Dê-me a sua mão escrita por Mary


Capítulo 5
5. Bárbara




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 Tive uma infância feliz. Nunca fomos ricos, mas meus pais sempre se esforçaram para me dar tudo aquilo que lhes estava ao alcance. Posso não ter aquela foto tradicional vestida de vaquinha da Parmalat (meu trauma de infância) nem marcar todas as fichas do Bingo da Criança Privilegiada, entretanto, me diverti muito e fui amada pelas pessoas que mais me amavam no mundo. A magia sempre se encontrou nas miudezas da vida.

Do portão da escola para dentro, minhas lembranças do primário já estão se esfumaçando, mas eu era avulsa. As garotas populares da minha sala moravam numa parte do bairro onde se situavam conjuntos residenciais cuja arquitetura era padronizada, elas se conheciam desde o berço, as mães eram melhores amigas e ter problemas com a Larissa, a líder do grupo, era decretar suicídio social.

 

Larissa era parda, tinha um corpo desenvolvido para a pouca idade, usava bico de pato no cabelo castanho e crespo cuja marca registrada era aquela mecha descolorida que a cada semana estava de uma tonalidade diferente: às vezes era verde, vermelha, azul, rosa. Ela monopolizava as brincadeiras e delimitava território porque somente suas amigas poderiam ocupar as fileiras dois, três e quatro da classe, as carteiras da frente eram proibidas para os demais. As loirinhas dos olhos claros tremiam na base quando Lari se aproximava.

Aí você me pergunta: onde estava a professora?

Vendo tudo. E de braços cruzados.

Pior, pior ainda. Eu tenho motivo para odiar aquela novelinha infantil que era febre na época: a Larissa era fanática, tinha o CD, sabia todas as músicas e coreografias de cor e, claro, nas brincadeiras era a protagonista e cada uma de suas amigas, uma das internas do orfanato.

Quando eu entrei no colégio e tentei socializar, inventaram o nome de uma interna e mais tarde tomei conhecimento de que a personagem nem tinha entrado na trama, ou seja, a abelha-rainha já demonstrou claramente que não queria a minha aproximação.

A terceira série foi menos solitária porque naquela turma cheia de meninas eu encontrei duas excluídas, em partes, por destoarem do padrãozinho, por serem moradoras de uma região mais perigosa e não tirarem notas boas. O caso da Karla era pior porque ela tinha déficit de atenção e a professora não demonstrava a menor empatia, apenas fazia comentários que diminuíam (e muito) a garotinha.

Ana e Karla eram melhores amigas e quando eu entrei no meio do ano, depois de me mudar de bairro, elas foram as únicas que me acolheram sem imposições. Sentávamos na primeira fileira e andávamos juntas no recreio. De mãos dadas. No dia do brinquedo, nós trazíamos nossas Barbies de r$1,99 —bendito tempo em que numa loja de r$1,99, TUDO custava esse preço — e brincávamos. Eu ganhei de aniversário uma boneca sereia, de cabelos azuis. A cauda dela era de um tecido muito bonito e dava a impressão de mudar de cor.

A bem da verdade, eu detestava quando a professora não dava matéria porque a Larissa, quando não trazia o rádio de casa, ia até a coordenação e colocava um CD de Sandy e Júnior, dançando Ligado em Você sem parar, até tocar o sinal. Aquela música me dá mais calafrios e sudorese que a trilha do plantão de certa emissora de televisão. 

Ficavam as populares dançando em frente à lousa e os outros alheios àquilo tudo. Havia grupinhos menores, como o meu, porém sem expressão alguma. Ninguém podia ouvir Spice Girls, Hanson, nem os outros sucessos que não fossem aquela música em especial.

Eu gostava do Dia do Brinquedo porque pelo menos Ana, Karla e eu podíamos descer as escadas e brincar no pátio com as nossas bonecas ou mesmo papear, fosse para falar mal da Larissa ou tomar um ar. Se chovia, dava para ficar no pátio coberto, onde também funcionava o refeitório.

