Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 9
East Blue, Goa Kingdom (Dawn Island)


Notas iniciais do capítulo

Boa tarde, companheiros sindicalistas!
Prossigo em greve e me nego a retomar minhas atividades enquanto minha presença não for oficialmente solicitada.
Até que isso ocorra, meu serviço de comentários ácidos está suspenso.
Passar bem.



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 O caminho do “lixão” para a cidade — isto é, do ferro-velho em torno das muralhas para a capital — foi regido por apenas um sentimento: o arrependimento. Não só por ter deixado Bertruska sozinha na loja no dia anterior, ou por ter fraquejado na hora em que viu Flint ser contaminado pelas roupas feias; mas sim porque, mesmo sabendo que era uma má ideia, não pôde impedir que sua capitã fosse para o meio do mato, sob a tutela apenas de um criminoso que conhecera a não mais que um dia e uma mulher completamente desvairada. Acima de tudo, estavam agora os três em um ambiente desconhecido, numa busca infundada por uma mulher tão desequilibrada quanto sua guerrilheira, mas que, no máximo, só faria um mal para eles: levar o recém-admitido médico da tripulação embora (e isso não era de todo ruim). No melhor dos cenários somente a capitã voltaria e enfim retornaria a paz — ao menos até a pirralha encontrar outros lunáticos carismáticos ou mendigos simpáticos.

— Não se preocupe, ela vai retornar. — o cozinheiro afirmou, oferecendo um trago de seu cigarro a gata que, pendurada sobre seus ombros, descansava sob sua cabeça. Flint não desgostava da presença do médico, entretanto, se precisasse perdê-lo para se livrar de Bertruska, o perderia quantas vezes fossem necessárias.

— Agora é o momento de esquecer esses problemas tolos, logo mais teremos dores de cabeças para uma vida. — diz a gata, tomando o cigarro da mão do homem e puxando toda a fumaça que seu (pequeno) pulmão poderia aguentar. Ah, o que não daria por uns quarenta centímetros a mais de altura… Poderia fumar até três inteiros daquele, se tivesse! Mas era gato, e seu organismo não permitia esse tipo de alívio de estresse, infelizmente. — Se voltarem, voltam com mais uma para encher a porra do meu saco.

— Vamos precisar de saquê — riu nasalado, compartilhava do mesmo desespero que a imediata — E muitos cigarros. 

— E você lá tem dinheiro para sustentar isso, engraçadinho? — Belka aproveitou a altura para puxar as bochechas de Flint, esticando-as para o lado com toda a força dos bracinhos miúdos.

— Não o suficiente, mas sabemos quem tem. — sorriu para a gata, sem se importar com a vermelhidão nas bochechas magras. — Nosso granfino não mediu palavras quanto ao seu tesouro. Jóias e uma boa grana. Ele não se importaria se pegássemos um pouco dessa fortuna, veja bem, o acolhemos tão bem ontem…

A gata ficou em silêncio, esperando os ávidos argumentos de seu, nesse momento, melhor companheiro.

— Nada mais justo que os baderneiros pagarem uma taxa a nós, seus salvadores. — Flint conclui, enquanto Belka abre um sorriso maldoso que expõe suas presas. É por isso que ele tinha um lugar no seu barco, enquanto Bertruska e Morgan, não. 

O mau-caratismo define o meio pirata, não havia dúvidas sobre isso. Mesmo assim, dessa vez teriam de varrer (em partes) essa maldade, pois teriam de passar como pequenos cordeiros, se quisessem ter acesso ao portão principal da capital — não iriam saltar de novo, nunca mais

O portão estava cada vez mais próximo e ao longe ouviam os gritos infantis e vozes afetadas das terríveis madames, mas nada temiam, estavam prontos. Munido dos pés as cabeças com as mais temíveis roupas e um trunfo, os elegantes botões da maltrapilha camiseta de Morgan. Aqueles elegantes botões eram a chave para passar sem muitas perguntas: pertenceram a um irrefutável magnata, e agora estavam costurados a camisa de Flint, um homem pobre em toda sua essência. Ele diz: — Coloque o chapéu, irmãzinha

Chegar ao portão dava a gata um embrulho em seu estômago, nada relacionado com o álcool recentemente ingerido, apenas detestava a ideia de voltar para aquele local. Havia sido humilhada e fazia parte de seu preceito nunca mais pisar nos lugares que passou vergonha, com exceção do momento que fosse para destruí-los. Contudo, aquela era uma situação de emergência. Mais que vingança (daquele lugar), desejava um barco.

Não havia um número considerável de visitantes tentando ultrapassar os muros, ao menos não da forma legal — tendo em vista que era consideravelmente fácil invadir, parecia sensato assumir que vários outros também burlavam as burocracias diariamente — e isto significava que não demorariam muito para chegar até os inspetores. Os burocratas irritavam a gata e como toda boa pirata, sentia um grande desprezo por essas sistematizações falhas, que funcionavam apenas para quem tem o mínimo de cachê. A única função desses processos eram desmoralizar os fracos (ou os esquisitos, como em seu caso), uma verdadeira tolice, em seu ponto de vista: sabia melhor que ninguém o quão inalcançáveis eram os ricos, com ou sem sistema.

O “homem da lei”, com toda pompa que lhe cabia, os encarava de cima para baixo (por mais que fosse menor que Flint). Havia nele uma arrogância característica daqueles que acreditam estar no topo, ainda que completamente subordinado a tantos outros. Não encarava face a face, apenas de cima, com o queixo arrebitado e postura superior, certamente pronto para enxotá-los o mais rápido possível e voltar a degustar a miséria existencial. Uma súbita vontade de quebrar-lhe o espírito subia por suas orelhas felpudas. 

— Quem são e de onde vieram? — perguntou aos dois forasteiros, erguendo uma sobrancelha em desdém ao olhar a criaturinha de meio-metro. Dada a diferença de altura, o chapéu cobria a maior parte de seu rosto, então não tinha motivos para destratá-la. No entanto, não pôde deixar de notar uma cauda balançando por debaixo do vestido. 

Belka queria ter respondido grossa, talvez com um “do quinto dos infernos”, mas se conteve, optando por uma resposta polida: — Estamos de passagem. Meu irmão e eu. Desejamos apenas fazer algumas compras. — explica com uma vozinha empostada, evitando transparecer sua impaciência. O guarda torce o lábio e, ignorando totalmente a fala da gata, se direciona a Flint:

— Senhor.  O que desejam em nossa cidade? — indagou para o estanho homem loiro, fitando-o seriamente, como se lidasse com criminosos (não que não fossem).  — Que diabos de linhagem familiar vocês vieram?

