Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 7
East Blue, drácar (Dawn Island)


Notas iniciais do capítulo

Boa tarde, marujos.
Aconselho um assento confortável para ler esse tão imenso capítulo; mesmo eu espero que não se entediem com essa leitura, já que leitores cansados não rendem comentários (o meu pão cotidiano).
Não tomarei mais vosso tempo. Sem mais delongas, lhes desejo um bom capítulo.



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Para quem via de fora, tudo parecia bem mais ridículo do que grandioso: foi um segundo para Belka arrombar a porta e, sem mais ou menos, os dois — a assombração de chifres e o cozinheiro — já estavam caídos no chão, ensopados com seja-lá-o-quê tinha naquele balde suspeito. Aparentemente a invasão repentina criou uma oportunidade para Flint, que não pestanejou e foi logo aproveitando a hesitação da mulher para derrubá-la com o próprio peso. A coitada não teve nem chance de se defender; derrubou sua foice e foi soterrada de braços abertos pelo brutamontes, a mercê de sua vingança. Ao ter sua visão tomada, só pôde pensar que morreria ali, naquela imensidão pesada. De fato é sempre este o triste fim dos fracos. Morrer sufocado, eu quero dizer. Lhe restava apenas uma infame lição: não passava de uma coisinha magricela que não poderia nunca ter inventado de proteger alguém. 

Entretanto, a realidade estava bem longe de suas suposições — e isso em todos os aspectos. Seu carrasco não era um homem (muito) vingativo, e tampouco queria torturá-la até a morte. Em vez de a esmagar, quando se viu livre, Flint apenas rolou para o lado o mais rápido que pôde, em seguida já se sentando sobre os joelhos a fim de esperar o inevitável fuzilamento da imediata (o verdadeiro perigo daquela situação). Em momentos como esse, era melhor seguir seu protocolo de infância e não contestar as broncas; tudo que dissesse poderia e seria usado contra ele e pouco importava se era uma vítima, o chão estava sim imundo e disso era, sem dúvidas, um cúmplice. Estava em um beco sem saída e, de todo modo, ao menos este era melhor do que ser degolado sem motivo aparente. 

— Vocês dois também — a gata ordena aos “visitantes”, os olhos fervendo em fúria — De joelhos, como ele — aponta para Flint.

A imediata, por sua vez, não devia nada para ninguém e nunca foi o que chamam de alguém benevolente (certos traços, quando tão notórios, tendem a vir da mais tenra infância e por isso não podem ser mudados na vida adulta). Para ela, o certo a se fazer naquela situação era lançar todos ao mar, o cozinheiro incluso. Mas ela tinha o mínimo de bom senso. A verdade é que, querendo ou não, tinha de considerar os sentimentos da capitãzinha, então “todos no mar” estava fora de cogitação. Além disso, “Morgan”, o nome indicado no cartaz para o beberrão suspeito, era sem dúvidas um bilhete premiado; e aquele bando precisava de um novo barco acima de tudo. Suspirou. Infelizmente, ele estava salvo também (ao menos do mar, já que precisava entregar um corpo para recolher a recompensa). Fora os dois, sobrava apenas… aquilo

De todos os substantivos que poderia dar, somente “aquilo” servia, porque dentre todas as estranhezas dos cinco mares, ela com certeza se destacava. Era uma moça comprida, de cabelos negros e lisos escorridos por suas curvas — estas muito aparentes, já que quase não usava roupas para se cobrir, e o que tinha estava rasgado e molhado. Sentada inquieta sobre os joelhos, na ponta esquerda do trio e imediatamente colada à Morgan, se remexia sem parar, nem um pouco confortável com aquela posição de inferioridade, ou talvez incomodada com o fato de ser o centro das atenções. A pele descorada tinha um tom cinzento-azulado cadavérico; aterrorizante, se não fosse notado por um gato humanoide. Pior do que isso, os três olhos a  encaravam fixamente, esperando impaciente alguma reação ou brecha para escapar. Não tinha ideia do que estava acontecendo ali, ou da gravidade de sua situação.

— O que aconteceu aqui, Três-olhos? Diga-me cada detalhe — Belka proferiu séria, sem se importar com o olhar indignado do cozinheiro em ver a gata dar créditos a uma desconhecida, e não para ele. — Eu saberei se estiver mentindo. 

A mulher se contraiu ainda mais, as mãos firmes nas dobras de seus shorts. Salvo Morgan, não confiava em ninguém dali, e de jeito nenhum iria entregar o que fazia para estranhos. Por via de regra, até que se provasse o contrário, todos ali eram aliados do “loiro”. E com isso não queria colaborar de jeito nenhum. Não com ele. Porém, o retumbar perturbador dos batimentos a deixavam sem muitas escolhas... Altos, rápidos e incessantes, vinham misturados daquelas três mulheres, e alguém com um ressoar tão terrível só poderia prever um mal indescritível. Estava presa no pior dos cenários e sabia que, se quisesse sair dali o quanto antes, teria de cooperar.