O início do ano letivo de 1998 foi soturno porque chovia a cântaros, eu bem que queria faltar, mas minha mãe nem me deixou terminar de falar. Chegando ao colégio, atrasada, para variar, levei uma bronca feia da professora e não consegui pegar um lugar bom. Esquadrinhando a classe, procurei por Ana e Karla. Ana logo me reconheceu e acenou, porém não havia sinal nenhum de Karla.

No recreio, chorando, Ana contou:

— A Karla reprovou e saiu do colégio!

— Não!

— Ela está estudando de tarde agora...

Sem saber o que dizer para consolar Ana, dei um abraço nela, queria lhe dizer que não estava sozinha, que ainda tínhamos uma a outra e que volta e meia poderíamos ir até a saída do novo colégio de Karla para matar a saudade, o que certamente ela fez, só não me incluiu.

Karla gostava da escola, apesar de a professora tratá-la mal, pois tinha a Ana, elas estudavam juntas desde o pré, só precisou sair porque a instituição já vinha promovendo uma reformulação, extinguindo as vagas para o primário e a nossa turma era a última a oferecer vagas para a série que seria retirada no ano seguinte. Em 1996 o colégio tirou a primeira série, em 1997 a segunda, em 1998 a terceira, assim seria para que no ano 2000 houvesse a inserção do colegial no turno matutino, enquanto os alunos do ginásio estudariam no vespertino.

Ana e eu num primeiro momento continuamos conversando, porém ela era meio blasé. Tudo bem, eu não era a Karla, nem pretendia fingir ou tomar o lugar da outra, mas vinha me esforçando para ser uma companhia agradável. Notando que não era correspondida, troquei de lugar na classe e pensei que minha dignidade valia mais.

Quisera a Bárbara de dez anos atrás ter a percepção que a de dez anos de idade tinha: saber se retirar quando não é bem-vinda.

Eu não falava com meninos, eles eram em poucos também. As outras garotas já tinham suas panelinhas e as que andavam sozinhas não queriam olhares de dó, entretanto, Larissa farejou em mim um grande potencial para ter diversão naquele ano. 

Passei semanas recebendo cartinhas de amor do Renato, o filho da diretora. Ingênua, eu acreditava que o meu irmão mais velho estivesse certo: muita implicância era sinal de paixão. E como aquele moleque implicava comigo, não está escrito a paciência que tive para não dar uns sopapos nele. Se eu desse, me colocariam na rua. Esqueceram-se de que a Larissa e o Renato tinham costa quente na escola e podiam fazer tudo que lhes dava na telha?

Sim, eles podiam perseguir, maltratar e humilhar os outros porque a segurança de que não receberiam a devida punição os fortalecia.

Foi num recreio qualquer que a Joyce, a única amiga da Larissa que tinha caráter, me chamou e perguntou:

— Você gosta do Renato?

— Por quê?

Ela me pareceu constrangida 

— Você gosta dele?

Não respondi.

— Eu não queria que você ficasse magoada, mas não é o Renato que escreve essas cartas, é a Larissa, para tirar com a sua cara!

Ainda bem que eu não gostava dele, senão teria sido uma humilhação ainda maior. 

A Joyce era alta e gordinha, só estava no grupo porque o pai dela era dono de um mercadinho, mas quando ela faltava aula, as outras falavam dela pelas costas. Joy foi a única que ao me ver sentada triste e encolhida num cantinho do refeitório, se aproximou e me ofereceu salgadinho.

Ninguém falava com a Joyce antes disso.

Desde antes de a Ana começar a agir que nem uma idiota, eu já via a Joyce lanchando sozinha no pátio e tinha vontade de me aproximar.

— Ah não, a Joyce é chata! — reclamou a Ana. — Ela é nojenta.

— Vocês já brigaram?

— Eu não falo com ela. Já viu o tamanho dela?

— E daí?

— Ela é ridícula.

— Ela fez alguma coisa pra você?

Ana não me respondeu.