— Bom… — Flint suspirou, não queria ter de lidar com aquilo. Ainda assim, depois de um breve momento de silêncio, subiu a coluna de repente e mudou de forma: — Temi que nossa desculpa não fosse suficiente. Essa gata miserável ao meu lado não passa d’uma escrava que adquiri em minhas viagens. 

Belka ficou estarrecida com o que ouviu. Desejou responder naquele instante que não era uma escrava e jamais seria, contudo fora impedida por um pisão em seu rabo: não poderia desmentir, ou não conseguiriam entrar. Teve de, mais uma vez, engolir seu orgulho (e também entrar num estado de meditação para conter a vontade de esfolar o rosto do cozinheiro na parede). 

Por sua vez, o homem pareceu minimamente convencido com a história e fez um gesto com a cabeça para que continuasse. 

— Combinamos dizer que somos irmãos para evitar qualquer imprevisto com a lei, uma vez que ainda não conheço a política quanto a isso por aqui. Entenda, de fato estamos apenas de passagem, não queremos arrumar problemas; apenas viemos abastecer nosso navio e nada mais que isso. 

— Não soube de nenhum navio ancorado no porto da cidade — diz o guarda, ressabiado com aquela afirmação. Queria de toda forma arranjar uma incongruência naquele depoimento (não pelo homem, e sim pela gata). 

— Aportamos do outro lado da ilha, não queríamos causar alarde.  

— E por que causariam?

— Porque, bem… — Flint parou para pensar, casualmente ajeitando sua camisa, a fim de expor os pequenos botões dourados que Bertruska havia costurado mais cedo. — Temo que usuários da Fruta do Diabo não sejam comuns fora da Grand Line. Minha companheira poderia causar alarde, se desembarcasse na cidade, sem alguém para controlá-la. Queria ter certeza de mostrar meu trabalho em domesticá-la para os guardas, assim não haveria dúvidas sobre a segurança de adentrarmos.

O homem então notou os elegantes botões que adornavam a medonha camisa daquele que tentava entrar. Observou atentamente as costuras, impecáveis e para sua infelicidade, aqueles desgraçados não pareciam mentir.

— Entrem de uma vez. E você, tome cuidado para que sua escrava não arranje problemas para nós. Mantenha na coleira. 

— Não se preocupe, ela é limpinha e não tem nenhuma doença — respondeu Flint, caminhando com um sorriso desafiador nos lábios. — Eu não me arriscaria, andando por aí com qualquer bicho sarnento. 

E enfim cruzaram os muros.

Legalmente e em silêncio. Um insuportável silêncio.

Foi um passo; alguns metros; uns cinco minutos sem ouvir uma palavra da felina. 

Quando se viram seguros (longe da entrada, especificamente), por fim, Flint perdeu sua compostura e começou a rir sem parar. Gargalhou a ponto de sentir dor em seus pulmões. O cigarro cobrava tudo nessas horas.

— Não foi minha intenção, escravinha. — debocha com a companheira, tentando puxá-la novamente para seus ombros. — Nós entramos e ficaremos ricos, minha amiga. Isso que importa.

— Não encoste em mim! — Belka dá um rugido, nervosa. Não deixa ser encostada — De que adianta ser rica, se não posso entrar numa cidade sem passar por essa humilhação toda? — seus olhos azuis se apertaram e a esclera ungiu. 

— Adianta porque você pode entrar bêbada, da próxima vez. Cuspir em todos e dançar ciranda sobre os que restarem. — o homem sugere, dando de ombros. Tirou um segundo para acariciar a cabeça da gata por cima do chapéu, ainda rindo um pouco, mas sempre seguindo em frente. — Não há moral que impeça um cérebro derretido pelo álcool de fazer merda.

E sorriu para gata, não havia como ser refutado. O focinho tremeu e a boca vacilou por um pequeno instante, vendo o homem andando em sua frente sem mais olhar para trás. Foda-se. Belka conseguiu retribuir o sorriso. Fechou os olhos e soltou uma risada nasalada, crescendo para um “rá-rá-rá” de volume médio e por fim uma gargalhada.

— Você vai me obedecer sem reclamar ou quer que eu vá até aí encurtar sua coleira, escravinha? — Flint chama, sem parar de andar e sequer se virando para olhá-la; apenas levantou sua mão direita e a balançou para frente e para trás, sinalizando o “vem aqui” mais zombeteiro que poderia fazer sem mostrar o rosto. 

Não recebeu uma resposta, mas parou de ouvir o riso, ao menos. Continuou andando, esperando que a gata o alcançassem correndo ora ou outra, porém, nada aconteceu. Franziu as sobrancelhas. “Tinha sim pernas curtas, mas não deveria demorar tanto”, pensou e, preocupado, se virou para trás. A rua estava vazia, com a exceção de um peculiar ponto cor-de-rosa, que de repente içou voo em sua direção. 

Plaft!

Flint caiu sentado e desnorteado. Em sua frente, a gata ajeitava a “saia” — ou camiseta longa demais — o encarando de cima e de caninos à mostra. Ele bem que mereceu, o chute (ou patada) no rosto.  Aprendeu a se comportar naquele momento. A partir de então, com toda a roupa suja, limpa, os dois puderam seguir em paz, entre as belas ruas da capital. 

Vai curva, volta curva, depois de rodarem distraídos por algumas lojas, sem nem notar os olhares feios das senhoras bem vestidas e dos homens de alta classe quando entravam num recinto, lembraram-se que não vieram para a cidade para vadiar e sim para investigar.  Aproveitariam a “realeza” depois (porque não é sempre que as multidões se abrem em sua passada, independente do motivo); a prioridade era adquirir sua merecida fortuna com o máximo de tranquilidade (e ganho, afinal não iriam avisar a tripulação). De certa forma tiveram dificuldades para encontrar seu objetivo, uma vez que tinham apenas um mapa mental, citado brevemente por Morgan, desta forma cada detalhe era de suma importância. Afastaram-se do centro em primeiro lugar, indo o mais longe o possível da área comercial, fazendo esforço para relembrar os caminhos do qual deviam seguir. Contudo, quanto mais se afastam mais a idealização rui em pedaços: esperavam uma linda mansão ou quiçá um belo chalé, de garbo e elegância, adornado pela mais belas cores e mobília (assim como todas naquele ilha), entretanto seus olhos não puderam acreditar no que estavam em sua frente.