A mulher então respirou fundo uma vez e com a voz trêmula toma coragem para contar sua história: 

— Estava sozinha a dois dias. — sua voz era baixa, levemente sombria e esganiçada, como se usar palavras não fosse uma atividade habitual. — Meu amado Morgan havia desaparecido sem deixar pistas e eu mal conseguia dormir de preocupação — ditou como uma recém-viúva, num tom que oscilava entre desolação e um drama forçado. Sua atuação barata era, estranhamente, proposital; achou melhor que prestassem atenção só nisso, invés de se atentarem ao seu rosto cheio de olheiras, denunciando que, de fato, não dormia a dois dias, mas não somente pela preocupação. — Esperei em casa no primeiro dia, pensando que fosse apenas um delírio bobo. Mas, ao notar que mesmo assim ele não voltou, pensei que algo pudesse ter acontecido e decidi procurar por conta própria. Após me afastar da cidade, encontrei esse barco e… — engasgou por um segundo, nervosa — soube que ele estava aqui....

Sua hesitação não passou despercebida, e a gata a corta: — Pare com os rodeios e vá direto ao ponto. Como realmente o encontrou? 

A mulher tremeu com o aumento do tom de voz. Apenas tinha que sair dali. 

— Eu... —  engoliu seco — Eu consigo ouvir os batimentos cardíacos de todos ao meu redor. Foi dessa forma que o encontrei. — enfim se entregou, derrotada. Todas as cartas estavam na mesa. — Procurei na cidade durante várias horas, porém os sons são muito intensos e tive dificuldade para encontrar o caminho. Vim para esta região atrás de sossego a princípio, mas ouvi, sem querer, uma frequência muito parecida encoberta por outra muito acelerada. Busquei atordoada por mais algumas horas, até que, finalmente, o encontrei rendido pelo homem loiro neste barco. 

— Rendido? — perguntou Belka, encarando Flint com as sobrancelhas franzidas. O cozinheiro retribuiu o olhar com incerteza. 

— Raptado, eu quero dizer. — a moça completou. — O vi deitado no sofá, completamente inerte enquanto este homem mexia com facas e fogo, esperando o momento que acordasse para torturá-lo. Temi o pior, pois minha habilidade me permitia saber que este momento estava próximo. No entanto, mesmo que eu quisesse, não conseguiria lutar contra um gigante para defendê-lo e, acima disso, não poderia carregá-lo em minhas costas se conseguisse sobreviver. Me restava esperar...  — narrava quase com lágrimas em seus olhos, emocionada com sua aventura e  tirando olhares de indignação do cozinheiro. Não era possível que fosse o vilão dessa história. Até ofereceu suas roupas e um cigarro para o rapaz!

— Você não pode estar falando sério… — Flint lamenta baixo, em negação. 

— Não me interrompa! — afinal mostrou de que serviam seus chifres e guinchou, quase soltando fogo pelas ventosas. Todos ficaram em completo silêncio com a mudança de atmosfera. Ela volta a falar: —  O tempo que esperei foi crucial para notar a tamanha indecência deste local. No momento em que Morgan abriu os olhos, fora alvejado pelo homem loiro, que ousou dar-lhe um cigarro babado, tirado de seus próprios lábios. Inacreditável. — o cozinheiro titubeou interromper novamente, mas somente o olhar de desaprovação da narradora serviu dessa vez (não precisou rugir). Optou por se manter quieto, por segurança. 

— Como assim, um cigarro? — pergunta a gata. Para ela, era inconcebível a ideia de Flint sair distribuindo seu precioso vício a um estranho, já que o negava até mesmo para ela, sua superior. 

— Um cigarro. Eu mesmo acendi, já que ele estava derrubado e dei a ele. — confirmou para imediata, dando de ombros. Flint não compreendia a indignação de nenhum dos presentes: Belka movia o lábio superior e o focinho com desprezo e Bertruska o olhava como se fosse o homem mais asqueroso de todo East Blue. Entre as mulheres, só se salvava Poyo, que havia perdido o interesse naquela conversa já faz algum tempo e perambulava pela cabine como quem não quer nada, mas sempre com os olhinhos fixos no único objeto brilhante que não estava ali quando saiu: a foice. 

— Eu… Posso continuar? — a moça pergunta, tentando resgatar a postura que perdera e, ao mesmo tempo, conter a raiva que sentia do homem naquele momento. Era um completo dissimulado, colocando normalidade no que fizera! 

— Por favor, quero ver até onde vai esse absurdo — Flint murmura, mas é repreendido pelo olhar da imediata. 