Irônico era que Larissa excluísse Ana e Karla, mas a primeira não tivesse ranço da tirana mirim e sim da menina gordinha que estava sempre comendo alguma coisa e não fazia mal algum a ninguém. Se a filha do dono do mercadinho fosse a líder da patota, o critério de julgamento seria outro. Era capaz de todas começarem a comer até os estômagos estufarem para se parecerem com a Joyce porque com exceção das loirinhas, que pintavam os cabelos com papel crepom, as morenas tinham apelidos fofos. Ah, todas também imitavam o corte da barra da calça do uniforme dela e o jeito que ela amarrava a camiseta de moletom no quadril.

Joyce e eu andamos juntas por algum tempo, até que num dia, do nada, ela disse que não podia mais ser minha amiga e eu fiquei sem entender patavina porque não me conformei com aquilo, não tinha lógica. O peso de Joy nunca me foi um incômodo, eu amava lanchar com ela, fazer trabalhos escolares na casa dela. Eu estava contente em ter uma amiguinha e até certo trecho do percurso, caminhar com ela até nos despedirmos numa esquina, onde eu seguia pela direita e ela, pela esquerda.

Não, eu não deixaria barato perder uma amiga como a Joyce e foi aí que meu coração ficou em pedaços: Larissa inventou para Joy que eu era a porta-voz das fofocas todas envolvendo o nome dela e se colocou como uma defensora feroz da filha do dono do mercadinho, jogando para cima de mim a culpa por algo que eu não fiz.

Joyce, magoada e convicta de que eu era um mau elemento, pediu:

— Nunca mais fale comigo na vida! Não sou sua amiga e nunca mais quero ser!

— Joyce, é tudo mentira... por favor, me deixa explicar!

— É por isso que ninguém gosta de você na sala. — disparou Joyce. — Você é maldosa, fofoqueira, falsa. Você é falsa! Eu odeio você!

Doeu muito ser exposta e humilhada diante da turma toda.

Larissa já tinha muitas amigas, era queridinha da professora mesmo sem ser a melhor aluna, mandava e desmandava na turma e ainda assim não estava satisfeita, se preocupava com o que fazia a grande excluída porque, sejamos francos, o que ela ganhou destruindo minha amizade com a Joyce?

Era o prazer de minar meu território.

Noutro recreio eu viria a saber que Larissa Gonzaga era um monstro disfarçado de uma garota alegre e popular. Tínhamos aula de Educação Física depois que o sinal para o quarto tempo soava e naquele dia a patota do mal decidiu que era muito maneiro abaixar as calças dos outros e sair correndo.

Fui uma das (inúmeras) vítimas. Sádica, quando eu ergui a calça do uniforme, ela abaixou com ainda mais força. Pense no quanto uma atitude dessas denota a pequenez de caráter de alguém que se diverte com uma brincadeira dessas, se é que se pode chamar assim. 

Corri atrás de Larissa porque já vinha sendo massacrada havia algum tempo e suportava resignadamente aquela sucessão de maldades. Eu só pretendia lhe perguntar qual era o problema comigo, se algum dia fiz algo que a magoou, pedir para ela parar com tudo aquilo. As covardes fugiram, mas volta e meia faziam menção de abaixar minhas calças de novo e receosa de ser exposta na frente dos meninos ou coisa pior, dirigi-me até a coordenação e prestei uma queixa.

No último tempo fomos todas convocadas para a sala da orientadora pedagógica e eu, chorando, contei a história verdadeira, visava desmascarar aquela bruaca.

Do lado de fora da porta, olhares ferozes me esquadrinhavam.

— Por sua culpa eu vou apanhar em casa... — choramingou a Jordana, melhor amiga da Larissa.

— Era uma brincadeira, dã... por isso mesmo ninguém gosta de você, você leva tudo muito a sério. — desabafou outra guria.

— Desculpa, mas abaixar as calças dos outros não é brincadeira! — devolvi, convicta de que havia tomado a atitude certa, dar um basta naquele ciclo de maldade gratuita.

Virou um dramalhão no corredor onde se situavam a sala dos professores, a secretaria, a coordenação, a sala da diretora e da orientadora pedagógica. Aquelas diabas estavam agindo como se eu tivesse iniciado aquela brincadeira maldita e de veneta quisesse perder meu tempo delatando as outras por diversão. Essa seria uma conduta condizente com o caráter da Larissa.