Não tinha guardas observando os arredores, mas, em compensação, era um casebre ridiculamente feio, mal cuidado e passava uma sensação desagradável, como se tudo ali dentro estivesse putrefato. Talvez tivesse sido bonito um dia — a uma década atrás. Mas o que sobrou naquele terreno não dava nem pistas de como era antes e, na verdade, não parecia nem ser um lugar habitável. Confirmando essa hipótese (a de que ninguém morava ali, no caso), havia uma quantidade infindável de teias de aranhas presas nas portas e (carcaças de) janelas, além do gigantesco matagal em frente a porta, mal saberiam dizer quanto da fauna local vivia naquele lugar. Se dizia “casa”, porém parecia muito mais uma caverna, e certamente não fora visitada a ao menos um mês. 

Isso abriam duas hipóteses: ou Morgan estava mentindo quanto estar naquele lugar há três dias, ou então erraram o caminho e, sim, estavam completamente fodidos naquele instante. Não quiseram dizer um para o outro, mas tanto a gata quanto o cozinheiro pensaram também numa terceira opção, onde o médico falava a verdade sobre a casa, mas teria mentido sobre todo resto. Isto é, de fato morava naquela espelunca, e era tão mendigo quanto a vagabunda-azul: trabalhavam juntos e, nesse momento, provavelmente já teriam cortado a cabeça da ex-marinheira e capitã e roubavam seu barco. 

De qualquer forma, em qualquer um dos cenários já haviam metido o pé com força na merda; então... Que mal faria se sujar um pouco mais? 

— Vou tentar arrombar a porta, pode procurar alguma janela aberta? — o cozinheiro pediu para a imediata, ela certamente seria mais ágil no mato do que ele. — Não aceito que estamos na merda do local errado e que aquele merda inventou tudo isso.

A gata apenas concordou com a cabeça e partiu em busca de uma entrada alternativa, enquanto Flint se preparava para descontar toda a raiva que os últimos dias lhe proporcionaram com um único (e fortíssimo) chute: pôde sentir as fechaduras sendo afrouxadas e os parafusos soltando e por fim, caindo ao chão, levantando uma enorme poeira. Não havia nada ali. Apenas móveis muito antigos e empoeirados cobertos com panos, nada ali remetia uma casa. Certamente ninguém vivia naquele local a anos.  Flint xingava aos cantos, invadiram uma casa abandonada qualquer. Para descontar tamanha frustração, chutou o primeiro móvel que viu pela frente (que cedeu imediatamente), dando lugar a uma pilha de madeiras quebradas, parafusos e... ossos. 

Flint conhecia ossos de animais. Ora, era um maldito cozinheiro, afinal! Saberia dizer exatamente de onde vieram só de olhá-los E, bem, não reconhecer nenhum deles como de bicho não era um bom sinal. Eram ossos de gente. 

— BELKA! — gritou desacreditado. Isso invalidava a segunda hipótese, de terem errado a casa. Sobrava um médico doente e, “Puxa, que surpresa!”, um médico doente. 

 A gata chegou exasperada a porta da casa, um grito de Flint era sinal de que as coisas iam mal. 

— Olha essa merda! Me recuso a procurar por mais. Somos uns fodidos mesmo. — ele diz.

Belka segurou um grito. Os ossos não era um problema (ao menos não o maior deles), mas o fato de existirem confirmava o que desde o começo insistiu em falar: deveriam ter matado ambos, o médico e a mendiga, e ido embora em seguida. Ganância de merda, toda essa infelicidade criaria a necessidade de caçar o homem e era tudo que menos queriam fazer. E, no entanto, precisavam do dinheiro de qualquer jeito. Respirou profundamente para criar coragem e determinou:

— Vamos checar o alçapão que encontrei. Agora que viemos tão longe, de nada adianta ir embora de mãos vazias. 

— Você não pode estar falando sério... — suplica Flint, de sobrancelhas arqueadas.

— Estou. E é melhor não reclamar, porque boa parte da culpa é sua

— Nem fodendo. Você quem deu voz para a vagabunda em vez de mim! — exprimiu irritado, sem querer assumir (toda) a culpa. Contudo, antes que pudesse reclamar mais um pouco, recebeu uma chicotada na panturrilha; era hora de calar a boca e obedecer, porque de nada adiantava brigar numa hora dessas.

Complacente, o cozinheiro seguiu Belka até o dito alçapão sem dizer uma palavra durante o caminho. Foram mais uma vez para o lado de fora da casa, e no meio do matagal, uma área se destacava: parecia uma porta de adega, trancada apenas com um grosso cadeado e uma corrente, não parecia difícil de invadir. O mais assustador daquilo tudo — se desconsiderar a casa assombrada e ossos —, era o curioso fato de que ali, e somente ali, o mato estava pisoteado, como se alguém tivesse passado a não muito tempo atrás. Com isso, também foi-se pelos ares a primeira hipótese, que maravilha! Tinham uma resposta, e a prova real estava ali dentro. Bastava criar coragem para abrir.  

Mesmo com o medo de mulheres, Flint costumava ser um homem corajoso na maior parte do tempo. Ainda assim, sentia um hesitar tremendo diante daquelas portas de madeira; não por medo do que iria encontrar, mas sim temendo sua própria reação quando tudo aquilo terminasse (não era bom com emoções).  Belka, por sua vez, tinha certeza de que poderia aguentar o que quer que estivesse ali dentro, entretanto, o seu vacilar de pernas decorria principalmente pelo cheiro desagradável que poderia sentir sem mesmo abrir as portas — podia ser forte, mas seu estômago, coitado, sofria por antecipação.

Com uma boa talagada de ar e a respiração presa, posicionou sua cauda estrategicamente e bateu no meio do cadeado, quebrando-o em quatro pedaços. Por causa das partes enferrujadas, conseguiu fazê-lo tão facilmente que chegou a ser chato: parecia mais desafiador pela grossura. A corrente escorregou da fechadura e, numa atitude eufórica, foi arrancada de uma só vez pela gata. Estava ansiosa para o que iria encontrar ali embaixo, e não ansiosa de uma forma boa (sentia um nó terrível na garganta). Pegou os trincos, fechou os olhos e, finalmente, as abriu. 

Um bloco físico de ar quente foi de encontro a face dos piratas, quase os empurrando para trás. O odor desagradável os encontrou logo em seguida, como um verdadeiro soco; algo que deveria ser somente desagradável expandiu-se naqueles longos dias quentes e agora se tornara insustentável. O mofo se misturou com a putrefação, umidade e cheiro de alergia — a ponto que tinham certeza que nem os ratos conseguiram tolerar e morreram ali mesmo, acrescentando mais um elemento para a insuportável fragrância. Com as respirações trancadas e a força de vontade que somente o dinheiro moveria, invadiram o porão um atrás do outro (Belka, que não era boba, optou por entrar escondida atrás das pernas de Flint, usando-o de escudo para caso encontrassem uma armadilha). Felizmente, não foi o caso. Desceram a escadinha sem maiores problemas, e ao pisarem no chão de terra, só conseguiam se ver enterrados à sete palmos. A luz que entrava era pouca e o cozinheiro, com seus olhos humanos, precisava se acostumar com a escuridão diante de si, mas Belka, como bom gato que era, enxergava um enorme desastre e não pôde conter um gemido de frustração. Uma sala relativamente pequena, com duas mesas de metal e alguns frascos de conserva por cima, isso sem contar os infinitos livros organizados em prateleiras. O cheiro de formol lhe doía as narinas. Após analisar o chão, a gata teve firmeza para se mover (e como lhe machucava colocar as patas naquela imundice!), caminhou um pouco para longe e encontrou um interruptor, ao menos uma boa notícia, haviam luzes.

