Dê-me a sua mão escrita por Mary


Capítulo 4
4. Letícia


Notas iniciais do capítulo

Avisos: a Lety fala palavrão e manda a real. =)



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Desde que recebi alta, trabalho diretamente de casa, então passo a maior parte do tempo de pijama, só troco de blusa e dou uma ajeitada no cabelo quando apareço em videochamadas. Meu humor oscila, o que em tempos de quarentena não é algo de outro mundo. Quando entrego minhas atividades e tenho tempo livre, evito os noticiários ou pelo menos restrinjo as fontes das quais vou me nutrir porque, sinceramente, não aguento mais ouvir falar em Covid.

Não vejo meu pai pessoalmente desde oito de março, apesar de nos falarmos todos os dias. Felizmente, ele está bem, tomando todas as precauções, obedecendo ao isolamento social. Ninguém pode mensurar o tamanho da saudade que sinto. Com honestidade, quando o pior passar e estivermos mais seguros, quero um abraço bem apertado, daqueles que de tão calorosos curam coração partido.

Estamos todos vivendo um dia de cada vez e experimentando algo que não esperávamos nem nas piores conjecturas possíveis para o ano de 2020. Eu planejava mais do que viajar nas férias e pedir a Babs para ser minha esposa porque gostaria de promover o casamento de princesa que ela sempre desejou ter, pensar com carinho em cada detalhe porque ver o brilho no olhar da minha amada recompensa qualquer sacrifício. 

Ei, você. Estou bem atenta a esse seu olhar de deboche, acreditando que sou uma safada pervertida que não posso ver mulher na frente que já estou dando em cima e enviando nudes. Não me confunda com macho escroto e sem noção. Obrigada, de nada.

Não tenho medo de ser indelicada, não sou brigadeiro para agradar geral e tem gente que não gosta de brigadeiro, paciência. O povo anda tão chato que agora discute por inutilidades, só pode ser falta do que fazer.

Cito algumas: aquele velho clichê dos haters das pobres uvas passas no fim de ano (foda-se, eu amo passas), o feijão se coloca por cima do arroz, vão pra casa do caralho, colocando por cima ou por baixo, vai virar merda do mesmo jeito; doce de leite é melhor que Nutella. Os dois são ótimos, criem vergonha na cara e deixem de ser infantis. É o mesmo que me dizer que sou lésbica porque não encontrei o cara certo porque volta e meia recebo mensagens de caras me dizendo que sou linda demais para gostar de mulheres, que não tenho "cara de".

Espera... como assim? Como seria "a cara de uma lésbica"?

Bloqueio o boy lixo, mas antes ele lê umas verdades bem ácidas porque Lety Vaz não tem papas na língua. A vivência de uma garota sem referencial no campo de batalha me ensinou a ter a malícia para viver nesse mundo podre. 

No imaginário geral, só porque gosto de mulheres sou frustrada com algum cara que me esnobou e quero atenção, sou masculinizada, odeio o mundo, prego a extinção do sexo masculino, uso cueca com uma meia soquete dentro, não me depilo, engrosso a voz e ajo como um estuprador na surdina, abordando qualquer uma a torto e a direito, sem critério.

Uau, o sujeito me manda uma foto do amiguinho de baixo SEM EU PEDIR e nem se apresenta, sem nem se mancar que mesmo que eu fosse hétero, não gostaria nem um pouco desse tipo de abordagem invasiva e nojenta.

Os tempos mudaram, as mulheres estão se posicionando, se empoderando e se conscientizando de seu valor, de comportamentos abusivos que as prendiam em relações tóxicas, de que muitas vezes foram humilhadas e diminuídas somente pelo fato de serem quem são e, sinceramente, eu não tenho empatia por mulheres que passam pano para macho escroto e apoiam o presidente, minha generosidade não chega a tanto.

Se você se silencia te julgam, se você se posiciona é atacada. Mulher, não importa o que você faça, vão te esculhambar, então, pelo menos seja sincera consigo mesma e ligue o foda-se. 

