Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 8
East Blue, Mt.Colubo (Dawn Island)


Notas iniciais do capítulo

{Entidade em greve}



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/791492/chapter/8

As roupas olhavam para Belka e ela as olhava de volta, tentando compreender o grau da catástrofe que se dera na infância de Bertruska para justificar tamanho mal gosto. Uma pessoa em sã consciência não seria capaz daquilo —  e, na verdade, nem um completo insano teria um “tato” tão ruim. Dentro dos pacotes, estavam os conjuntos mais estranhos que já vira em toda sua vida. Nenhuma das peças fazia sentido e sequer combinavam entre si; eram largas, quase sempre sem corte e algumas vinham até rasgadas de fábrica, uma porquice! De acessórios, haviam correntes e mais correntes. Espinhos para todos os lados. Estampas que não tinham a menor propósito senão serem horrorosas. E, céus, como havia metal naquilo tudo! Não queria nem saber o preço, ou ficaria mais chateada do que já estava. O rabo foi ao chão, encolhido em puro terror. As patinhas falharam em manter o corpo resto.

Se precisasse ser sincera naquele momento, cairia no chão antes de completar as palavras “moda presidiária”. Era um verdadeiro desastre!

— Belka. Belka! — uma voz masculina ecoou ao fundo, levemente alterada pelo consumo de álcool — Está me ouvindo, Belka? 

— Desista, Flint. Está bêbada. Agora só amanhã. — alerta a ex-marinheira, tomando um gole de vodka direto da garrafa. — Gritar demais só vai acordar Poyo — termina apontando para a menininha, já dormindo feito pedra no chão (sem cobertores ou colchonete, apenas com a cabeça apoiada sobre a mochila de suprimentos). 

No entanto, Flint não se contentou com a resposta e resolveu atestar a sobriedade (ou não sobriedade) da gata por conta — ainda é cedo! Não é possível que tenha bebido todo esse tanto. Caminhou devagar, observando seu olhar perdido para a parede. Parecia (quase) normal. Ressabiado, colocou a mão direita em seu ombro, tentando despertá-la do transe, mas não teve jeito: assim que a tocou, Belka desabou em seus braços, adormecida. 

“Filha da puta”, o cozinheiro murmurou. 

E, como sempre, sobrava a ele a dura tarefa de levá-la para cama e limpar toda aquela sujeira. Se dava mais um corriqueiro fim d’uma noite de diversão. 

— Vamos finalizar por hoje — Flint adverte, erguendo a bichana em seus braços e a depositando no sofá para que pudesse descansar — Vão dormir, vocês dois. Eu cuido da vigília. 

— Você já não dormiu na noite anterior... Tem certeza de que aguenta mais uma? — pergunta Bertruska, mais por educação, porque nem esperou uma resposta e já foi se aconchegando no próprio corpo em um canto, sentada com os joelhos no peito e envolta por uma fina coberta, aproveitando o cansaço que a embriaguez causava em seu corpo. Flint chacoalhou sua cabeça em reprovação e suspirou; “Se não ligava para a resposta, por que perguntar?!”.

— Você também, médico. Arranje um canto e faça-o seu, amanhã o dia será longo — enquanto dizia, o cozinheiro já iniciava suas acrobacias para desviar do corpo estirado de sua capitã, afim de chegar até a mesa para iniciar a limpeza do barco. Enfim, tomou as garrafas de álcool com uma delicadeza que não lhe cabia,  tentando seu máximo para não fazê-las tilintar.
— Já dormi o suficiente durante o dia, fiquei muitas horas apagado à beira mar — Morgan riu nasalado, internamente caçoando do jeito ridículo do outro homem — Além disso, não tenho costume de dormir por essas horas, a noite me convém. Vou aproveitar esse tempo para elaborar um mapa da cidade, assim poderemos pensar em uma forma mais segura de invadir minha antiga casa. 

O cozinheiro deu de ombros; nem o deboche o interessava. Desde que não o atrapalhasse em suas horas prediletas do dia, não tinha o menor interesse no que ele pretendia fazer. 

A solidão e sereno noturno lhe faziam bem, uma vez que não tinha a mesma necessidade de sono que os demais. Trabalhando desde cedo, sempre esteve ocupado (ou apenas muito ansioso) para deixar-se relaxar, e por conta disso seu corpo se acostumou com o ritmo das esporádicas cochiladas durante os intervalos das tarefas — apenas o suficiente para não morrer de exaustão —, abandonando de vez os travesseiros confortáveis e cobertores quentinhos. Mais importante que dormir, era esse tempo tempo livre entre a madrugada e o amanhecer: as únicas horas do dia em que poderia colocar a cabeça no lugar sem dez piratas famintos gritando em seus ouvidos. Era um homem de gostos simples, mas de suas poucas regalias não estava disposto a abrir mão.