—  Mas que porra! — Flint praguejou, estava a cada segundo desejando mais voltar para sua cozinha. Não pensou que lidaria com horrores como esse quando decidiu ser pirata. 

Uma iluminação decente permitiu que observassem aquela saleta com mais atenção. Os livros das prateleiras pareciam acadêmicos, com títulos que, mesmo reconhecendo as letras e algumas palavras, não poderiam compreender o real significado — a linguagem parecia técnica e, pelas figuras, assumiram tratar-se de livros de medicina, mas sinceramente não ficaram tentando descobrir por muito tempo. A mesa de metal da lateral estava cheia de potes de vidro abertos, além de algumas gotas de sangue seco e um ou outro recipiente fechado, etiquetado por data e embalsamando um passarinho cada, num líquido turvo que um dia talvez tenha sido transparente. Também, haviam ossos pouco deteriorados, cola e uma porção de desenhos anatômicos (muito provavelmente mapas para a reconstrução das peças). Era um show de horrores, e ainda por cima um muito dos fedidos. Infelizmente, não havia nada de valor à mostra. 

— Sabe, ele jogou a isca e fomos atrás como dois peixinhos — lamentou o homem, coçando sua própria nuca de olhos fechados, claramente desconfortável com a situação. —  O filho da puta foi esperto, separou o grupo, nos tentou com uma fortuna imensurável e agora estamos aqui, para virar passarinho de pote… 

— Cala a boca, Flint! Estou concentrada — Belka adverte. Estava folheando a papelada das mesas e, inconformada, também revirava as bagunças para ver se não achava outra passagem secreta ou esconderijo — Só tem estudo e mais estudo, nada sobre nosso tesouro! 

— Porque, como eu disse, fomos engana-

— “Embora tenha conseguido retirar o úmero por inteiro, tanto a ulna quanto o rádio racharam no processo por conta da deterioração...” — a gata lê em voz alta, por mais que não tivesse o mínimo interesse no que estava escrito; só queria impedir o cozinheiro de falar.

— O que é isto, uma tabela de contagem de corpos? — falou cínico encarando o livro nas mãos da gata. Não desejava nenhuma resposta, apenas queria ir embora o quanto antes, aquele lugar lhe embrulhava o estômago.

— “Mãe. Desde sua morte não houve motivo para abrir a clínica, prefiro abster-me em meus estudos. Serei um criador, o maior dos médicos e o farei em seu nome, se é que a senhora se importa.” — Belka lê mais um pedaço em voz alta, esperando uma reação do cozinheiro — É um diário. Que tipo de homem escreve um hoje em dia? — como Flint não respondeu, então ela continua:

— E ainda digo mais! Não assume a faceta do diário, diversas descrições médicas no meio de desabafos malucos e folhas soltas. Um fracote. Se for para fazer, que faça direito — a gata ralhava, remexendo o livro em suas mãos, enquanto gesticulava irritada. O silêncio de Flint sempre aparecia nos momentos menos oportunos, neste fatídico instante em que precisava de sua opinião, o homem encarava o vazio, em completo e absoluto choque. E por qual motivo? Não tinha a menor ideia. Se ossos não eram o bastante para fazê-lo tremer, o que era capaz? 

O diário pareciam cada vez mais embaralhado; algumas folhas eram rabiscadas por completo, e outras estavam vazias senão por pequenas receitas ou listas (e sabe-se lá para que um homem precisa de receitas senão para cozinhar). Entre linhas riscadas e amassados, a gata notou um estranho padrão nos rodapés: a sequência fora interrompida por números aleatórios e distantes, não como se páginas fossem arrancadas, mas sim marcadas de propósito numa ordem estranha, seja lá qual fosse o motivo. Contavam do um ao vinte normalmente e de repente lhe aparecia um quarenta e dois, sendo prontamente seguido pelo número subsequente ao vinte, numa tentativa de passar despercebido. 

Aquele otimismo não cabia em si — era uma gata com todas as quatros patas no chão — mas dada a situação, só poderia cruzar os dedos (que perdera a anos) e pensar que estava diante de um código.

— Desgraçado! — gritou esganiçada, abrindo o livro sob a mesa, mas não antes de dar um tapa nas pernas do companheiro — Flint! Acorde, imbecil, eu encontrei uma pista. 

Sentou sobre a mesa, encarando o livro com atenção, guardando os números que havia encontrado até então: “quarenta e dois, zero três, vinte e dois”. Seis dígitos no total. O cozinheiro, em pé, observava os movimentos da gata e as diversas vezes que repetia os números e folheava as páginas. Nunca fora o mais inteligente dos homens e tampouco procurava ser, mas podia sentir em suas veias quando um golpe estava prestes a dar certo. Sorriu consigo mesmo. Tinha que fazer funcionar. Tendo noção que a pesquisa era trabalho de apenas um encarregado, fez o necessário: colocar as mãos na massa e verificar se havia um cofre naquela sala para ser aberto. 

Normalmente tentava não ser bruto, mas como queria sair dali o quanto antes, não se importou em jogar os livros no chão e empurrar os frascos. Não haviam fundos falsos ou buracos nas paredes, nada que pudesse esconder algo, ao menos. Entretanto, lembrou-se que, ao chutar a cômoda no andar de cima, fora alvejado por uma pilha de ossos, e isso dava a entender que estava na pista certa: o médico tinha sim algo para esconder. Sem dar satisfações correu em direção a entrada principal. Ao passar pela porta, ou o que havia sobrado dela, passou os olhos por toda a mobília. Em situações comuns, sequer procuraria na sala de estar (coisas preciosas não costumam ser deixadas em lugares tão acessíveis), no entanto após os ossos não daria o benefício da dúvida — estava lidando com um maluco, afinal. E a confirmação veio, muito mais cedo que imaginava, de que estava roubando um completo imbecil.

Em meio a tanta poeira e teias de aranha, atrás de uma antiga e elegante poltrona descansava um quadro na parede, que ao contrário das tantas outras, obtinha uma moldura muito mais simples e fúnebre, consideravelmente menos primorosa e principalmente, pouco empoeirada. Era aquele o local. 