— Pois bem. Após esse ultraje, percebi que precisávamos mesmo fugir daqui. O homem seguiu para seus utensílios com semblante maquiavélico, e eu pude ouvir vagamente sobre o que ele fez com o meu benzinho aquela noite. Para confirmar sua confissão, Morgan se levantou num pulo do sofá e passou a analisar as escoriações espalhadas em seu corpo. Eu posso garantir, não estavam lá quando ele saiu de casa!  E o que o desgraçado fazia enquanto isso, você me pergunta? — sua voz subiu um nível, dessa vez com genuíno desespero. Bertruska lhe ofereceu um copo d’água, mas ela apenas respirou fundo. — Bem, eu não posso garantir, pois a sala se nublou com a fumaça de cigarro. Ainda assim, eu tenho quase certeza de que o vi sorrir sádico enquanto observava as marcas que fez. Naquele instante, eu estava tão nervosa que poderia destruir a porta sem nem pensar duas vezes. Tremia de frustração por não poder fazer nada. Eu precisava salvá-lo daquele monstro. 

— Não aconteceu desta maneira… — Morgan a cortou, sendo logo calados pelos dedos da moça em seus lábios.

— Está tudo bem, querido. Ele não vai mais machucá-lo.

Choque não poderia definir o verdadeiro sentimento do cozinheiro. Piscava a todo momento, pasmo com as informações que lhe eram apresentadas, uma  vez que nenhuma daquelas situações de fato ocorreram! Apenas limpou aquele inferno de barco, e cozinhou para o inestimável visitante. Nada mais do que isso. 

Não haviam suspiros suficientes para retirar o peso que carregava nas costas, somente desejava que a terrível mulher sumisse de sua vista — e, naquele ponto, que levasse o estranho consigo, evitando mais problemas. Flint estava tão cansado que chegou a cogitar em silêncio a ideia de sumir com os dois rápido, sem alarde… E tudo resolveria sozinho dessa forma. Colocariam uma pedra sobre tudo e esqueceriam o que aconteceu.  Contudo, dada sua posição, só lhe sobrava encarar Belka com um olhar sofrido e cheio de confidência, sabendo que ela apoiaria a decisão de mandá-los dessa para melhor (era uma gata esperta afinal, aquela lorota não passaria impune), mas ao mesmo tempo temendo que ela nunca o notasse.    

De súpeto, Bertruska inicia: 

— Termine de nos contar seu ponto de vista — ordenou, ganhando olhares indignados tanto da gata quanto de Flint. Ao contrário dos companheiros de bando (e do próprio “sequestrado”), a ex-marinheira parecia ser a única a acreditar naquela mirabolante história. Reagia a sua narrativa e soltava olhares de reprovação ao cozinheiro, como se os dias que viveram juntos em alto-mar de nada significassem além de um disfarce para sua inerente psicopatia (deveria ter desconfiado, ninguém tem uma recompensa à toa)

— Terminar? Esse conto de marinheiro? — indagou o cozinheiro — Até a Poyo inventaria algo mais verídico. 

— Pois saiba que os marinheiros têm muita honra! — Bertruska rebateu consternada.

— Então por que não continuou trabalhando lá? — Flint ia se levantar, pronto para vencer seus medos e de uma vez lavar a louça suja, mas Belka o empurra de joelhos mais uma vez. Ainda não.

— Nós não acabamos aqui. — diz a imediata. — Já fomos longe demais para parar agora. Deixe-a terminar de uma vez.  

A mulher de joelhos sorriu, finalmente poderia derrotar a terrível besta. Sua história também chegava ao desfecho.

— Para mim, já estava claro às segundas intenções desse tirano. Mas meu querido Morgan, pobrezinho, ainda não havia visto tamanha maldade nele — colocou a palma direita sobre a bochecha, fechando os olhos e tombando a cabeça no próprio ombro. Sua feição, outrora tão irritada ao pensar no “agressor”, passou a carregar somente ternura. Estava completamente imersa em seus devaneios — Agora, mesmo o mais compreensivo dos homens tem seus limites. O dele foi atingido no momento que esse maluco iniciou suas balbúrdias sobre sua família disfuncional e outros diversos absurdos quanto a um casamento. Ele, não me importo o quanto duvidem, deseja transformar meu querido em uma… noiva.

— Puta que me pariu — Flint jogou ambos os braços para o alto. Foi a gota d’água. Não conseguia nem mais encontrar as brechas da conversa real que a fizeram ter essa conclusão, então não fazia ideia de como se defender. Desistiu de tentar entender e se entregou. Se Deus nunca esteve de seu lado, por que estaria agora?

— Calado, depravador! Como ousa negar que deseja desposar do meu querido, quando apenas falou sobre este tema? — ela inquiri, os dois olhos da direita tremendo com um ciúmes inconcebível (e sem fundamentos). O cozinheiro já nem se dava o trabalho de encará-la — Ou vai negar o que fez agora? Depois de ter seu pedido de casamento negado, envenenou a sopa para matá-lo! Acha que se não você, ninguém pode o ter? 