Após lavar todas a louça e limpar, por mais que não houvesse jeito de parecer limpo, o terrível chão do drácar, tomando o cuidado para não atingir nenhuma das que lá habitavam, se deu ao privilégio de sentar-se à mesa, sorvendo alguns goles do café que havia acabado de passar. O vento gelado daquela noite lhe impedia de iniciar a ronda — ainda usava somente sua regata. A sua frente, o novo tripulante parecia concentrado em várias folhas de papel que encontrara nas bagagens de Bertruska, lendo com calma os relatórios da marinha e comparando as informações com o mapa do East Blue. Flint nunca sequer tivera interesse de lidar com aquela papelada toda (das letras conhecia apenas as receitas e histórias), mas entendia que, como Morgan era o único estudado do quinteto, deveria mais é ficar quieto para não interromper sua linha de raciocínio. Quieto era um poeta

Detestaria ser um incômodo para qualquer um que fosse. Ainda assim, no fundo desejava mesmo pedir sua dólmã de volta, porque o desgraçado ia ficar sentado no quente esse tempo todo, enquanto ele, que tinha de sair para vigiar o navio, teria de ir no frio, com o risco de adoecer-se (e o cozinheiro do  bando não poderia nunca ficar incapacitado!). Pensou por alguns segundos na melhor forma de abordá-lo. Vê-lo assim, tão imerso na leitura, o fazia pensar no quão ignorante era por não saber mais do que o básico. Será que, se tivesse tido uma educação melhor, teria parado mesmo assim na pirataria? Talvez fosse um homem de sucesso agora, quem sabe? Entretanto, Morgan estava ali para lhe provar o contrário. Era tão pirata quanto ele, mas um que sabia ler mapas e curar garfadas nas mãos. Evoluído, decerto, mas ainda pirata. E isso tudo era irrelevante para a situação atual — estava evitando seu real problema. Tinha que criar coragem e dar um jeito de pedir. 

— Hum…  — o cozinheiro hesitou, soltando apenas um pequeno grunhido. Não conseguia abordar o médico com naturalidade.

— Disse algo? — falou Morgan, movendo apenas os olhos em direção ao som, a mente de Flint travou.

— Apenas bocejei. — respondeu rapidamente, arrumando-se na cadeira, envergonhado. Estava em uma saia justa, se saísse com uma blusa tão fina seus pulmões poderiam reclamar, entretanto não desejava pedir algo (afinal, aprendeu desde cedo que seus pedidos nunca seriam acatados). Precisava fumar um cigarro…

— Certo. — o médico franziu a sobrancelha. Não estava exatamente desconfiado, mas podia ter certeza de que estava sendo observado (por alguém que não era seu encosto, aliás). — Vocês têm papel e tinta por aqui?

— Acredito que não. Mas você pode tentar naquelas caixas — e aponta para o lado da geladeira, um pouco à frente do canto que Bertruska havia se instalado. Morgan assente em agradecimento, se levantando da cadeira e seguindo para o lugar indicado. 

O chão parecia um campo de guerra de tantas arapucas espalhadas: era Poyo de um lado, cobertor do outro, balde de sujeira e ainda sacolas de tranqueira, tudo isto em um espaço, consideravelmente, pequeno. Para quem vivera longe das prisões, não tinha como ser mais claustrofóbico. O médico não era um exímio malabarista de circo, mas se esforçou para saltar os obstáculos, quase tropeçando algumas vezes e de fato escorregando no cobertor esticado no chão, apesar de conseguir voltar a postura normal antes de se espatifar. Quando finalmente alcançou às caixas, pareceu tão exaurido quanto se tivesse corrido uma maratona — estava muito fora de forma, uma das mazelas do fumo. “Pronto, agora como iria tomar a dólmã de volta?”, Flint se amaldiçoou, “Deveria tê-la tomado antes que estivesse suada!”

Entretanto, não estava tudo perdido. Quando pensou estar preso num beco sem saída, tornou a reparar uma segunda vez nos “objetos” que faziam a sala: Poyo; cobertor; balde e sacola. Cobertor.

Aquele bendito pano encardido era sua brecha. Suspirou aliviado. 

Às vezes os Deuses tinham pena de si e o livravam de algo que não queria, de jeito nenhum, fazer. 

Concluiu que estava em seu dia de sorte. 

No mesmo passo que se levantou da cadeira, já correu para o abrigo, se enrolando com o cobertor como se encontrasse um casaco felpudo no meio de uma tempestade de neve. Não era bem felpudo, tampouco vestível… Mas teria de servir. Avisa ao médico: — Vou patrulhar. — e se foi, com a caixa cigarro em uma mão e a besta na outra. Morgan não queria estar no lugar de quem quisesse invadir aquele barco. 

≈≈≈

Já fazia cerca de uma hora que Flint havia saído em patrulha, e nesse tempo todo Morgan não conseguiu uma informação que prestasse. Toda aquela papelada da marinha havia se provado inútil, uma vez que não passavam de relatórios sobre embarques e desembarques passados, um dossiê aleatório de roubos recentes nas ilhas de East Blue e uma porção de recompensas piratas que nunca conseguiriam enfrentar, nem que quisessem muito. Somado a isso, como não tinha papel ou tinta, não podia sequer ajudar seus superiores demarcando um mapa básico da ilha, ou quem sabe escrever um testamento para eles, caso não resistisse o tédio daquela noite e precisasse indicar o esconderijo de seus tesouros (não era um pirata arrogante, daqueles que mandam procurar sem um mapa). Não havia nada com que pudesse trabalhar. Absolutamente, não tinha nada para fazer. 