Com a mente distante, Flint observou a face da mulher pintada no quadro, certamente era a mesma citada nos diários e a antiga dona do palacete. Não obtinha respeito por boa parte dos vivos e por quase nenhum dos mortos que tivera o desprazer de conhecer a história, contudo, ao encarar a imponente face feminina sentiu-se obrigado a dar-lhe o direito de um último momento de silêncio, sem a olhar diretamente em seus olhos. Ao fim do seu silêncio, tirou do bolso seu canivete e de cabo a rabo cortou a tela, era hora de dar fim naquela busca. Ao retirar os últimos pedaços cobertos de tinta, encontrou a parede.

— Puta que pariu! — exclamou irritado. Estava certo de que encontraria algo além do nada. Frustrado, xingou alto mais algumas vezes, até que, no ato máximo do seu descontentamento, não se conteve e largou a cabeça o mais forte que conseguiu na parede (talvez a dor o fizesse voltar a pensar). 

A sala foi tomada por um estrondo metálico.

Ainda atordoado com a batida, Flint chacoalhou sua cabeça e, tentando recobrar sua capacidade mental, decidiu dar três toques na parede, esperando o característico som do concreto. Não veio. Era metal; oco. Uma chama de esperança se acendeu, e sem nem pensar duas vezes, tomou outra vez o canivete nas mãos e rasgou o papel de parede, revelando uma superfície metálica e gélida, com uma porta muito bem trancada por um segredo. Bingo

Correu em direção ao porão com a pesada caixa de metal chumbado em seus braços, não importava o peso e tampouco a dificuldade de respirar: havia encontrado uma luz no fim daquele covil. 

— Achei o cofre! — o homem entrou quase tropeçando dentro do porão, assustando a gata, que encarava ainda compenetrada as páginas do livro. — Encontrou a senha?

— Creio que sim, mas e se os números estiverem embaralhados? Teríamos que testar milhares de combinações e assim perder horas, sem ter a certeza do que há dentro desse maldito cofre — a imediata colapsou, puxava as orelhas e piscava apenas um olho, sem parar. Flint suspirou, pegando o livro do colo de Belka, dando uma olhada nas anotações que ela havia feito no final do livro: pegou a primeira combinação e abaixo dela explorou as diversas que aqueles números poderiam adquirir, mas com um pouco de obviedade (afinal, fora assim que encontrou o cofre), passando o dedo pelos tantos números escolheu um em especial  “22, 03, 42”. Os dois primeiros números estavam nos rodapés do quadro, enxergou-os ao desviar do olhar penetrante da falecida mulher; quanto ao quarenta e dois, pouco importava, era o que sobrava. Se não desse certo, tentaria com ele na frente. E depois vinte e quatro, na frente ou atrás: tinha certeza de que um desses quatro era a resposta certa. Fez um pequeno afago nas orelhas felpudas e agachou-se, colocando os números com cuidado, como se houvesse apenas uma tentativa, sentiu uma súbita vontade de fumar assim que o último dígito fora colocado e sorriu, como a muito tempo não sorria.

Estavam radiantes. 

Catatônicos. 

E absolutamente ricos. 

Ambos, imediata e cozinheiro, se abraçaram no chão imundo, rindo à toa. Tudo havia valido a pena, o brilho emitido pelas pedras preciosas apagava todo e qualquer estresse momentâneo.

Apesar dos contratempos, estavam sim num dia de sorte.

≈≈≈

Para sair da toca de texugo foi outro trabalho, não porque estava entalada ou algo do tipo — quem dera, se fosse isso teria uma forma de resolver —, mas sim porque,  na verdade, ficou burra de tão assustada que estava, e as pernas de Poyo desaprenderam como andar. Viraram geleia, em outras palavras. Sem ossos ou vontade de viver. Não podia fazer nada a não ser encarar o rosto da moça-azul, erguendo seus braços como quem diz “Fazer o quê?”, enquanto mordia a própria língua, envergonhada por sua situação. Todavia, para a estranha aquela situação não era uma brincadeira, como parecia ser para a capitãzinha. Quando decidiu ajudá-la, o fez pelo simples fato de não suportar ouvir seus gritos e súplicas, mas em momento algum pensou que teria de fazer mais que isso. Sem paciência com tamanha insolência, tilintou os olhos direitos, encarando aquela mocinha com incredulidade. Estava imunda, o rosto coberto por lama e lágrimas, além de uma expressão patética que só dava vontade de abandoná-la ali mesmo como castigo por ser tão burra. 

Mas… Não conseguiria fazer. 

E, entenda, não tinha problemas em matar — afinal, matava tantos animais quanto podia, seja para se alimentar ou porque os batimentos a incomodavam. Só que… aquela menina era demais para lidar sozinha. Brilhava demais; era barulhenta demais. Sem saber o certo do porquê de fazê-lo, vestiu a maior quantidade de compaixão que seu corpo poderia aguentar e a puxou para fora da toca, obrigando-a a colocar as pernas para trabalhar. 

Poyo teve de lidar com a dor nas juntas e o recém sentimento de morte sem poder reclamar, temendo dizer uma palavra e ser largada aleijada no meio do mato (aquela mulher só inspirava esse tipo de medo nela). Tão preocupada em se manter calada, sequer percebera os caminhos que estava tomando e o quanto se distanciava de sua trilha original. A mudança de atmosfera foi o que a fez voltar para seu estado (tagarela) normal.

— Para onde estamos indo? — a garotinha questionou, após se dar conta de onde estava. Agora já conseguia ver a luz do sol, ouvir o cantar dos pássaros e o som das ondas no mar, tudo parecia consideravelmente mais calmo, muito diferente do lugar que estava anteriormente.

Quem sabe? A moça não respondeu, apenas continuou a arrastando, por mais que a menina já tivesse capacidade de andar sozinha. Iam rápidas entre as árvores cada vez mais dispersas, Poyo segurando firme em sua mão para não a perder de vista, já que a mulher parecia tomada em seus próprios instintos. Quanto mais se afastavam daquela densa floresta, mais a menininha sentia um silêncio esmagador em seu peito; uma solidão que nunca tivera de lidar antes. Estava junto de alguém, sim, mas sua presença parecia não carregar nada. Era curioso, no mínimo. Sua respiração soava tácita, e mesmo os movimentos entre a relva não faziam barulho algum, como se não houvesse peso em suas pisadas. O ar gélido da maresia arrepiou seus braços, pararam na beira de um penhasco. 