Desculpem-me os moralistas de plantão, Lety é desbocada. As aparências enganam. Pareço-me sim com aquelas cantoras de MPB da atualidade, toco violão e consigo formular versos melhores do que aqueles caras que falam "sobre ela", que viralizam e viram cultura superficial consumida por quem não lê nada além de 140 (ou 280) caracteres, aprendem a dedilhar de qualquer jeito só para pegar meninas bobas, trouxas, entretanto, são machistas oportunistas que querem se valer desse momento de transformação para aparecerem mais do que as mulheres, se duvidar, são atrevidos a ponto de tentar explicar o que é o feminismo e exigir protagonismo nessa luta. Mais genérico do que aquelas frases que entulham nossas redes sociais com obviedades, é o horóscopo do jornal.

Digressão básica da Lety: faça seu mapa astral completo, se possível. Basta ter data, hora e local de nascimento em mãos. É uma ótima ferramenta de autoconhecimento. Não se iluda com os alarmistas que preveem catástrofes e costumam perseguir escorpião e câncer, mas prever tudo de bom para áries e leão. 

Por esses dias compartilhei sem peso na consciência para as amigas iludidas que não é para cair no conto do feinho cavalheiro porque... bem... a Babs pode explicar melhor do que eu essa história porque sofreu mais os efeitos nocivos da heterossexualidade compulsória... sem mais delongas, tem muito cara que se coloca como o feinho cavalheiro, o príncipe com aparência de sapo, aquele amigo que quando quer fazer aquilo te trata como uma rainha, mas depois, caso você esteja carente e caia nesse conto falido não cumprindo as expectativas doentes e irreais dele ou o deixe na friendzone (aí é que eles esperneiam mesmo), o comportamento se altera.

Estou um pouco rabugenta, não para menos. Babs é minha eterna caixinha de surpresas. Ela me enviou um capítulo bastante forte para eu betar, porém nem me atentei à gramática, fiquei possessa por... Lety, pelo amor de Deus, quando você vai parar de falar pelos cotovelos? Não está vendo que os leitores ainda não sabem do que se trata?

Desculpem, sou leitora ávida desde a infância e me envolvo a ponto de rir, chorar, sentir raiva, querer entrar numa história e resolver a treta eu mesma, então imagina eu ler tudo que minha amada passou e ficar com cara de estátua? Definitivamente, não combina comigo.

O único spoiler que posso dar sobre a Babs é que ela levou mais tempo para o despertar. Apesar de nossa diferença de idade ser relativamente pequena e não um peso para nenhuma de nós, crescemos num mundo pouco acolhedor para os homoafetivos, estudamos em escolas nas quais o assunto era um tabu e os estereótipos complicavam tudo, sem falar que quem destoava muito do padrão pagava o preço por isso. Graças ao meu pai e a minha madrasta, tive liberdade para ser eu mesma sem antolhos cobrindo a visão e correntes me prendendo a mentiras, porém minha amada foi seguindo o fluxo e vivendo de acordo com a cartilha imaginária para ser a garota-padrão.

Cilada, meus amores. E a própria Babs seguirá com seus relatos. Em solidariedade também irei expor situações que precisam ser expostas porque não é justo que nossos agressores sambem na impunidade, precisamos desabafar para que todas as meninas e mulheres que nos acompanham do outro lado tenham consciência de que não estão sozinhas. Sugeri à minha amada que documentasse sua saída (traumática) do armário e utilizasse a escrita para expulsar de dentro do peito todos os sentimentos que ainda a impedem de mostrar todo seu potencial ao mundo.

Eu a amo. Eu a amo demais. Amo tanto que dói não ter um meio de arrancar todos esses espinhos e apagar as memórias ruins que ainda a assombram. Amo a ponto de também compartilhar minha história também, por mais que minha vida amorosa não seja das mais interessantes de se ler. Se depois de minhas advertências, a leitura te atiçar a curiosidade, muito obrigada pela atenção.

Um recado ao presidente que defende com unhas e dentes a moral da família tradicional brasileira (esse troço é de comer?): eu nunca precisei de kit gay não, sou autodidata. Sapatão desde criancinha. Obrigada, de nada. 

— Lety


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Notas finais do capítulo

Obrigada, de nada.



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