Amanhecia arrastado — é o preço de viver três dias fugindo feito louco; quando se encontra a paz, nada mais consegue te satisfazer. A trilha sonora daquela melancolia era baseada nos resmungos aborrecidos da ex-marinheira e, ora ou outra, nas  palavras desconexas vindas da capitã, provavelmente sonhando com o dia que conquistaria o mundo. Também havia um ronronar cheio de soluços vindo da gata, mas estava tão adormecida que o médico sentia mais dó do que descontentamento por atrapalhar sua contemplação do vazio (outro nome para não fazer nada enquanto deveria estar trabalhando). Entre as mil e uma groselhas que escutou, por fim, algo lhe chama atenção:

 Desgraçado… — foi Bertruska quem disse, praguejando quase inaudível no meio do sono — Homens malditos… — e se calou imediatamente, como se nada tivesse acontecido. Foi o suficiente apenas para levantar os pelos da nuca de Morgan e deixá-lo com um pé atrás, a analisando de longe e sem se levantar: estava com uma expressão furiosa, mesmo dormindo, todo seu rosto parecia se contrair e uma veia pulsava em seu pescoço. Deveria estar se lembrando de uma situação terrível. Depois de mais alguns minutos de completo silêncio, se levanta com um súbito rugido: — Filho da puta! 

Não houve tempo de reagir. Num segundo estava sentado, se arrepiando com aquele brado colérico, e noutro sentiu a bochecha arder em chamas, sendo arremessado com cadeira e tudo na parede. Caiu com toda a força no chão. O gosto metálico de sangue invadiu sua boca, irrompendo de um corte na parte interna da bochecha. A sua frente, a ex-marinheira estava de pé, olhando-o de cima com os olhos arregalados e os punhos ainda cerrados, como se esperasse um monstro se levantar. Mas não aconteceu. Morgan continuou ali, torcido em posição fetal, a cabeça e ombros roçando a parede e o resto, em lateral, no chão. Estancou sua ferida com a língua por instinto. Ela, por sua vez, continuou a esperar que se levantasse. 

— Que porra é essa?! — a gata acorda em alerta, pondo-se de quatro no mais profundo choque, pronta para atacar o que quer que fosse. Os olhos quase saltaram para fora do rosto e as perninhas se recusavam a segurar seu peso. Não iria confessar em voz alta, mas em seu íntimo imaginou que a mulher do dia anterior havia retornado para se vingar. 

Contudo, a visão que teve era bem diferente do que imaginara. Sem fantasmas ou foices dessa vez, apenas uma Bertruska que nunca havia visto de tão perto — a mesma que empurrou um homem ao mar —, com um olhar sombrio para o médico, derrubado e entre os escombros de uma cadeira em pedaços. A presença da mulher se tornara esmagadora, tomando aquela pequena cabine num pânico mútuo. Flint entra correndo e, como Belka, diz: 

— Que porra é essa aqui? — e empunhou a besta, somente para baixá-la no mesmo instante que cruzou olhares com ex-marinheira possuída. Não estava preparado para enfrentar aquilo. Os olhos da mulher se acalmam de repente. 

— O que foi? — Bertruska indaga, também atordoada. Havia despertada de seu transe e encarava a todos com uma expressão curiosa, como um animal que urinou no local errado. Não conseguia compreender a face de todos e os olhares direcionados a si, ao menos até sentir um ardor sutil em seu punho e a enxergar o rosto inchado de Morgan, se levantando devagarinho com a mão apoiada na parede. Havia feito aquilo, de verdade! Que ótimo. Sorriu consigo mesma, orgulhosa de seu subconsciente (ainda que não conhecesse essa palavra), era poderosa mesmo em sonhos. Ele merecia, de qualquer forma. 

Embasbacada não só com a frase e expressão de serenidade, mas também com a capacidade do médico de mergulhar até o pescoço em um barril de merda, Belka sonda outra vez, mas um tom mais alto (se é que era possível), tentando ao máximo receber uma resposta: — Bertruska! Que porra é essa?!

— Fiz apenas a minha obrigação como defensora das mais belas donzelas — ela afirma empostada, ajeitando o cabelo atrás da orelha. Nesse momento, as pernas de Flint pareceram perder ossos; teve de se apoiar na parede para não tombar, aterrorizado. Teve certeza absoluta de que virariam jantar — Não poderíamos salvá-la sem que ele pagasse um preço. 

— Do que diabos você está falando? — a gata continua, não tão alto quanto antes, mas ainda o suficiente para fazer Poyo cobrir os ouvidos enquanto se remexia sobre a bolsa; não queria se levantar. 

— A moça da noite anterior. Vamos todos atrás dela. — pontua, batendo o pé no chão com a mesma força que a pisada de um elefante. — Não posso aceitar o que esse infame fez. — brada apontando para o homem recém abatido.

— A Vagabunda-azul!?