Sem pensar duas vezes, Poyo soltou-se e correu até a ponta, olhando para baixo: — Como é alto! — exclamou. As ondas batiam nas pedras, bem pequenininhas, talvez do tamanho certo para caber dentro de um pote. Pensou que fosse bonito para ter em seu quarto, um pedaço do mar só seu, mas ao mesmo tempo temia podar sua liberdade. 

A mulher se aproximou, parando ao lado da menininha para também observar o horizonte. Poyo a olhou de rabo de olho, antes de voltar-se outra vez para o vasto oceano. Diz: 

— Se cair daqui, morro realizada. Estou mais alto do que já estive em toda minha vida — ditou séria, sem virar o rosto  — Quando for me empurrar, faça de uma vez e sem dizer nada! Não quero ficar na expectativa. 

 Pareciam dizeres contraditórios para quem estava acuada em uma toca há não muito tempo, e mesmo assim saiam com uma naturalidade espantosa; talvez porque não notasse o quão estranho aquilo parecia. Ora temia morrer, e noutra aceitava a morte de rosto erguido… Poyo era assim, alguém mutável e de pouco cérebro — sua memória seletiva a impedia de olhar para trás.

Somente as ondas do mar responderam seu pedido, e por isso achou necessário romper aquele silêncio lúgubre: 

— Mas é uma pena. — a menininha começa, dessa vez se virando. — Não por morrer aqui, eu quero dizer. É mais porque, se você me matar, não vou embora sozinha. Como estou sob a tutela de Bertruska e do médico, tenho certeza de que Belka e Flint não irão deixar barato. Mesmo se você esconder o meu corpo direitinho, viu? — gargalhou alto, acordando sua “companheira” da hipnose do mar. 

Todos têm suas antíteses. Assim como Poyo de vez em quando mudava da água para o vinho para enfrentar a própria morte, a moça que enfrentou um homem-monstro na noite anterior e outro de verdade na floresta deu um pulo para trás, assustada com o barulho daquela risada estridente (um autêntico riso pirata). Sem pensar duas vezes, seu corpo recuou e as pernas amoleceram, caindo de cócoras no chão e de ouvidos cobertos. 

—  Ei, ei! Que tipo de assassina você é, se encolhe diante da vítima? — perguntou Poyo — Deixe de ser chorona e faça de uma vez! 

— Para de gritar! Não suporto sua voz! — ela implora.

— Então me mate agora, sua medrosa!

— Não tenho interesse em te matar, só fique calada.

— COMO ASSIM NÃO QUER ME MATAR? SÓ FAÇA ISSO LOGO — a menina gritou ainda mais alto, completamente indignada, ignorando o gemido de dor que a mulher soltou. Ora bolas, não era legal o suficiente para ser assassinada?

— Apenas se cale, garota!

A mulher levantou de supetão, assustando a até então valente capitã que por pouco não caiu no chão — cão que late, não morde. Sem enrolação, tapou a boca da criança, não suportaria mais um daqueles gritos infernais. A garotinha se debateu, ameaçou um grito, e até tentou ir contra o ditado e de fato tentar mordê-la, mas antes que o fizesse, a mulher sussurrou ao pé de seus ouvidos: "Se você não pode ouvir, não vai machucar",  “Se você não pode ouvir, não vai te machucar”.

— Você é maluca? — a menininha tentava balbuciar com a mão tapando seus lábios.

— BONEQUINHA! — um grito fora ouvido, consideravelmente próximo, retirando a mulher de sua meditação (que assustada solta a menininha, passando a olhar para todos os lados, estava presa naquele maldito penhasco) e animando a capitã: era Bertruska chegando! Estava preparada para lhe chamar, entretanto, o som das botinas batendo foi mais rápido. Do meio das árvores a bela guerreira surgiu, carregando em suas costas algo que parecia morto. — Finalmente encontrei você, boneca!

Não tinha olhos para a capitã, toda sua visão tinha somente uma dona: a mulher dos lindos três olhos. Emocionada, soltou o que carregava nos ombros sem a menor delicadeza, e o “pacote” gemeu de dor ao atingir o chão. Poyo não levou um segundo para reconhecer o médico, pálido como papel e com as mesmas roupas abomináveis de antes — apesar de estar suando feito um porco agora. Ficou feliz por não tê-los seguido, ou estaria na mesma situação (olhando pelo lado bom, certamente não estaria suja da cabeça aos pés de terra. Ou não).

— Ó bela dama, nos perdoe pelos feitos terríveis da noite anterior. — a guerreira se ajoelhou próxima a sua gata borralheira (ao menos era dessa forma que enxergava a mendiga), colocando ambas as mãos no chão e com a cabeça baixa, em sinal de completa rendição. A mulher ignorou completamente o ato terrivelmente vergonhoso, estava catatônica, a poucos metros de si estava seu infeliz amor; ou infame traidor, o que lhe conviesse melhor. — Prometo que meu tom de voz será baixo em todos os momentos, jamais ousarei ferir seus ouvidos.

Não recebendo resposta, Bertruska ergueu a cabeça e somente a cabeça, analisando sua bonequinha de baixo para cima. Estática era ainda mais linda que antes, parecia uma pintura. Mas não poderia deixar por isso mesmo, tomou consciência da situação: a desculpa não poderia partir somente dela, o homem que errara. Pedindo uma licença a dama (sem perceber que não se movia porque estava em pani), caminhou em direção ao médico, ainda estirado no chão e sem forças para se levantar — estava deitado de bruços no meio do mato baixo, tendo a pirralha ao seu lado o cutucando com um galho seco como quem cutuca bicho morto para confirmar o óbito. Não pôde não se indignar com tamanha petulância. Onde já se viu, morrer na frente de quem o ama? Tinha que ser homem mesmo! Frouxo! 

— Você não tinha algo para dizer, Morgan? — Bertruska lembra, os olhos semicerrados e um sorriso desgostoso nos lábios. Ditou as últimas palavras com um pequeno acento no tom de voz, alto o suficiente para o homem notar que, sim, o assunto era com ele. Ele virou a cabeça para o lado, completamente amassado pelo chão e derrotado pela vida, e deu um pequeno “Hum?” em resposta, sinalizando sua atenção em mais uma bronca — Viemos até aqui com um objetivo, doutor. — a mulher indicou com a cabeça a outra catatônica, enquanto lentamente levantou seu punho esquerdo, de forma que apenas ele o visse. Mais uma derrota naquele dia. 

Levantou cambaleando e se posicionou ao lado de Bertruska, a última coisa que desejava era se prestar àquela humilhação, entretanto faria o necessário para manter os punhos da guerreira longe de si — um soco na cara e uma tarde se arrastando no meio do mato era o suficiente para um dia. Cabisbaixo, aceitou seu destino miserável e sem pestanejar, ajoelhou-se. 

