Amor Cego escrita por Cas Hunt


Capítulo 50
Prova




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Passo algumas noites sem dormir. Foco-me inteiramente em aprender o suficiente de saxofone para devolvê-lo a Samir e acabar o semestre o quanto antes. Quando não estou na aula, estou trabalhando ou treinando o maldito instrumento de sopro. Em certas ocasiões paro em meio ao café, apoiando-me na bancada, o sono quase tomando conta do meu ser.

Falo com Noah como se estivéssemos de volta a quando eu lhe dava aulas. Encontro-o no refeitório, falamos sobre tudo, menos sobre o beijo ou sobre minha espera por ele. Andrea continua curiosa, o olhar afiando na minha direção, Tetsuro tranquilo como se não estivesse acontecendo nada. A cada dia chego mais cansada, desejo mais o dormir que qualquer coisa, porém, a inquietação de não ser boa o suficiente no saxofone me traz a ansiedade que torna-me incapaz de deitar tranquilamente na cama.

Converso, brinco e ajo como se tudo estivesse bem. Após virar a noite tentando acertar uma música no saxofone, sento-me na cadeira de plástico quase adormecendo. Balanço-me de um lado para o outro, grogue. Ficar acordada parece ter me deixado com a temperatura baixíssima, então enrolo-me na jaqueta, os olhos pesando toneladas.

Apoio minha nuca na cadeira de plástico e deixo as pálpebras baixarem, esperando a chegada de Russel e os outros alunos de sala de aula. Escuto a sinfonia tranquila da natureza, comparando sua baixa tonalidade com a música que escrevi. Parecem pouco. Minimamente. Talvez apenas a sensação de paz que me transmitem. Recordo-me vagamente do concurso ocorrer amanhã. Vou ter que pedir uma folga para Nate. Talvez ele...

Bocejo, meu cérebro lento. Abraço a mim mesma, o frio afastando cada vez mais minha consciência da realidade. Sinto que desapareço do mundo por alguns segundos, carregada pelo sono na direção do paraíso dos sonhos. Quero dormir. Por que me esforcei tanto só para passar em uma disciplina? Passo a me sentir estúpida, encolhendo-me.

Sinto uma mão pesando meu ombro. Retirada bruscamente de meu momento de paz, dou um salto, assustada por reflexo. Medo preenche meu peito e olho para a mão ao meu lado antes de erguer o olhar para a pessoa em si, rezando não se tratar de Russel. Lion Cooper me dá um sorriso de canto.

—Russel está em sala. Seu amigo não queria te acordar, mas...

Ele dá de ombros e aponta minha esquerda. Passo os olhos por Noah, cansada demais para sentir algo além de surpresa por estar tão quieto.

—Cai fora — resmungo arrumando a postura.

—Opa, espera aí.

Lion põe uma mecha do meu cabelo atrás da orelha, abaixando-se ao meu lado, os olhos brilhando de excitação e desprezo.

—Se tivesse me escutado no começo do semestre e ficado com a gente, poderia saber como usar um saxofone — ele me olha de cima a baixo — Espero que servir ao cego tenha te feito se sentir uma pessoa melhor.

—Quem.

—Quem o quê?

—Perguntou. Cai fora, Lion. Eu tô tranquila.

—Vadia idiota.

Dou de ombros. Já fui chamada por nomes piores. Massageio os olhos, me questionando se deveria pedir folga hoje também e pagar depois, só para conseguir dormir um pouco mais. Meu estômago revira, minha cabeça começando a doer.

—Elise?

—Tô aqui —resmungo baixinho.

A mão de Noah toca minha coxa. Ele demora e chega até minhas costas, iniciando movimentos circulares. Apoio os cotovelos nos joelhos e espero, o estômago embrulhado. O toque dele sobe e desce pela minha espinha, pressionando levemente, seu calor transpassando o tecido e chegando até a pele.

—Você tá bem?

—Tô. Eu só.... É só sono. Não se preocupa. Quando chegou?

—Faz alguns minutos. Perguntei ao Tetsuro se ele via você na sala, ele me contou que estava dormindo. Não quis atrapalhar.

—Tudo bem. Tá preparado?

—Sim. Graças a você.

Um canto da minha boca se ergue. Fecho os olhos por alguns instantes novamente, tentando lembrar vagamente do sabor do beijo dele. Não consigo. E faz apenas alguns dias desde o que acontecera. Respiro fundo, abrindo os olhos para conferir o rosto de Noah, as sobrancelhas juntas, lábios comprimidos.

—Tá ansioso de novo?

—Um... Pouco. Essa matéria vem sendo a mais difícil pra mim faz anos.

Deslizo minha mão até a sua e a aperto, reconfortante. Ele não se surpreende, não dá um pulo ou me questiona. Parecia esperar que eu fizesse isso. Desvio o olhar, imaginando que por Noah saber que gosto dele deixa minhas ações mais previsíveis. Sinto o polegar dele acariciando as costas da minha mão.

—Você virou a noite não foi?

Junto as sobrancelhas.

—Tá obvio assim até pra você?

—Sua fala fica arrastada quando vira a noite. Tá com dor de cabeça?

—Um pouquinho. Ei. O quê tá fazendo?