— Quieto, Flint! Como assim, Bertruska, por que iríamos atrás daquela mendiga maluca? —  Belka já não gritava mais, apenas repetia as palavras pausadamente, na tentativa de trazer alguma razão para a ex-marinheira, ou apenas tentando convencer a si mesma de que aquilo era real.

—  É estupidamente insensível da sua parte deixar uma moça naquele estado sozinha. O que você faria, se fosse jovem e fosse abandonada numa cidade onde todos tem medo de você? — a ex-marinheira argumenta, apelando para o lado emocional da imediata; queria lembrá-la da tarde anterior, quando a expulsaram de uma loja só por seus traços felinos. — Se já te olharam feio ontem, imagine o que fariam com uma moça de chifres? 

A feição de Belka se contorceu num desagrado indescritível, mas infelizmente não pelo motivo que deveria se incomodar. Seu olho direito começou a piscar sem parar: — Bertruska, Bertruska… Você está em gelo fino, Bertruska… 

— Não seja tão dura. Você também já foi jovem e fez besteiras, como ela quando invadiu o me-quero dizer, quando invadiu nosso navio!

— Quando… quando eu fui jovem. O que quer dizer com isso, querida? — dois metros inteiros de moral se acrescentaram aos oitenta centímetros da gata. 

 A pressão do drácar parecia negativa. Flint imediatamente saiu do deque, não querendo se envolver naquilo por nem mais um segundo. Morgan já havia se levantado da porrada e seguido em direção aos primeiros socorros, preparando gaze para colocar no machucado superior que se formava na bochecha — o interno teria de tratar depois que a poeira abaixasse.

— Ei, por que estão brigando sem mim!? — Poyo gritou, chamando a atenção de todos que restaram. Não poderia aceitar que todos estavam discutindo sobre algo e não a envolveram, uma capitã deve saber de tudo. 

— Nada, capitã — Belka diz, ácida. — Sua outra subordinada esqueceu o lugar dela nessa tripulação, apenas isso. — seu rabo já há tempos havia se separado em dois, pronta para o iniciar um combate ali mesmo (nunca se importou com aquele barco). 

— Quem sabe foi a imedigata quem esqueceu as regras do mar, sim? Acima de você, vem qualquer ordem da capitã.— a ex-marinheira retruca.  

— Ah, e você acha mesmo que Poyo vai querer ir atrás de uma qualquer que nem conhece? Só porque você quer. — rosnou a gata — Eu tentei ser compreensiva, mas você, Bertruska, não se dá o trabalho de abaixar esse narizinho empinado para assumir seus erros! Não tem cabimento o que você fez hoje! 

— E por que não tem? Simplesmente porque constatei um fato, perdi minha argumentação? Pois saiba que, na marinha, quando não queriam usar palavras, meus músculos e punhos sempre gritaram mais alto! 

Foi uma oficialização do combate. Bertruska mal teve tempo de terminar seus dizeres e a gata já vinha correndo para cima de si, girando os dois rabos — um em cada mão — nas laterais do corpo, pronta para atacá-la. Aquilo... não era o usual. Normalmente, era ela quem começava o combate, não o contrário. Pode-se dizer que foi pega desprevenida, mas não o bastante para não conseguir se defender. Um pouco desorientada, porém com os reflexos especialmente em dia, a ex-marinheira estica as palmas para frente, na intenção de parar Belka antes de ser atropelada. Sem saber do que sua combatente era capaz, decidiu que a melhor estratégia para vencê-la era impedir que se aproximasse, considerando seus “chicotes” como uma força ofensiva de curta distância. Contudo, tão concentrada nisso, nem percebeu que se esticar dessa forma, levemente inclinada para frente e com o peso nas mãos, abria uma brecha no resto de seu corpo, e excelentíssima observadora (e aproveitadora) como era, a gata soube usar aquela chance à seu favor, atingindo sua subordinada com o chicote logo atrás do joelho. Suas pernas dobraram involuntariamente; a “humana” perdeu o equilíbrio e tombou para frente. 

Contabilizou-se uma vitória para o time dos gatos. 

Em contrapartida, fora do campo de batalha (não por escolha, porque se pudesse estaria brigando junto), Poyo assistia àquela briga com os olhos brilhando, ansiosa para o dia que pudesse, como elas, entrar em combate sem motivo algum. Devaneando sobre o futuro, já imaginava um cenário em que pisariam em seu sapato e, mesmo que fosse sem querer e que lhe pedissem desculpas em seguida, ela teria todo direito de socar a fuça do desconhecido, como todo bom pirata. Pois, afinal, que pirata era bem falado por aí? Queria ser mal-encarada. Temida e falada por todos. Era esse tipo de fama que sempre almejou. Ademais, se tivesse a mesma força de Belka e Bertruska, poderia desafiar seus companheiros por motivos fúteis e depois de um olho roxo e dentes quebrados, ainda teria a leveza de sair para beber uma boa garrafa de rum, sem qualquer ressentimento; viveria a vida d’um pirata adulto, um dia. Tinha certeza disso. 