A capitã estranhou o fato dele conseguir se levantar (uma vez que estava acostumada com mortos parados), mas ao se ver deixada para trás, tratou de prontamente segui-los e, mesmo que não tivesse uma boa justificativa para tal, ajoelhar-se também.

— Nos perdoe, bela dama. Estivemos errados o tempo todo. — Bertruska repetiu o ritual anterior, abaixando a cabeça. Olhou discretamente para seu lado e o médico permanecia parado, como uma planta, sem reação alguma e discretamente o cutuca com o cotovelo. Morgan gemeu frustrado.

— Eu sinto muito pelo meu comportamento. — fora sucinto e não abaixou a cabeça (não acreditava estar errado, para início de conversa, e também temia ficar tonto se o fizesse) e esperou por uma reação. No geral não se importava com os sentimentos da estranha, sequer a conhecia, somente o fizera para se livrar dos murros da troglodita. Contudo, não pôde ficar mais surpreso no momento que fora lançado ao chão.

— Ó meu querido, sempre o perdoarei. — a mulher azul após um longo abraço rodopiava alegre pela grama, antes em choque e balbuciando palavras sem sentido, agora colhia flores e proclamava gírias de amor. Era um demônio de chifres, mas seu sorriso até conseguia ser encantador. Por sua vez, Morgan deitou-se na grama de bruços novamente; acima de tudo no mundo, naquele momento desejava estar morto.

Bertruska sentou-se sobre os joelhos, relaxando por seu plano (maluco) ter dado certo. Suspirou aliviada e se deixou sorrir; tirara um peso das costas, porque não conseguiria seguir em frente sabendo que zarpariam daquela ilha sem resolver o problema com a jovem desamparada. Imersa em seus pensamentos, foi só notar que Poyo a chamava quando esta lhe cutucou o ombro:

— Por que a gente 'tá ajoelhada mesmo?  

 

≈≈≈

 

E que se fodam as mazelas do dia, estavam ricos! Belka e Flint brindaram os milhões no primeiro boteco asqueroso que encontraram, era o momento de viverem como reis. Todo o sofrimento seria lavado pelo álcool e charutos caros. 

A gata andava por cima das mesas, em suas quatro patas, gritando (e miando) com todos enquanto dançava as piores músicas tocadas no acordeom. Não havia mais vergonhas na pobre imediata, perdera todas no momento em que as belas jóias tocaram suas patas. Era uma nova pirata, jamais pisaria em uma nova carniça, afundaria o drácar com tiros no casco, e se precisasse daria a ele um funeral viking, como merecia.

— VAMOS EMBORA FLINT, SEU FILHO DA PUTA. SOMENTE NÓS! — a  gata soluçava em meio as sentenças, andava torta com o caneco em mãos e um cigarro no canto da boca, que por pouco não caía. A horas atrás, no início da bebedeira, a gatuna se convenceu de que Poyo jamais retornaria. Logo, não esperaria por Bertruska nem que fosse a última aliada disponível em todo East Blue.

— ETERNA CAPITÃ, NUNCA ESQUECEREI O QUE FEZ POR MIM!  — o homem berrou, apontando com as duas mãos para o teto do boteco, como quem fala com os céus. — NOSSO BARCO SE CHAMARÁ POYO!

— FLINT, SEU MERDA, ELA VAI NOS ESPERAR NO INFERNO! NAVEGAREMOS NO MAGMA JUNTOS OUTRA VEZ, EU TENHO CERTEZA

— PARA POYO. — levantou o caneco uma última vez, tomando todo o conteúdo em uma única golada. Levantou-se cambaleando, sentido todo o álcool o empurrar para o chão, mas não seria derrotado tão facilmente. Lançou para longe o bracelete de ouro que utilizava, catou sua besta e por fim, colocou a gata em seus ombros. Tinham uma nova missão: o barco. 

Partiram para fora do boteco. Tiveram alguns contratempos durante a saída, o dono (ou um algum jagunço que se achava no direito de levantar o tom para eles) questionou o pagamento, ora essa, não compreendia o conceito de “põe na conta”? Retornaria para pagá-los, se não nesta vida, na próxima. Quando o homem ameaçou partir para cima da dupla, Belka se remexeu nos ombros, querendo sair para brigar, mas Flint a tranquilizou, disse que resolveria por conta, em seguida atirando com sua besta na porta do bar, a um fio de cabelo da cabeça do cobrador. Os gritos foram cessados e o homem, lívido, voltou para dentro sem dizer mais nada. O cozinheiro ainda cogitou a ideia de tirar a calça e mijar na porta, mas ainda tinha o mínimo de respeito pela gata (e só por ela); deixasse a transgressão para quando realmente precisassem foder com tudo. 

— QUAL O PLANO? — questionava berrando, somente fora jogada nos ombros sem aviso prévio, precisava conhecer a missão para se preparar para a porradaria. Queria bater em alguns otários.

— VAMOS ARRUMAR UM BARCO? — o homem quis afirmar, mas saiu em tom de dúvida. 

— VAMOS ARRUMAR UM BARCO! — afirmou com convicção, jogando os bracinhos para trás, quase despencando.

Por mais incrível que pareça, caminharam sem maiores problemas até o cais — tinham que agradecer a Deus depois por ter sido “bonzinho” e virado a cidade inteira de lado, só para que pudessem passar. Mas isso ficaria para depois; era seu dia de sorte, afinal. Ricos como estavam, mereciam mais do que nunca o respeito do Todo Poderoso, e estava tudo certo em dobrar e desdobrar todos aos seus pés para que tivessem a melhor noite de suas vidas. O silêncio da noite os abraçava e a brisa gelada quase servia como remédio para o transe alcoólico, sem ele certamente desmaiariam como indigentes na primeira esquina que encontrassem. 

Haviam poucas luzes no cais e não houve a necessidade de uma grande investigação para notar que ninguém cuidava das embarcações. Sequer uma patrulha andando pela região, o destino estava ao lado deles.

eu quero aquele ali. — a imediata tentava sussurrar, sem perceber que sua voz somente saíra esganiçada no meio de soluços e quase arrotos (quase porque os segurava com a pata, tentando se manter donzela mesmo manguaçada). Apontou para uma majestosa caravela, de aparência elegante e limpa, com velas triangulares brancas e nenhum enfeite na proa, uma linda peça a ser moldada. O casco parecia novo, ainda liso e sem avariações na madeira, era perfeito para usarem como bem entenderem, e certamente fariam melhor uso que um riquinho qualquer que nunca sairia do seu mar.