A situação ficou mais tensa no dia seguinte, quando eu mal cheguei ao colégio e fui novamente convocada para a sala da orientadora. Na tarde anterior, Larissa, que se fosse devidamente punida, levaria umas cintadas no lombo, mentiu para a mãe que eu iniciei a brincadeira de abaixar as calças das outras meninas e as duas prestaram queixa contra mim. Tendo ela tantas depoentes a favor, de vítima, me tornei ré.

Minha mãe teve de pedir dispensa do trabalho para resolver minha situação porque a entonação da orientadora era bastante ríspida e intimidadora, eu fui ameaçada de expulsão e as desgraçadinhas vagabundas estavam cobrindo o rosto para rirem de algo que até hoje eu ouço quando discuto com minha progenitora. 

Da forma como Larissa descreveu-me em sala de aula, eu soaria a vilã psicopata da novela infantil, aquela que não gostava da paz, de ver os casais felizes, que fazia futricas, armava complôs, perseguia a panelinha e a orientadora nem sequer se prestou a ouvir o outro lado da história, tomou as dores da sua afilhada.

— A Larissa não seria capaz de fazer mal a uma flor. A Larissa é uma menina muito doce, meiga, comunicativa, carismática, simpática, a escola inteira a adora. Eu vi essa menina dentro da barriga da D. Rosângela, já você, eu não sei quem é, de onde veio, mas a sua farra acabou, sua problemática.

Larissa, sozinha, era covarde, não tinha peito para me encarar e resolver as diferenças olhando nos olhos, entretanto, a mãe dela, uma mulher obesa e tão mal-educada quanto à filha, compareceu no colégio naquela manhã e a orientadora "mediou" a conversa entre mães. A minha saiu chorando e na volta para casa me deixou com as costas marcadas de tanta cintada.

Eu só não fui expulsa porque nunca antes me envolvi nesse tipo de baixaria, meu histórico era limpo e a orientadora considerou que era melhor dar o caso por encerrado. 

Sim, até aí nós entendemos, mas... Larissa se tornou uma pessoa melhor? Ela deitou a cabeça no travesseiro com a consciência tranquila? Mensurou a dor que me causou?

Depois de um tempo, minha mãe contou-me que a D. Rosângela era uma mulher pretensiosa, rude, tão maledicente quanto a filha e mesmo quando faltava com o respeito, a orientadora fazia ouvidos de mercador.

— Sua filha tinha que ser internada, é uma maluca... 

Rosângela enaltecia a alta popularidade de Larissa na escola e sinalizava que eu era o extremo-oposto e invejava a filha dela, tentando de formas torpes destruí-la. Aquela situação era tão surreal. A mentora das brincadeiras sem noção saiu como a mártir da história e eu, que fui uma das vítimas, culpada por tudo.

— Que agonia me dava de ver as unhas daquela mulher... — lembrou mamãe. — Não sei como é que consegue limpar a bunda, se é que limpa a bunda direito e ensinou a filha que só se para de limpar a bunda quando o papel higiênico sai bem limpinho... unha feita, cabelo escovado, cara encarquilhada, mas um cheiro de perereca suja... no banho deve ser esse tipo que enche o cabelo de xampu e lava as partes de qualquer jeito...

Na época eu me senti mal por ter visto minha mãe chorar, ter apanhado do meu pai (duas surras num mesmo dia) e porque até eles reconhecerem que a versão de Larissa era uma falácia, fui tratada como se fosse uma delinquente. Fiquei de castigo sem poder ver televisão nem ouvir rádio, ouvir que era uma péssima filha me partia o coração e ir para a escola era pior ainda porque ou aquelas crianças temiam ter o mesmo destino que eu ou eram coniventes com as maldades.

Larissa agia como se estivesse em casa, isso tudo porque Rosângela já tinha uns cinquenta anos de idade e a mimadinha era caçula, a única menina entre seis homens. Aquela garota se esquecia de que em casa ela podia fazer caras e bocas porque mamãezinha atenderia a todos os seus caprichos, mas que na escola se aprende a respeitar o espaço do outro. Se a vida a ensinou mais tarde eu não sei...

