Regras de Sangue escrita por Moriah


Capítulo 2
Regra Número Um: Você deve sorrir.


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora gente, eu estava esperando esse banner maravilhosooooo da Dinasty do blog Amazing Desings, e vocês viram essa capa linda que a @_reaper (conta do Spirit, linda) fez? Gente eu fiquei tão apaixonada, só sei babar nesses talentos: muito obrigada a vocês de novo, gente ♥



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Regra Número Um

Você deve sorrir

 

 

É sempre de bom tom ressaltar a finalidade de cada ato e palavra dita — ou algo assim, eu não lembro exatamente das palavras de Al. Provavelmente eu não lembro porque perdi boa parte dessa aula observando como ela tinha a mania de apontar os dedos e balançá-lo todo o tempo, sem cansar. Sempre com unhas bem pintadas de vermelho.

Vermelho, a cor de Suvi, bem diferente dos azuis, pratas e dourados que enchiam os olhos de Ivier, onde serve. Onde nos leciona, agora.

Acho que por isso, dando o braço a torcer, resolvi voltar ao princípio dessa história. Quando uma garota foi dada como oferta pela sua província e poucas pessoas se importaram com isso. Quando o meu caos pessoal começou.

♔ ♕ ♚ ♛

— A selecionada possui quantos irmãos?

O homem estava com frio, encolhido perto do fogão a lenha da cozinha. A voz era arrastada e lenta, como é de se esperar de alguém que passa o dia fazendo as mesmas perguntas em diferentes climas de um país.

Lancei uma careta para Sky, a fossa de minha irmã, que por algum motivo não crescia havia uns três anos e ainda parecia um filhote novo demais, ela mexeu os bigodes antes de voltar a dormir.

— Três.

Minha mãe estava sentada ao meu lado, segurando minha mão, agia com atos tão nervosos que parecia que eu iria partir naquele momento mesmo. Respondia tudo por mim tão mecanicamente que não notava.

— Cecily e Sirius, os gêmeos são os mais velhos, Sirius está na guarda azul — ela suspirou orgulhosa. — Cecily está grávida, casou com um bom rapaz, de família rica, está bem arranjada, mora aqui ao lado, eu poderia chamá-la-

— E Cibele Theresa, a mais nova — a interrompi.

— Sandy, é Sandy — corrigiu a garota de algum lugar da sala.

Mamãe suspira cansada.

— Cibele Theresa decretou, aos doze anos, que iria mudar o nome. Todos deviam chamá-la de Sandy, da para acreditar nessas crianças? Tão dadas a-

— Cibele... — murmura o homem, anotando tudo em seu notebook. Eu nunca havia visto um notebook tão longe da capital e com certeza nunca havia visto um tão próximo. O barulho que o homem fazia ao digitar apressadamente era quase uma tortura e eu estava começando a me sentir enjoada com toda a situação.

Todo este encontro me deixava desconfortável em níveis extremos. Tudo o que ele perguntava, já sabia, estava tudo ali na tela daquela máquina. Ele achava mesmo que eu mentiria meu nome? Minha idade? Meu dom? Aparecera tudo na TV para todos os reinos verem.

Os dados apareceram rápido na tela, tempo o suficiente para você reconhecer a foto e o nome da pessoa, ignorando a idade, a província e o dom.

Astrea Howard — 21 anos — Dimer — Ar

Um curto vídeo meu sorrindo aparecia na tela, do dia do meu aniversário, provavelmente para dar uma sensação de alegria ao ser escolhida. Era estranho de ver: meus lábios se curvavam para cima e meus olhos se desviavam para minha mãe, atrás da lente que, na época, me motivava a falar algo para a câmera de Sandy.

— O senhor aceita algo para beber? — ofereceu minha mãe, vendo o homem limpar o nariz com a manga de seu fino casaco. Haviamos oferecido a ele um dos blusões que Sirius deixara para trás, mas ele veemente rejeitou, algo sobre não poder aceitar. — Temos café e chás que eu mesmo cultivo, dentro de casa, claro, no sótão, porque aqui é muito frio, o senhor sabe, e no inverno Dimer mata tudo o que plantamos, mas imagino que o senhor saiba já que-

— Um café, um café estaria bom.

— Muitas outras selecionadas? — perguntei.

— Outras duas senhoritas, sim.