— será aquele. — os olhos de Flint brilharam, apagando o cigarro que estavam em seus lábios na parede. Evitou dizer o que a gata já sabia, mas também só tinha olhos para aquela belezinha. Parecia um barco ambicioso, cheio de sonhos e, por ser novo, não poderia deixar de lembrar sua (ex) capitã. Uma lágrima quase caiu de seus olhos ao lembrar dela, mas não permitiu que isso ocorresse, não era momento para choradeira. Foram de encontro ao navio e, antes de subir, encostou na madeira como fazia com os cabelos da menininha. Diz: — Vamos cuidar de você, Poyozinha… Eu prometo!

Belka não aguentou e desabou em lágrimas na cabeça do cozinheiro. Gritou alto, sem filtro ou preocupação com aqueles que dormiam, eles que respeitassem seu luto! Seus soluços de bêbado se misturavam com os de uma mãe que perdeu seu filhote, numa dor profunda que, amanhã passaria — não porque deixaria de sentir e sim porque não iria mais demonstrar na frente dos outros. O que o Flint não vê, a Belka não sente. Ou algo assim, não sabia ao certo, hic.

Retirou a coragem dos bolsos e ficou de pé sobre os ombros do cozinheiro, preparando um pulo majestoso para dentro da embarcação. Friccionou as perninhas, bambeou um tiquinho, e zupt, saltou para dentro com uma impulsão que somente um gato poderia ter. Finalmente dentro de sua nova casa, procurou pelas escadas de corda nas bordas e logo tratou de jogá-las para que seu companheiro pudesse a acompanhar. Foi um trabalho pegar as sacolas de compras do chão, porque não pensaram em passar de um para outro enquanto um estava dentro do barco, mas estranhamente deu tudo certo. 

Passada a epopeia de subir, mal deu tempo para descansar, tinham que partir o quanto antes já que nunca se sabe quando alguém vai dar falta do barco. Belka correu em direção às velas, arrumando-as para zarpar, esperando o sinal de Flint (que puxava a âncora) para assumir o leme. Todo esse processo demorou muito menos do que o esperado — tendo em vista que estavam completamente desestabilizados. Já ao mar, tentando lembrar o lugar onde se encontrava o drácar, riram descontrolados a luz do luar, tudo estava indo de bem a melhor ainda.

— O QUE FAZEM AQUI? — um homem saiu da cabine principal, ainda de ceroulas e com os olhos inchados de sono, segurando em mãos apenas um porrete. Sua postura vacilou no momento que os olhos encontraram a figura de Belka, soltando um pequeno grito de terror. O cozinheiro sorriu debochado. 

— Mete o louco nesse bosta, Flint — A gata mal teve tempo de completar sua sentença, ao passo que dizia a última palavra, o sonolento desfaleceu sobre o limpíssimo chão. Uma flechada certeira em seu olho direito. 

A gata sorria abertamente, retornando ao leme e cantarolando cantigas piráticas — ah! Só pensar nessa palavra lhe apertava o peito. Que saudades da sua pirralha… Observou Flint recuperar a flecha e segurar o homem pela gola da blusa, como uma sacola de carne, sem o menor esforço e o jogar ao mar. Vendo a situação sob controle da imediata, diz: 

— Vou ver como está o encanamento lá dentro, e limpar isso aqui — e mostra a flecha, com um olho ainda preso na ponta e recoberta de sangue. Se tivermos sorte há algumas bebidas caras, ou dinheiro, na melhor das hipóteses. Vou deixar as sacolas aqui, abra-as quando quiser. 

— Uh, roupas novas! — a gata bateu uma única palma, comemorando consigo mesma. Sabia o que havia comprado, e isso não era nem de longe uma notícia ruim: não queria outra surpresa desagradável como as roupas horríveis que a dita cuja (a guerrilheira) havia empurrado durante a manhã. Não queria nem lembrar dela! Águas passadas, lamúrias e mais lamúrias. Agora era dona do próprio nariz, hic.  

Não perceberam em que momento da noite atracaram próximos ao drácar e principalmente, em que momento pegaram no sono no convés do novíssimo (e limpo. Flint sempre fazia um bom trabalho) barco. Tiveram o sono dos justos, e quando acordaram, a caravela estava quase abicando na parte rasa da praia — Deus olhou por eles outra vez, ainda bem! Seria um desastre, se não acordassem. Estariam encalhados agora. Atordoados pela ressaca, mas com mais vontade de não perder suas tralhas que continuavam no drácar, jogaram a âncora e foram em busca do bote do navio dentro do convés. Não demorou muito, por sorte o sujeito dorminhoco seguia todas as normas de segurança e mantinha seu barquinho sempre a postos para qualquer emergência. 

Pegaram os remos e assim foram, sem se preocupar em direção a praia. Belka suspirava, completamente de ressaca e com um pequeno guarda-sol de babados sobre sua cabeça e um par de óculos escuros para cobrir os olhos, enquanto Flint fazia o trabalho manual — não podia fazer nada, era somente o cérebro da dupla.

— FU-LIN-TE! BEL-KA! — uma voz irritante berrou a plenos pulmões, a melhor de todas as vozes impertinentes.

Flint quase soltou os remos, perturbado com os gritos fantasmas. Havia bebido tanto assim? Olhou para a gata, que também se remexia no barquinho, procurando desesperadamente com os olhos de onde vinha aquele grito. 

— Por Deus, a caravela já assumiu sua personalidade! Não quer ser deixada sozinha. — disse Belka, com a mão na cabeça secando seu suor frio. O cozinheiro não conseguiu nem concordar ou discordar, estava tão perdido quanto: não queria fazer parte de tamanha loucura, preferia acreditar que era somente efeito da ressaca. O grito retornou e agora seguido da mais tenebrosa (e bela) miragem: a pirralha correndo pela areia, indo animada até à beira-mar, acenando para eles. 

Uma miragem, certamente. Alucinação etílica. 

Ou estavam bêbados, ou mortos — e o sonho de ser ricos foi só isso mesmo, um sonho. 

Poyo gritou outra vez: — TÔ COM FOME!

Sorriram um para o outro, o fantasma da menina retornou para buscá-los. Estavam prontos para rir e responder os acenos, remando mais rápido para atravessar o mar do Tártaro, contudo algo lhes roubou a atenção, hesitando no meio da braçada.

As trombetas do juízo final soaram retumbantes. 

Estavam lá, os quatro cavaleiros do apocalipse, aguardando sua chegada. 

Até podiam aguentar os três primeiros, mas o quarto… Bem, este agarrava o braço de Morgan como que para nunca soltar, enquanto seus chifres pontudos refletiam o sol e a morte certa. 

Um dia de sorte é pouco para quem nasceu para se foder. 


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Notas finais do capítulo

[ESTOU EM GREVE]



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