Clima para continuar na escola eu não tinha, porém em meados de setembro não havia vaga em nenhuma outra instituição e terminar o ano sem problemas, o jeito era pedir ao Papai do Céu para Larissa fazer de conta que eu era invisível.

Papai do Céu foi generoso comigo e devo tudo também às Spice Girls. Eu assistia à novelinha só por ser algo que quase todo mundo da minha faixa etária fazia naquela hora, mas não era fanática e se olhava para alguém, com certeza era para o elenco feminino. Gostava mesmo era quando meu irmão ajeitava a antena para pegar o sinal daquele saudoso canal voltado para a música e nós acompanhávamos o lançamento de clipes, notícias sobre nossas bandas favoritas. Ah, eu me sentia tão adolescente, que, na boa, achava tão coisa de criancinha ficar dançando a mesma música para a professora.

Ou seja, me aproximei das meninas mais velhas. Elas eram fãs incondicionais das Spice e dançavam no recreio. Num dia eu estava olhando com admiração a coreografia de Spice up your life, uma delas comentou que eu era uma gracinha e eu disse que tinha amado a dança.

— Quer aprender? — perguntou uma delas, que usava cabelo chanel com franja e já era bastante alta para a idade.

— Quero! — respondi, animadíssima.

— Então tá, a gente te ensina.

Foi quando escutei comentários de que "as meninas da 4ªA eram umas entojadas" e para uma boa entendedora como eu, estava averiguado o mistério: elas não suportavam Larissa e as asseclas igualmente imbecis. 

— Não sei o que a Joy vê naquelas otárias... será que ela não se toca que as gurias tiram sarro da cara dela? — retrucou a Marília, que fui saber mais tarde, era irmã mais velha de Joyce.

Para Marília e as outras meninas do grupo eu contei tudo que aconteceu naquele ano e elas ficaram estarrecidas. Expliquei para a irmã de Joyce que eu nunca difamei a garotinha, que Larissa se incomodou com a nossa amizade e colocou em mim a culpa de todos os boatos que faziam o resto da classe detestar Joy.

— Por favor, não conta pra Joyce!

— A Joyce tem que saber da verdade! — protestou Marília. — Senão eu vou expulsa, mas quebro a cara dessa Larissa. Quem ela pensa que é?

— Melhor não, a Joyce pode se magoar...

— Ela vai se magoar cedo ou tarde, Babs. Ou pensa que essa bruaca anda com a Joy por amor? Anda nada. A Joy sempre se queixou que até você falar com ela, ninguém falava. Eu sempre soube que essa Larissa não presta e sabendo de tudo que ela fez com você, junto dois com dois, está na hora de colocar essa sebosa no devido lugar! Não acha, Babs?

Bom momento para explicar o motivo de eu não ser Babi, como muitas Bárbaras por aí. Marília me chamava carinhosamente de Babs e eu acabei gostando tanto que só deixei meus familiares ainda me chamarem de Babi. Para os amigos, sempre fui Babs.

— Só não diz que fui eu.

— Deixa comigo!

As outras meninas me disseram que eu podia confiar na Marília.

Joyce bancou a durona e não veio falar comigo tão cedo, mas desertou da panelinha de Larissa e como uma boa taurina que não levava desaforo para casa, retrucou a megera por cima do ombro:

— Encosta um dedo na Babs que a Marília quebra isso que você chama de cara!

— Quem é Babs? — debochou Larissa, revirando os olhos. — Sua amiga imaginária?

Joyce se aproximou de mim, apoiou o braço direito em meus ombros e prosseguiu:

— A Babs é a minha melhor amiga! Experimenta mexer com ela agora pra você ver!

— Ouviu bem? - quis saber Marília, deixando a doçura com que me tratava de lado para dirigir-se à Larissa, com quem não seria nada amável.

— Eu acho que vocês estão sendo injustas comigo... — gaguejou Larissa.