Ele não me olhava muito e parecia sempre estar fugindo dos meus olhos, parecia desgostar tanto quanto eu em onde sua visita me levaria. Esse era o único movimento que me fazia não odiá-lo completamente, pois de resto ele agia como se eu estivesse indo para alguma excursão escolar e não para os Jogos Azuis e isso me incomodava muito — não por mim, mas pelas jovens de dezenoves e vinte anos que viram seus sonhos serem destruídos e pisoteados por homens como esse. Insensivelmente.

Quando pensava nessas “jovens” lembrava da noite anterior, após o jornal anunciar meu nome. Vídeos sorrindo de todos os ângulos, cores e perspectivas continuavam aparecendo na tela e nós fingíamos prestar atenção na garota de cabelos raspados, na outra garota da capital, um vídeo após o outro de sorrisos fora de contextos que nos faziam parecer felizes, completas e animadas para o futuro iminente.

E não arruinadas como estávamos.

As idades me apavoravam. Com dezenove anos esperasse que uma garota esteja desesperada para arranjar algum emprego, ir para a capital e construir uma vida independente. Quis chorar por essas garotas, porque Sandy logo se tornaria uma delas e porque eu já havia sonhado estes sonhos. Quis chorar porque Sirius não estava e eu gostaria de poder demonstrar fraqueza ao menos para a única figura masculina de minha vida. 

Não podia desmontar na frente de Sandy e mamãe.

— Alguma doença sanguínea, congênita, hereditária? — o homem retoma as perguntas enquanto minha mãe prepara seu café.

— Não.

— Alguma fobia, alergia ou doença que gere problemas respiratórios?

Eu gostaria de mentir, pensei em esconder algo tão pequeno como o medo de lugares apertados que viera e fizera morada sem nenhum motivo ou trauma na minha vida desde os onze anos.

— Não minta, senhorita Howard.

Eu cerrei os olhos. Por quê? Como saberia?  

— Essas perguntas servem para que a vida no castelo se adeque ao seu modo para seu próprio bem estar.

— Tenho fobia a lugares fechados e sofro de sinusite nas mudanças de climas.

— Toma algum medicamento?

— Para sinusite.

— Qual?

— Meus chás — mamãe surgiu com xícaras quentes e grandes de café para mim e o senhor em minha frente — É feito com álcool puro, cebola cortada e batata. Ela passa algum tempo cheirando e se sente renovada, não é Astrea? Bem, aprendi essa receita com meu marido, sabe? Ele sempre velejou muito e esses são ingredientes que não faltam em qualquer navio.

— Certo. Álcool, batata e cebola.

— E mel, caso queira tomar — completou minha mãe.

— E mel — murmurou ele, enquanto colocava repetidas colheres de açúcar em seu café até virar um melado. Nojento.

O homem – que se chamava H. Carpenter segundo o adesivo em seu notebook – perdeu bons minutos apreciando o calor que o café trazia, se permitindo descansar em silêncio por algum tempo e tomando coragem para a próxima pergunta que me faria. Que não era nada demais para garotas na minha idade, mas sempre seriam algo demais para mães de qualquer idade.

— A próxima pergunta, bem, ela é a última e tende a ser um pouco constrangedora — ele começou a corar e apertar ainda mais a xícara em suas mãos — preciso saber se a senhorita ainda é pura.

O silêncio foi bem curto, mas aterrorizou o homem – não sei dizer se temia olhar mais para minha mãe do que para mim.

— Se ela é o quê? E que diz respeito isso a qualquer um?

Todo tom suave e jeito hospitaleiro sumiram de Molly Howard e seu jeito nervoso se transformara em veracidade, era selvagem e terreno e eu chacoalhei meus próprios ombros lembrando-me de como ela podia ser amável e assustadora desde sempre. Oras, estavam me levando para uma arena e importava se eu tinha aproveitado alguns minutos de prazer carnal antes disso?

— É... bem... en-entenda senhora Howard: ela não poderá se casar com o príncipe não sendo pura, é uma das regras.

Mamãe respirou bem fundo como quando aos oito anos eu quebrei um vaso de sua família e Sirius me dedurou — depois de eu mentir para ela.

— Minha filha poderia ter transado com esse vilarejo inteiro e seria mais pura que o seu Pri-

— Mãe.

Eu admirava esse jeito dela, mas neste instante ela estava a um passo de cometer um crime contra a Coroa. Você sabe, aquela baboseira de não insultar seu monarca tão gentil e bondoso. Blábláblá. Nojentos. Carpenter coçou a garganta. Até esse momento eu estava tentando não rir de mamãe, mas lembrar o que ele havia dito gerou uma raiva silenciosa sob minhas veias.