E, no entanto, isso tudo parecia distante demais do momento atual. Eram cinco piratas num barco de, no máximo, duas pessoas; nem que quisesse, poderia brigar — tome por exemplo a cadeira que Morgan quebrou ao ser arremessado, e agora uma tremenda rachadura na perna da mesa, ocasionada pelo ricochete do chicote depois de atingir a perna. Sem dúvida alguma, era hora de mudar de barco. 

Poyo queria um deque enorme; Belka e Bertruska, um banheiro com chuveiro. Por mais que não tivesse certeza do que o médico queria, supôs que gostaria de um lugar limpo para atender quem precisasse e, claro, Flint sem dúvida alguma desejaria uma cozinha maior, cheia de instrumentos para servir mais banquetes inesquecíveis! “Pois então…”, pensou com seus botões, “aliás, onde foi que ele se meteu?”

Analisou a sala no geral. 

Morgan havia terminado seu curativo e agora varria os escombros da cadeira, evitando por alguns passos tanto a gata quanto mulher no centro da sala. Elas, por sua vez, continuavam em uma discussão acalorada, mas sem violência, porque não estavam em condições de quebrar mais da mobília e nesse ponto entraram em consenso: eram adultas e poderiam sim ter uma discussão saudável, mesmo que o tom de voz fosse variável. Enfim, não havia Flint em lugar nenhum. Lembrou-se de tê-lo visto sair da cabine, porém, como não tinha ideia do porquê, essa informação não servia de nada para matar sua curiosidade. O certo naquela situação era ir atrás do infame! 

… ao menos era o que faria, se ele não fosse mais rápido. 

Flint adentra pela porta no mesmo momento que a capitã pensou em sair: — Uau, elas continuam —  diz numa animação forçada, seguido de um longo suspiro. Poyo travou, olhando para o homem com uma expressão de pura incredulidade. O tempo no drácar congelou. 

Como não poderia ser diferente, Belka já não tinha mais forças para continuar aquela discussão, porque de súbito seu vocabulário inteiro foi substituído por gatonês. “Não era um sonho”, pensou. As roupas medonhas de Bertruska eram reais e, infelizmente, já vestia o corpo de um deles. 

O placar foi de zero à um para um empate. E Bertruska aproveitou a brecha:

— Capitã! Você não gostaria de uma aventura? Nós poderíamos fazer uma trilha pela floresta e procurar insetos! — sugeriu, ignorando o mais puro pavor que assolava a face da imediata. Se fosse pelo bem das belíssimas mulheres, até ela jogaria sujo, e para isso faria uso da maior (e melhor) carta-coringa daquela tripulação, a única que poderia mudar um jogo ganho de uma hora para outra: a tolice da capitã. 

Se fosse um tabuleiro, Belka jogaria tudo na parede. Era aquilo.

Os olhos de Poyo brilharam com a idealização de uma busca em meio a floresta. A guerra havia chegado ao fim. 

Todos perderam de alguma forma ou de outra.

≈≈≈

Já havia se passado algum tempo desde a briga no drácar — especificamente, pouco mais de uma hora — porém a percepção da imediata já não funcionava mais do jeito que deveria funcionar. Tudo caminhava da maneira mais lenta possível; seus companheiros mais pareciam vultos diante de seus olhos, e sua mente se recusava a pensar em qualquer outro assunto senão sua derrota. Havia perdido para a maldita Bertruska e, se isso não fosse o suficiente para ferir o seu ego, agora o bando completo utilizava as infernais roupas que a baderneira havia comprado. Tachinhas, spikes e correntes em todas as vestes, combinadas com estampas berrantes ou camufladas. Não havia sequer uma peça que não gritasse (e demonstrasse por completo) a bagunça que era a mente da tão temível guerrilheira

Eram a síntese de um esquadrão de vadios, usando as piores roupas da estante e, por algum motivo, caminhando em direção ao lixão — aqueles que testemunharam a procissão dos prófugos jamais tiraria da cabeça que eram delinquentes, prontos para queimar prédios, barris, mendigos e o que quer que estivesse no caminho. Contudo, acima dos julgamentos, estavam na realidade indo em uma missão de honra: o resgate de uma mulher indefesa! Por mais, de fato, não fosse exatamente uma mulher, e muito menos indefesa... Irrelevante! Iriam salvá-la independentemente. 

Bem, pelo menos metade iria. Porque Belka e Flint não quiseram ir de jeito nenhum. 

Ao perceberem o quão sério a ex-marinheira estava levando aquela missão, tiveram um lapso de sensatez, e deram um jeito de tomar a rota oposta, alegando que, se tudo desse errado, alguém tinha de ficar e traçar uma rota de fuga se eles precisassem sair fugidos do mato. Bertruska riu, mas permitiu que fossem embora; como os mais velhos, era melhor que fossem eles a assumir a maior responsabilidade, a de tomar um novo barco. 

Enfim, estavam no território neutro: diretamente ao lado da fronteira da cidade, e ao mesmo tempo colados com a montanha (e matagal). “Fedia a pobreza”, segundo a gata. Um imenso descampado de entulhos, ferro-velho, lixo e, muitos, muitos pedintes. Comparado com a capital da tarde anterior, se via uma desigualdade social imensa. Certamente, não queriam ficar por lá por mais tempo que o necessário. 

