter que despedir os funcionários por conta da crise financeira em que nos afundamos depois da morte de meu pai. E perdoava que a única para quem não parecia sobrar dinheiro para comprar um vestido novo era eu. Entendia que tivesse que cuidar da casa, já que sabia como ela funcionava, e não queria ver o lugar em que eu crescera se encher de poeira e mal trato. E perdoava que Lady Tremaine, Anastasia e Drizella, que viviam sob o mesmo teto que eu, nunca levantassem um dedo para ajudar. 

E se não perdoasse? E se abrisse a boca para reclamar ou revirasse os olhos? Ora, por mais alto que eu gritasse, a retaliação era sempre mais forte. Em casa ou nas ruas, nos sussurros que não tardavam a chegar aos meus ouvidos. “Aquela coisinha escura, sabia que logo a máscara de dama ia cair” “Onde já se viu, ser tão insolente quando lhe dão casa e comida” “Pelo jeito essa aí não nasceu com a mesma capacidade da mãe de ir contra sua natureza”. Sem meu pai e minha mãe como meus escudos, a construção de vidro que eles tinham erguido para me proteger do mundo ruiu sobre minha cabeça. Minha mãe me deu o conselho certo ao recomendar amenidade, mas não conseguiu me dizer o porque. Não conseguiu me dizer que era porque ninguém ao meu redor acreditava que eu tinha o direito de revidar.  

(***)

— Ellora! — fazia um tempo que Lady Tremaine e as filhas estavam falando alto e rápido, e eu tinha intenção de me manter longe daquela confusão delas, mas não era inconsequente ao ponto de desobedecê-la. Nem larguei a vassoura para ir até a sala. Lady Tremaine não gostava de ter que se repetir.

— Sim? — Drizella e Anastasia sentavam-se no sofá, corriam os olhos por uma carta que, por suas expressões, já deviam estar relendo pela quarta vez. Lady Tremaine parecia um pouco mais composta que as filhas, mas tinha um brilho ávido em seus olhos que me fez questionar a importância daquilo, talvez fosse mais do que o frenesi comum das minhas meia-irmãs.

— Vá até a cidade e chame o alfaiate depressa, antes que o encham de pedidos — antes que ela pudesse continuar ou eu perguntar para que aquilo, Anastasia interrompeu:

— Compre aquele tecido violeta para mim! Vai ficar lindo com os brincos que ganhei mês passado.

— E as fitas bordadas de Madame Baryon! As brancas, vão ficar perfeitas com meu colar de pérolas.

Seu colar? — questionou Anastasia, e percebi que ouviria brigas como aquela com muita frequência dali em diante. 

Lady Tremaine fez um sinal para que eu a seguisse para fora da sala, deixando a discussão das duas para trás. 

— Chame o alfaiate. Se Ollivier não estiver disponível, vá atrás de Sevin. Não aceito ninguém além dos dois. Deixe os tecidos para depois.

— Sim, senhora. Qual é a ocasião? — ela abriu um sorrisinho vitorioso. Havia alguma coisa em sua confiança que chegava a ser assustadora. 

— O príncipe realizará um baile para escolher sua noiva, e todas as moças elegíveis do reino foram convidadas.

— Todas? — não consegui parar a pergunta de escapar da minha boca. Sua expressão se fechou no mesmo instante.

— Todas as elegíveis, Ellora. Vai, está perdendo tempo — disse, encerrando o assunto — E limpe essa sujeira do rosto antes de ir, está parecendo um bicho. 

 Apesar de estar acostumada com comentários daquele gênero, me pegou de surpresa. Parei diante do espelho do corredor, encontrando poeira por toda minha roupa, até no lenço que protegia meu cabelo. Espanei o pó, tentando não pensar muito sobre isso. Não pensar na pele machucada das minhas mãos, no quão opaca minha pele escura tinha se tornado, tão negligenciada quanto o resto da minha aparência. Olhando assim, eu certamente não parecia elegível.

 

 


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