— A Lari ama muito a Joy, o problema é essa fofoqueira invejosa aí... — acusou Jordana, pois com o olhar de intimidação que Larissa lhe lançou, eu no lugar dela já teria me borrado toda.

— A Lari é da paz! — insistiu outra garota da panelinha do mal.

— O diabo também era um anjo... — comentou Marília, sarcástica.

As amigas de Larissa me encaravam como se eu fosse um verme, mas eu não temi, não só porque Marília e as meninas mais velhas me garantiam segurança e sim porque agora que Joyce estava com os olhos bem abertos para a verdade, eu me sentia de alma lavada, pelo menos uma das injustiças foi revertida.

— Anda na linha se não quiser ficar com o olho roxo... — avisou Marília, afinal de contas, eu não tinha uma irmã mais velha pronta para tomar minhas dores, era mais fácil me constranger, me expor ao ridículo, me maltratar. Joy não precisaria temer porque depois daquela invertida, qualquer arremedo que Larissa ou as asseclas fizessem não passaria despercebido.

Apesar das injustiças que Larissa cometeu contra mim sem arrependimentos, eu a perdoei. No ano seguinte eu mudei de escola e felizmente saí do radar da megera. Mal sabia eu que perto de muitas amigas que tive, Lari e sua corja eram peixes pequenos, entretanto, são histórias para outra ocasião.

Hoje decidi saber por onde anda todo o pessoal.

Se Larissa terminou o ensino médio foi um grande feito porque nem isso ela conseguiu, então, além de maltratar a língua portuguesa e apoiar o presidente, é outra idiota compartilhando fake news, terraplanista, homofóbica, vomitando pensamentos retrógrados e representando mal a nação cristã. Em outubro de 2005, enquanto meus amigos e eu aprontávamos todas no último ano, ela estava parindo a primeira filha e a guria já está "em um relacionamento sério" no Facebook. 

A Jordana terminou a escola, chegou a se formar numa faculdade, mas se casou e para achá-la foi difícil porque o perfil é "de casal" e pelo jeito quem controla a conta é o marido dela, então nem dá graça xeretar, ele compartilha assuntos do Coxa (para quem não é paranaense, sobre o Coritiba, time tradicional daqui) e nem dá graça de olhar, porque para quem era a namoradinha do filhinho da diretora, terminar sendo só a mãe de dois moleques não é o sonho de ninguém, desculpa a sinceridade. Sei que cada um faz suas escolhas e ninguém é fracassado por querer ter uma família e não se formar em Direito ou Medicina, mas essas gurias se achavam as últimas bolachas do pacote, cheias de maltratar os outros, excluir, faziam a gente se sentir um lixo por não ter atributos para integrar a panelinha.

Joyce e Marília terminaram a escola, concluíram o ensino superior e até pós-graduadas são. Agora que o pai já é falecido, continuam trabalhando no mercadinho da família, referencial no bairro, mesmo com a concorrência dos hipermercados e das drogarias 24 horas.

Joyce emagreceu tanto que ao menos que alguém a marque numa foto "queima filme" (eu entregando minha idade de novo), ninguém nunca imaginará que ela já foi gordinha. Encontrou um cara legal e apesar de estar casada no papel, a festança que seria em abril foi adiada em razão da pandemia.

Marília também já construiu uma bela família, tem duas filhinhas e nenhuma paciência com mimizentos da Geração Nutella, sim, então printei o texto que ela compartilhou sobre as incoerências gritantes desses jovens que querem "mudar o mundo", mas não arrumam nem a própria cama.

Apesar de Larissa, eu tive uma infância feliz. Do portão do colégio para fora, ela não exercia poder nenhum sobre mim, tampouco para minar minha autoestima. Por um lado, essa experiência me deu certa malícia para me defender posteriormente, mas eu gostaria muito de ter evitado problemas. Respostas nunca terei, mas me pergunto quem se tornou o alvo dela depois que Marília empoderou Joy e eu saí da escola?

— Babs


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Notas finais do capítulo

Escrevi esse capítulo hoje, levei um tempo, mas espero que vocês gostem.



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