— Poyo, fique aonde os olhos dos dois possam enxergá-la — a imediata ordenou a capitã, olhando para os arredores com extrema preocupação. Sabia que era menininha malandra, mas não poderia deixar de se preocupar em soltá-la por aí num território (aparentemente) tão perigoso, ainda mais sob a supervisão de uma completa maluca e um homem desconhecido. Por sua vez, Poyo nem deu bola para o aviso e continuou serelepe, esperando a hora de partir em uma aventura — Aliás, evite ficar sozinha com qualquer um deles. — o final saiu num sussurro, para que ninguém mais ouvisse. Belka olhou para Flint, em busca de alguma tranquilização, mas ele estava concentrado demais em (tentar) enfiar uma única marmita na bolsa de Poyo, que não parava quieta.

— Vamos logo, companheiros, uma dama indefesa nos aguarda. — Bertruska ditou, puxando médico e capitã ao seu lado, guiando-os pela floresta. Era a única que genuinamente acreditava no princípio da missão e o defenderia até o fim.

E assim partiram, os três mosqueteiros, sem olhar para trás (apenas na mente distorcida da marinheira, uma vez que Morgan olhara diversas vezes para o cozinheiro em busca de misericórdia até a mata cobrir completamente sua visão), em busca de uma completa desconhecida. Em meio ao surto e a genial ideia de buscar a mulher que roubara seu coração, a guerreira em nenhum momento considerou que não fazia a menor ideia de onde esta poderia estar ou em que parte procurar, apenas seguiu seu instinto. Nunca seguiu mapas e geralmente não considerava planos, era movida por algo dentro de si. Entretanto, no momento crucial, a força que lhe movia parecia decidida a lhe negar um caminho a seguir — como um aviso, uma mensagem nas entrelinhas de quão terrível era esta ideia  — mas, para o azar do destino, Bertruska não sabia ler.

Quando se deram por perdidos, o sol estava para lá do ponto mais alto e, eles, bem além do ponto de volta. Aos arredores, só tinha matagal. Mato para frente, mato para trás; mato para tudo que é lado. Mesmo a luz do dia parecia escassa com tantas árvores cobrindo a visão, além de uma quantidade exorbitante de insetos que teimavam em atrapalhar aquela tão importante jornada — tudo queria expulsá-los daquela floresta, mostrando que, não, de jeito nenhum é uma boa ideia ir atrás d’uma selvagem que consegue sobreviver por aqui sem problemas.

Agora, o que para Morgan significava que ela tinha plena capacidade de se defender sozinha, para Bertruska era a prova de que eles também conseguiriam passar pelos obstáculos. Era sua provação como herói daquele (ilusório) conto de fadas. Escalaria montanhas se fosse necessário, enquanto o médico queria mais é que o mundo acabasse naquele instante. Para ele, “exercícios físicos” eram só formalidades que teria de indicar por ser médico, mas nada que seguisse à risca. Mal acostumado e pouco atlético, fazer uma “trilha” era a pior das torturas, ainda mais com botas baratas e roupas pesadas (além de ter fumado seu último cigarro na primeira meia hora). Nas mãos de Bertruska, certamente, vivenciaria o inferno — mil vezes pior que uma execução, isso com certeza. 

— PARA ONDE VOCÊ FOI, BONECA? — grita Bertruska, estourando não só os próprios pulmões como os tímpanos de Morgan, que finalmente havia a alcançado (provavelmente porque ela parou de andar).

— Por que você não tenta procurar em uma árvore? Tenho a impressão de que a vi se camuflar em uma agora. Provavelmente seu grito a assustou — ironizou o homem, a dor nos pés e a falta de nicotina já abalavam o seu humor.

— E por que você não gritou quando a viu? — ela retruca com indignação em sua face, indo em direção a árvore com o tronco mais largo que pode encontrar. Tateou a madeira cegamente, esperando um corpo invisível, mas não havia nada naquele ali. Como se fosse o óbvio a se fazer, meteu a cabeça no vão: — BONECA! VOCÊ ESTÁ POR AQUI? — e gritou, a voz ecoando. 

 Morgan não sabia onde enfiar a cara; se sentia vergonha, pena, raiva ou os três ao mesmo tempo. Do jeito que estavam, não sairiam daquela floresta nunca.  Estava seguindo um símio.

— Você é realmente um imbecil, não a encontrei em lugar algum! — gritava Bertruska após se pendurar em algumas árvores. De onde tirava tanta energia?

— Talvez esteja no topo das árvores, bem lá em cima! — Morgan sugere, aproveitando para sentar-se na relva e descansar. Era um plano arriscado, sumir com seu carrasco por tempo suficiente para descansar, mas tinha que tentar. 

— Tem certeza? — trepou um pé no casco, a mão num galho e foi indo, subindo e subindo — Acho que consigo chegar lá em cima! Poyo, quer tentar? — ela pergunta. 

Não houve resposta.

—Homem! Está brincando comigo novamente? Vou quebrar sua cara se estiver. — ameaçou, não toleraria mais uma piada de mau gosto.