—Segura meu bastão aqui rapidinho.

Ele me entrega o que eu jurava ser e chamava de bengala, na minha mão conforme separa as nossas. Afasta-se, inclinando-se para detrás de si, procurando alguma coisa. Fico quieta, esperando e assistindo como o cabelo dele se move levemente a cada brisa suave. Ergue-se puxando um pacote de rosquinhas e um copo grande de café.

—Quando foi que...?

—Imaginei que fosse virar a noite. Então comprei logo. Seu favorito.

Fica difícil não beijá-lo. Meu peito mistura-se em dor e ansiedade. Queria que ele pudesse decidir logo se vai ou não ficar comigo. Antes de pegar o pacote e o copo da sua mão apoio minha testa no seu ombro, inspirando o seu cheiro até ficar queimado na minha memória.

—Obrigada.

De mãos ocupadas, Noah apenas me dá um beijo suave acima da orelha. Dói e arrepia todos os cabelos da nuca. Afasto meu corpo pegando a comida das mãos dele e apressando-me em termina-la antes que Russel perceba. Um gosto amargo na boca, lágrimas nos cantos dos olhos, não sei mais quanto tempo posso aguentar nesse tipo de tortura emocional.

Era assim que Samir se sentia?

—Muito bem! —Russel fala alto — Vamos começar com instrumentos de cordas, depois os de sopro. Se ninguém se voluntariar eu aponto quem será o primeiro.

O homem põe a mão na cintura, aguardando, sua expressão o misto de tédio e cansaço. Bufando, o professor ergue as sobrancelhas, os ombros caídos ao passar o olhar pelos alunos na sala.

—Smith — chama — Começa.

Um homem pequeno, de cabelos cacheados, do qual nunca prestei muita atenção, ergue-se do banco bem na frente de Russel. Carrega um violoncelo e seu arco, corpulento, costas largas. Sobe as escadas para o pequeno palco e senta-se no banquinho centralizado no mesmo. Russel desce. Estranhamente, não sinto nada além de desprezo pelo cara sentado com o violoncelo. Curvo a cabeça, tentando lembrar. Será se já fiz inimizade com ele em algum momento? Bem possível.

—Dedico essa música ao meu parceiro do semestre passado — Smith ergue a cabeça e aponta na direção de Noah — Graças a ele tive que fazer uma matéria simples duas vezes.

Daniel. Se não começar a tocar em 3 segundos te desclassifico e vai ter que fazer a matéria pela terceira vez.

Engulo o seco, recordando-me imediatamente a razão de não ter gostado dele. Viro a cabeça para Noah, que está impassível. O bastão de volta á sua mão, o óculos escuros não demonstrando um resquício sequer de dor ou arrependimento. Sentada ao lado dele, passo os olhos pelos outros alunos, me questionando quando vou poder dormir de novo.

***

Conforme os alunos terminam a prova, alguns se sentam nas cadeiras novamente para assistir ao resto e outros retiram-se, exauridos. Russel ergue uma parede de pressão tremenda por cima da apresentação, avaliando de cima a baixo desde a postura, até a melodia e o toque da pessoa no instrumento. Ronda-a no palco e fora dele, quase como um animal perseguindo sua presa.

—Parker — Russel chama riscando outro nome da sua prancheta — Sua vez.

—Onde?

—Esquerda do palco.

Noah assente. Se levanta da cadeira calmamente e prossegue até o piano. Assisto-o vagarosamente desviar-se dos corpos e cadeiras, localizar-se na sala e subir as escadas batendo em cada degrau antes, conferindo. Chega até o piano seguindo as instruções de Russel. Senta-se no banco, põe o pé em um dos pedais e ergue a tampa, deixando o bastão ao seu lado. Sorrio, finalmente ele parou de colocar em cima do instrumento.

—Pode começar quando quiser — Russel cruza os braços sobre o peito.

Noah assente. Arruma a postura. Põe os dedos superficialmente em cima do piano. Não tenho ideia de que música ele escolheu, mas aguardo, apoiando o queixo no punho, olhando para ele como se só houvesse Noah na sala. Quase sinto-me de volta aos momentos de tarde onde o ensinava piano, mandava-o reproduzir um conjunto de notas até soarem perfeitas e só o assistia treinando. Meu peito era preenchido com uma sensação de... Conforto. Comodidade. Poderia passar o resto da vida apenas o vendo tentar tocar.

Ele começa. De início fico confusa, a estranha semelhança de acordes. Ergo as sobrancelhas ao identificar a música que toquei, uma das minhas primeiras composições, aquela que ele disse ter sido a que o fez me reconhecer. O mundo parece ser congelado, ao meu redor o nada, e na minha frente, Noah, tocando as notas que juntei em uma criação fraca, como se tocasse meu coração a cada tecla. Cada som. E meus olhos ardem, o peito apertado em facadas a cada batida.

Encolho-me, muita dor para conseguir levar a frente.  Desvio a atenção dele para as janelas. Não sei dizer se faz esse tipo de coisa de propósito, dar-me esperança ao ponto de doer pela racionalidade me puxando de volta a realidade. Noah é meu amigo. Não posso chama-lo de nada diferente. Ele termina e meu estômago embrulha.


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