Alvie & Artie escrita por Lyubi


Capítulo 3
No Covil Do Inimigo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/793284/chapter/3

Alvie apreciava a chuva que castigava suas folhagens através do vidro da varanda. Os dedos longos comprimindo os lábios amarrotados numa careta, uma ruga entre os olhos. Às suas costas, Artie e Nina estavam perdidos numa partida de shogi. A senhora vinha tentando ensiná-lo, mas Artie era péssimo, embora esforçado. O aroma de café e chá preenchia a sala quase escura, iluminada apenas pela luz do dia nublado que entrava pela vidraça do quintal.

Após o primeiro jantar muitos outros convites vieram e, embora quisesse distância do vizinho, Alvie não conseguia resistir à boa culinária do cadeirante. Era uma comida extremamente saborosa e simples; Artie reduzia o sal e a gordura, mas substituía fazendo combinações de temperos (e até frutas!) e utilizando a gordura natural das carnes. O maldito era muito bom.

Como um costume que vinha crescendo, eles tinham invadido a residência de Alvie para "um café". Perguntava-se por que tinha de ser espectador e anfitrião daqueles dois. Não era visível que não os queria ali?

A primeira vez que Artie entrou em sua casa fez uma checagem demorada, reparando em todos os detalhes com os olhos impertinentes e comentando que era muito agradável apesar de um pouco desarrumada. Alvie corou pela ousadia respondendo que não tinha convidado ninguém. Mais tarde naquele dia percebeu por que Artie julgava sua casa "desarrumada". A casa do vizinho era super minimalista. Não tinha muitos móveis, era muito clara e espaçosa (também devido à cadeira de rodas) e a decoração apenas pontual com vários detalhes orientais.

A cozinha tinha sido projetada para ele então a pia e a bancada ficavam na sua altura. O banheiro de visitas era comum então Alvie supôs que ele deveria ter uma suíte.

Por algum motivo, eles preferiam invadir a privacidade do recluso ao invés de marcar seus encontros na casa de Artie.

— Blublubluó.

Após mais uma vitória, Nina pediu licença para ir ao banheiro. Artie recolheu as xícaras e as levava para a cozinha. Incrível como já tinha aberto caminho em tão pouco tempo. Afastando os móveis para que pudesse transitar livremente na casa dos outros... Era um folgado!

Artie voltou antes de Nina e começou uma conversa fiada qualquer. Alvie o ignorou totalmente; olhos fitos num ponto qualquer do quintal. O silêncio repentino fez com que olhasse ao redor procurando o vizinho e sentiu os sinais da idade em seu pobre coração ao dar de cara com os olhos muito azuis de Artie bem ao seu lado.

— Rwalzaaa! — esbravejou.

— Larala... — Artie apontou indiferente ao susto que provocara.

Enquanto Alvie ainda o alvejava com os olhos, Artie comentou muito sério que era viúvo. Disse-lhe que tinha sido casado por vinte e cinco anos com uma mulher muito gentil, casaram-se cedo, tiveram cinco filhos, dois homens e três meninas, mas uma das meninas morreu pouco depois de nascer e um dos meninos tinha morrido ainda criança.

Alvie ficou desconcertado pela enxurrada de informações pessoais num momento tão desconexo. Esperou em silêncio para que Artie continuasse, mas Artie parecia esperar que ele dissesse algo.

Nina voltou para a sala perguntando se Artie ainda queria jogar. Artie disse que não, então a senhora despediu-se, pois esperava uma chamada da neta pelo Skype. Artie queria que ela o deixasse em casa? Não, Alvie o levaria mais tarde. Tudo bem.

A porta da frente foi fechada e Artie voltou o olhar sério para Alvie e ele remexeu-se na poltrona.

Artie voltou a falar. Supôs que Alvie era divorciado já que não tinha nenhuma fotografia com a mulher pela casa, mas tinha uma foto com uma garotinha no colo. Alvie desviou os olhos para o quintal e assentiu. Disse que era sua única filha, mas não tinha contato com ela. Artie perguntou o porquê e Alvie avermelhou. Não era da conta de ninguém.

O pentelho comentou que tinha sido contador por toda a vida e foram suas economias e não seu sucesso que o possibilitaram morar num local como o Sunset. Confessou que, como a esposa morreu relativamente cedo, ele precisou criar as crianças e, embora tivesse sido um bom pai, desleixou-se com a própria saúde e só despertou quando chegou a pesar mais que duzentos quilos e perdeu uma perna.

O anfitrião não sabia como reagir às confissões. Percebeu pela primeira vez que Artie não era nada igual aos outros senhores e senhoras do condomínio (e talvez aos idosos em geral) que tinham a compulsão natural de falar sobre sua própria vida e memórias e doenças. Embora sociável, Artie era discreto. E aquela pessoa agradável e gentil e honrada estava se abrindo para um velho ranzinza e bobo. Alvie estava sem-graça.

Após mais uma pausa expectante, Artie voltou às conjecturas. Disse já ter visto alguns figurões virem visitar o vizinho, mas ninguém que parecesse ser seu parente. Estava curioso para saber qual era a profissão dele.

Alvie respondeu abafado que tinha sido ator de teatro e acrobata circense. Relutante, confessou que fez muito sucesso por um tempo e viajou por toda América e Europa. Resmungou que mesmo sendo rebelde e um pouco inconsequente no fundo era muito prudente e investiu seu dinheiro em ações que só cresceram. Disse ter sido casado três vezes, mas amou, talvez, apenas a primeira. Com a segunda teve uma filha que magoou eternamente e com a terceira possui uma dívida e, por isso, ainda sustenta seus luxos apesar do divórcio.

— Rwalzawaza?

Ao que Artie respondeu que não. Estava satisfeito por hora. Alvie queria café?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Alvie & Artie" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.