Mais uma vez, somente os insetos pareciam lhe dar ouvidos. Bertruska, com a face retorcida em desgosto e já esperando por outro risote cínico do médico, voltou ao chão, entretanto, para sua surpresa, encontrou somente uma face empalidecida e numa expressão de puro pavor, de um homem que agora se encontrava sozinho e plenamente ciente do que havia acontecido: esqueceram de vigiar a pirralha. Não somente isso, Morgan havia esquecido da pirralha em si, uma vez que sequer sabia dizer em que ponto havia a perdido (lembrou-se agora que estava encarregado de vigiá-la enquanto a ex-marinheira tomava a dianteira, evitando cobras e outros perigos). Sumiu entre o último cigarro e todo o cansaço, sem mais nem menos e numa floresta que nunca pisou. O peso caia sobre as costas. 

Perdeu sua capitã no primeiro dia como parte da tripulação.

— O que faremos agora? — pergunta o médico, a imediata havia sido bem clara quanto aos cuidados com a capitã (após os surtos da manhã e interrogatório da noite anterior, não desejava experimentar sua ira outra vez). 

— Você pode sair correndo, antes que eu te erga pelo escalpo e jogue tão forte naquela árvore que ela vai ter para sempre o formato da sua cara — a mulher ameaça, estalando os ossos dos dedos com a palma da outra mão, séria como o próprio diabo — Ou continuamos atrás da boneca. Certamente vamos achar a capitã no caminho.

— E se não acharmos, eu assumo a culpa? — Morgan tentou abrir um sorriso amarelo, com alguma ironia, mas depois de ser socado pela manhã, tinha noção de que a ex-marinheira não estava para brincadeira. 

— Se não acharmos, você corre — Bertruska dá uma piscadela, abrindo um sorriso maquiavélico nos lábios. Não disse mais nada além disso, e nem precisava. Depois daquela tarde, talvez não fosse só Flint a temer mulheres naquele barco…


≈≈≈

Nada tornava Poyo mais alegre que a liberdade, isto é, correr por aí sem que ninguém puxasse suas orelhas. Era isso que buscava em cada dia de sua vida: a sensação de não haver nada lhe puxando os calcanhares. Apesar de ter certeza que Belka reclamaria, no momento em que perdeu ambos os companheiros de vista, sentiu uma súbita vontade de correr, não para eles, mas para uma outra direção qualquer. Em busca do inesperado; do surpreendente. Algo que apenas ela poderia encontrar. Um absurdo! Estava a tanto tempo fora e ainda não desfrutara de uma aventura sequer (não contava o resgate de Flint, uma vez que fora somente uma missão, não uma aventura completa). Merecia aquilo mais do que qualquer um, afinal era sua própria capitã e, portanto, ditava as regras para si mesma — não importa o quão imprudente fosse essa decisão. 

A imensidão daquela selva quase a engolia, de tão pequena que era em comparação as árvores. Mas Poyo era uma menina esperta, “e um cérebro grande é o item mais importante num kit de sobrevivência!” É verdade que crescera na fazenda, não na floresta, porém, tinha noção do que era buraco de bicho e buraco de raiz, de onde poderia pisar e o que poderia comer, caso faltasse comida (e faltaria, porque não parou de beliscar a marmita desde que Flint tirou os olhos de si). Com esses requisitos, era certo que se daria bem sozinha em qualquer lugar. Considerou-se a própria exploradora — bem mais capaz de cuidar de si mesma do que seus tutores, aliás. Traçou seu objetivo: só voltaria ao barco quando tivesse sua primeira história de capitã para contar. 

E assim seguiu, sem rumo; um toco de um metro e pouco passeando por aí, enquanto uma porção de predadores já espreitavam o almoço. As crianças que andavam por essas bandas normalmente não eram presas fáceis assim, brigavam para valer, no mesmo nível que aqueles animais ferozes! Isso posto, não era nada comum ver tanto monstro atrás de uma menina só, já que, na maior parte das vezes, temiam os humanos que por ali passava. Todavia, existia uma diferença primordial dela para as figuras conhecidas na mata: já estava caminhando há um bom tempo, e não notara em momento algum que estava sendo seguida. Muito pelo contrário: caminhava distraída, cantarolando e parando para observar o nada, sem ter noção do perigo que corria. 

Era comida e era burra — e comida dada não é algo que se deixa de lado. Se eles, os animais selvagens, precisassem brigar por ela, o fariam.

— Fazemos maldades sem nos importar, yo-ho, yo-ho, eu sou um pirata sim! — Poyo cantava a antiga, e única, cantiga pirata que conhecia, repetindo diversas vezes o mesmo verso (não era boa de memória, nem de canto). Estava frustrada, já havia se separado a um tempo considerável de seus companheiros (algo que parecia uma eternidade em sua mente infantil) e desde então nada lhe chamava a atenção: era somente a mata densa em todo o horizonte, portanto a única coisa que podia entretê-la era sua própria voz.