— Como isso funciona? Digo, mato umas garotas e então na noite de núpcias descobrimos que não é tão apertadinho quanto à família real espera?

— Astrea!

Agora Carpenter estava vermelho e um pouco incomodado.

— Haverá exames. Por isto é aconselhável não mentir para a Coroa.

— Então — cerrei os olhos — o que acontece se a selecionada mentir?

— Obviamente não participará dos jogos.

Aí está. Eu facilmente encontraria alguém meio bêbado e totalmente disposto a satisfazer suas vontades comigo, eu poderia ser boa nisso, eu poderia conseguir até um pouco dinheiro... bem, dinheiro não e provavelmente teria que pagar a pessoa para não falar sobre as insígnias, mas era um bom preço. Tudo poderia ser arranjado.

— Senhorita Astrea, caso não seja pura e minta sobre, isso será anunciado para a mídia e você receberá uma pena de cinco anos sem poder usar seu dom, o ar, como consta na sua ficha e, nessa hipótese, não será nada bom se pegarem você utilizando seu dom, pois mentir para a Coroa é crime. Caso seja sincera e admita não ser pura-

— Virgem. Diga virgem, para de falar sobre pureza. O que qualquer um de nós sabemos sobre isso? — desabo e ele se assusta. Não gostava de me imaginar como “pura” apenas por nunca ter deitado com alguém. Vinte e um anos é uma idade onde já se espera um ou dois corações partidos e algumas boas histórias de cama, mas mesmo sem nunca ter dormido com qualquer pessoa a palavra pura estava longe de se adequar a minha vida.

— Caso admita não ser virgem — ele corrige, começando a dar sinais claros de irritação — terá o dever de escolher outra pessoa para participar dos jogos em seu lugar, desta província. Se mentir dizendo que não é pu- virgem — coça a garganta outra vez —, apenas para não participar dos Jogos Azuis, será executada por traição não querendo colaborar com a Coroa.

A Coroa isso, a Coroa aquilo. Eu não poderia jamais indicar alguém, eu teria esse direito, eu sei que minha mãe e Sandy pensam nisso agora: em tudo que fizeram comigo, em como me deram como oferta sem pestanejar, em como foram injustos, machistas e malvados. Em como elas me mereciam e eu merecia elas, em como os Howard dependiam de mim, mas no fim nenhuma garota tem culpa da sociedade em que se encontra e fazer alguma outra menina pagar pelos atos dos homens da pequena aldeia seria injusto e ineficaz, além de imensamente perigoso para as Howard.

— Eu sou virgem.

Então ele levantou os olhos. O senhor Carpenter me olhava com pena.

Quando você está morrendo as pessoas sempre tentam ver benevolência em você. Ele estava tentando transformar, dentro de si, aquele meu gesto sincero em algum tipo de heroísmo. As pessoas pensam que o resto dos seus dias é uma grande reflexão de tudo que foi e pode ainda ser, que você vira repentinamente um poeta.

A verdade? As árvores continuam sendo árvores, o céu continua sendo acima e você ainda não pode voar. Coisas assim, elas continuam iguais mas ainda assim te afetam 10x mais. As cores de sempre machucam os olhos e as músicas favoritas não são mais tão legais. Todos os conselhos recebidos se perdem. Nada importa mais.

A carruagem nem mesmo havia sumido de vista na estrada e os enjôos vieram, opressivos. Foi a primeira vez que o peso de ter sido oferecida como selecionada caiu sobre mim, meu aniversário havia sido há três meses e agora uma insígnia estava vindo. A febre viria na noite seguinte e as dores começariam avassaladoras desde o primeiro instante de aparecimento até o fim. Eu visitaria o inferno mais uma vez.

H. Carpenter agradeceu o café, relembrou que enfermeiras viriam recolher sangue e testar meu dom e entrou na carruagem preta sem olhar para trás. Dali três dias seria eu. Eu olharia para trás até que Dimer sumisse. Agora, que ele já estava longe, repassei toda sua visita até suas últimas palavras:

— Sorria, menina. Você foi oferecida e é isso que eles pedem em troca: sorria como se sua família dependesse disso — eu soube então que eles dependiam.


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Notas finais do capítulo

Espero que vocês curtam, cansativo, sim, desculpem. Eu só não quero me cobrar demais :c



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