Alvie & Artie escrita por Lyubi


Capítulo 2
Velha Estúpida




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Para Alvie o dia só começava depois de uma demorada xícara de café coado, forte e sem açúcar, que tomava olhando pela porta de vidro de sua sala e dava de frente com seu quintal. Não era um grande espaço, mas era maior que o da maioria das outras casas do condomínio e, embora não fosse de ficar falando, tinha o maior orgulho por isso. Alvie cultivava todo tipo de leguminosas e ervas ali, tinha até uma construção em madeira onde um pé de maracujá tinha crescido e tomado conta. A horta era a menina dos olhos desse senhor tão recluso e ele passava alguma parte do dia dedicando-se a ela.

Alvie detestava sair de casa para qualquer coisa por isso tornou-se muito bom com computadores e fazia suas compras pela internet. Infelizmente os vizinhos acabaram descobrindo suas artes e durante algum tempo lhe infernizavam pedindo ajuda com o aparelho celular, os antiguíssimos computares e até com antenas de televisão! Logicamente mandou todos às favas e fez crescer sua reputação de mau elemento.

Com um pequeno sorriso torto no canto dos lábios, Alvie acariciava sua gata Marie — e também o próprio ego — ao pensar em si como o badboy que tinha sido na juventude. Passou de uma criança briguenta para um adolescente rebelde e depois um homem teimoso, e ainda agora se via com todas essas qualidades, mas com uma pitada de requinte oferecida pela maturidade. Sentia-se ótimo consigo mesmo.

A outra boa parte do dia era dedicada à leitura. Adorava os escandinavos e Kjell Askildsen era seu escritor preferido. Além dos clássicos, rendia-se também às novelas policiais e de mistério. Podia passar horas e horas sentado na poltrona de couro, imerso num outro universo. Eventualmente precisava ir até a biblioteca devolver os exemplares que lhe emprestavam. O acervo do condomínio não era muito extenso, mas era de qualidade já que todos os moradores tinham contribuído e ainda contribuíam pedindo livros e fazendo doações em dinheiro para que a biblioteca fosse bem abastecida.

Naquela tarde, Alvie trocou seu pijama pelo costume de sair que consistia numa calça social grafite, uma camisa cor pérola, um colete que acompanhava a calça, um sobretudo marrom escuro e calçados sociais preto de bico quadrado. Penteava o cabelo para o lado e cogitava se deveria usar chapéu ou não... Decidiu que não. Vestiu o relógio e colocou a carteira no bolso interno do casaco. Sempre usava casaco; detestava o calor, mas tinha a firme convicção de que se não se agasalhasse o tempo mudaria apenas para lhe dar uma lição. Sabia que frequentemente testava a paciência de Deus com seu gênio, por isso não arriscava. Levava os livros numa valise, pois eram muitos.

A caminhada até a biblioteca que ficava na entrada do condomínio levava menos de dez minutos, mas como num passe de mágica todos os velhos decidiam sair para dar uma volta quando nosso amigo saía de casa e pelo menos três pessoas o cumprimentavam amigavelmente, ao que ele murmurava alguma resposta, e outras duas tentavam puxar assunto, e geralmente Alvie apenas revirava os olhos e saia andando — não tinha tempo a perder. Cada encontro, por mais superficial que fosse, roubava-lhe certa porcentagem de paciência então quando chegava ao seu destino sua face estava completamente fechada e mordaz.

— Blubluobluo!  

Recepcionou-o a alegre bibliotecária da tarde que estava feliz em vê-lo. Nina era uma das residentes de Sunset e trabalhava ali — era aposentada da carreira de professora.

Alvie respirou fundo lamentando profundamente nunca se lembrar de que se viesse à tarde encontraria tal espécime.

Nina era uma senhora negra, gorducha, de cabelos brancos arrumados num coque elegante. Vestia-se com esmero sempre em tons claros com uma nota de cor; às vezes uma echarpe cor de abóbora, às vezes um mocassim amarelo canário. Os lábios finos sempre levavam um tom avermelhado e usava brincos, anéis e colares de ouro fino.