 Seus pés soavam dentro das botas, o dia estava ensolarado e bastante abafado, provavelmente choveria na manhã seguinte e suas novas roupas, ao contrário da enorme camiseta da marinha, eram deveras desconfortável para andar no mato. Desejava ter ido para a cidade, ao menos poderia comer em algum lugar caro novamente, dessa forma… Mas, não! Tivera de cair no papo furado de Bertruska, ora bolas! E ela parecia tão certa de que seria uma boa aventura... Desapontada e entediada, só catava as pedrinhas do chão e ia jogando-as o mais longe que seus bracinhos aguentavam, na fútil tentativa de liberar um pouco da energia infantil. Quando não achava uma boa pedra (ou quando não poderia levantar uma boa pedra), optava por besouros gordos e cascudos, esperando o estrondo da carcaça ao bater forte no casco da árvore — alguns abririam asas antes de chocar; eram os mais espertos. Agora, os que se deixavam manejar, bem... Eles que aguentassem sua ira. Enquanto uma maldosa pirata, era seu direito maltratar os mais fracos — por ora, serviam apenas os insetos.

Daquela tortura científica, sobraram dois, que não tivera coragem de jogar: um besouro, que na verdade era pedra, e desistiu de jogar porque era a pedrinha mais bicho que já vira em toda sua vida; e outro bicho, que nem de besouro conseguia chamar. Era a coisa mais esquisita que vira em toda sua vida, enorme e com cores chamativas, patas peludas e chifre na cabeça. Ficou completamente hipnotizada por aquela estranha criatura. Parecia um monstro de um mindinho de comprimento 

— Talvez eu devesse chamá-lo de Belka. Ao menos um companheiro para essa solitária jornada —  pensou em voz alta. — Embora ela não fosse ficar feliz de ser chamada de monstro, nem de inseto — riu baixinho, com uma despreocupação que duraria pouco. 

De súbito, ouviu um farfalhar estranho entre a relva, seguido de um rosnado alto e claro, vindo de suas costas. Se virou bruscamente, o verdadeiro monstro estava a muito tempo espreitando em sua sombra. A menina olhou pelas folhas, buscando responsável pelo som, e qual foi sua surpresa quando, de fato, encontrou no meio do verdume dois círculos amarelos, a comendo com os olhos e captando todas as camadas de seu ser. Aquilo a queria e não desistiria enquanto estivesse viva. Precisava agir, e rápido. 

Com toda a coragem que restava: desferiu um golpe na gigantesca criatura e pôs-se a correr, sem virar para trás, nem mesmo para ver se ainda estava sendo perseguida. O seja-lá-o-que tinha quatro patas funcionais, enquanto ela não tinha mais de duas varas pesadas com a lama nas botas. Aquelas roupas não eram feitas para exploração — se sobrevivesse, teria de lembrar outras Poyos que não serveriam para elas. Sabendo que não venceria na corrida, pensou que o certo a se fazer era usar o cérebro, e assim que conseguisse despistar o bicho (mesmo que por um segundo apenas), se esconderia no primeiro buraco ou topo de árvore que encontrasse. Depois disso, restaria lhe o “só Deus sabe”, mas jogar para os céus já era melhor do que morrer. Decidiu-se, tinha um plano. 

Correu desesperada, mal conseguia observar o que havia em sua volta, seus olhos focaram-se apenas na sobrevivência. Fez mil e um zigue-zagues, pulou sob galhos e raízes, mas o grunhido continuava constante e cada vez mais próximo. A medida que o medo chegou, os gritos vieram e por quase todo o caminho Poyo gritou. Não conseguia controlar e nem mesmo a falta de ar impedia sua mente de exprimir todo o pavor que sentia. Sua energia estava a um fio de acabar, mal aguentava o peso de seu próprio corpo, quanto o som diminui. Não acreditava como poderia ter despistado a criatura com seu corpo em estado quase catastrófico, contudo não iria reclamar, nunca precisou de respostas. Com toda sua agilidade, e a vantagem do pouco tamanho, pulou numa toca de texugo (ou um buraco qualquer, não importava)  e assim segurou a respiração, esperando o som das patas passar por si.

E esperou, mas nada lhe alcançou.

O medo lhe fazia roer as unhas e suar frio, porém não se atreveu a mexer um músculo sequer. Estava parada ali, encolhidinha e lívida, a alma se adiantando e saindo pela boca antes mesmo que a fera arrancasse sua cabeça — e nem Deus saberia o desespero que sentiu ao vê-la descer em vez de subir! 

Não teve colhões para deixar a toca e, olhando pelo lado bom, ao menos já estava enterrada. Daria menos trabalho a natureza em livrar-se de seus restos, se é que sobraria algum. Tinha certeza que o bicho roeria até os ossos. 

Tchau, tchau, Gatuna, Fulint. 

Eu vou morrer, de novo.

Talvez o mundo não estivesse pronto para sua grandeza. Estava conformada.

— Saia daí logo, pirralha. — a menina finalmente notara que não estava mais só a um bom tempo. Estava tão nervosa que não pode perceber aquela presença.

Uma mão azul se estendeu. — Vamos embora daqui, antes que eu mude de ideia.

E partiu.

Com a invasora de barcos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ainda ouvirão o meu nome.
Assinado, uma Entidade indecisa e insuportavelmente inconstante.

(por favor, não me deixem só.)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Prisão de Gato" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.