Era risonha e discreta e uma amiga de décadas, mas, na visão de Álvaro, o defeito dela era sua grande capacidade de ver romance em tudo. Adorava novelas clichês e romances de banca... Seu único casamento durou apenas dois anos e foi interrompido por uma doença que levou o marido e a jogou para sempre numa espera eterna de encontrar de novo seu "grande amor".

Gostava de conversar com ela enquanto ela se mantinha longe do assunto cor-de-rosa, então se encostou à bancada para colocarem os assuntos em dia.

Talvez não fosse tão ruim sair de casa. Precisava mesmo passar no restaurante e comer algo "de verdade". Passaria no mercado para reabastecer seu estoque de comida congelada também. Era o que passava pela sua cabeça instantes antes de ouvir a cadeira de rodas se aproximar e imediatamente o fazer criar a resolução de pagar alguém para buscar e levar os livros da biblioteca.

— Laralá — Artie cumprimentou.

Nina levantou já que sentada atrás do balcão não podia ver o cadeirante. A mudança na expressão da senhora era quase teatral: as sobrancelhas arquearam de surpresa e desceram para que seus olhos se comprimissem numa expressão amável; o sorriso tinha crescido sem mostrar os dentes; os ombros tensos e as bochechas coradas visíveis mesmo na pele escura.

Alvie rolou os olhos enquanto a bibliotecária ansiosamente recolhia os empréstimos de Artie e conversavam sobre uma nova encomenda que já deveria ter chegado. Nina que normalmente era tão elegante, saiu de seu posto tropeçando no pé da mesa e pedindo desculpas por ser tão desastrada.

Sozinhos, Alvie olhava fixo para uma estante aleatória enquanto Artie o encarava sorrindo.

Detestava mais do que tudo nesse mundo aquele olhar azul muito vivo que parecia faiscar. Detestava mais do que tudo nesse mundo aquele sorrisinho condescendente que parecia enganar todo mundo. Por Deus, como detestava seu vizinho! Arrastou os olhos escuros para o azul e o sorriso dele pareceu se alargar.

Artur era seu vizinho há muito tempo, mas tinha chegado em Sunset bem depois dele. Rapidamente tornou-se amigo de todos. Era educado, gentil e ativo. Era quase dez anos mais novo que os seus setenta e três, mas não parecia devido à calvície que já tinha levado quase todo o topo de sua cabeça grisalha. Tinha algumas sardas, o rosto cheio era um pouco flácido. Todo o seu corpo parecia ter emagrecido bastante, mas não era magro. Era um homem alto e mesmo na cadeira de rodas isso era evidente. Tinha perdido uma perna para a diabetes, mas dizia ter um metro e noventa. Em fim, Artie poderia passar despercebido se não fosse aquele olhar elétrico que parecia esconder qualquer zombaria e a voz grossa, jovem, que sempre falava num tom calmo.

— Rwalzá?

Perguntou brusco o que Artie estava olhando.

— Laralaralá?

Artie retrucou que estava sendo olhado também. Alvie desviou o olhar.

Um segundo depois estava a caminho da porta dizendo que precisava pedir o jantar e então Artie perguntou se ele não aceitaria jantar na casa dele.

Alvie arqueou uma sobrancelha questionando o porquê do convite.

Artie sorriu dizendo que estava namorando uma das morangas do vizinho e sabia fazer um ensopado maravilhoso.

Alvie estava pronto para declinar mais um dos inúmeros convites, mas Nina surgiu trazendo a encomenda de Artie e engatando o assunto de que finalmente provariam os dotes culinários de Artie.

— Blublubluooo!

Artie sorriu pedindo que estivessem em sua casa às dezenove para o jantar e emendou dizendo para Alvie que iria na sua casa às cinco e meia para colher a moranga e escolher algumas ervas.

Quando Artie saiu para encontrar sua acompanhante do dia, Alvie explodiu dizendo a Nina como o vizinho era folgado e intrometido, afinal, não o tinha convidado para sua casa. Mas Nina estava em outro mundo, suspirando.


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