Aconteceu o que tinha de acontecer: o barril de pólvora explodiu. No mesmo instante que a mulher completa suas acusações, Flint se levanta, pronto para acabar com aquela palhaçada. Porém, não foi Belka a interrompê-lo dessa vez, e sim Poyo, que finalmente havia se interessado naquela conversa. Quase não deu para notar sua aproximação, de tão rápido que viera. Voou direto para as costas do cozinheiro, se pendurando no cangote e soltando, num só fôlego, um brado ensurdecedor: — O Flint vai CASAR? 

— NÃO! — o cozinheiro e a moça gritaram em uníssono. Poyo cai no chão com o movimento brusco do homem. 

Se fez um silêncio absoluto por um; 

Dois; 

Três segundos. 

A menina se levanta de bochechas infladas, ajeita suas roupas e, sem mais nem menos, sai correndo da cabine. 

Não sobrou um entulho no pós-explosão. 

Belka ficou estática, de olhos arregalados e pelos em pé, e Bertruska deixou escapar um “caralho” bem mais alto do que gostaria (não era de xingar assim, a esmo. Era uma dama, afinal). Estava tudo errado ali. 

Faltava… nicotina. 

Flint foi fumar. 

≈≈≈

Conflitos são comuns entre piratas, não há um que discorde deste fato. Entretanto, na lista mental da imediata, Flint seria o último a causar um, tendo em vista que sua personalidade parecia um tanto, complacente. Saiu batendo as botinas, numa marcha furiosa em direção da saída daquele convés. Não queria papo com ninguém naquele momento. Paralisada, Belka ainda pode notar o tremor em seus dedos e o piscar desenfreado de olhos: ele estava prestes a explodir, fosse algo ou a si mesmo. Sabiamente, concluiu que em horas como essa era melhor deixá-lo em paz (pela segurança de todos). Além disso, criou-se uma nova regra no protocolo de sobrevivência daquele barco: nunca irritar o cozinheiro. Ou pular em suas costas quando ele está irritado (não tinha certeza do que realmente acendeu seu pavio).

  De todo modo, de nada adiantava gastar faculdades mentais com um homem adulto que tinha toda a capacidade de resolver seus distúrbios sozinhos; não enquanto tinha algo pior para lidar bem no meio de sua “sala”, ao menos. E, no que lhe diz respeito, a mulher-azul continuava sentada e sorrindo graciosamente com todos os olhos em direção ao amado, como se nada daquilo fosse sua culpa. Ela sim era uma dissimulada! Não compreendia o caos que causou — ou, na pior das hipóteses, o fizera de propósito. De repente montou-se sobre um pedestal de presunção, mudando sua postura da água para o vinho; antes cabisbaixa, agora sustentava uma aura arrogante, cheia do mais puro orgulho pelo resultado final de sua grandiosa aventura. 

Não era preciso mais do que um pouco de inteligência para notar essas mudanças, mas, para Morgan em especial, as discrepâncias de sua personalidade pareciam gritar. Estava acuado, cercado de estranhos e de joelhos no centro da cabine de um navio desconhecido, sendo contemplado por um olhar nocivo que nunca, em toda a sua vida, havia sentido de tão de perto. Tanto o cheiro da maresia quanto o medo o entorpeciam cada vez mais, como quando viu sua única família ser enterrada; dentre uma multidão, estava estranhamente sozinho, já que não conhecia ninguém ali. Somente o cozinheiro lhe apresentava alguma segurança, e mesmo dele sabia muito pouco — apenas sabia que não havia tentado o envenenar. Parecia superficial acreditar num homem que apenas lhe oferecera um prato de comida e alguns (muitos) cigarros, entretanto, quando se passa dois dias correndo desenfreado pelas ruas, com frio e sem comida, qualquer mínima bondade se torna um verdadeiro deleite. No meio disso tudo, sempre escolheria dos males, o menor (ou o menos pior). Preferia, acima de tudo, voltar para o estranho dos cigarros do que passar mais um minuto como réu daquelas “mulheres”.

— Vou fumar um cigarro. — levantou-se rapidamente, indicando a todos os presentes sua decisão de não tolerar mais aquilo tudo. Entretanto, no momento em que deu o primeiro passo, ambos seus braços foram segurados: de um lado a mulher louca, que suplicava sua presença e do outro, tão desnorteada quanto o próprio, a gata. — Soltem-me, por gentileza. — quase suplica. Comunicar que sairia era apenas uma formalidade, não estava pedindo permissão para ninguém. 

— Não vá, benzinho. Aquele homem pode tentar lhe ferir novamente. — pede a moça. Sua voz arranhava entre as cordas vocais, mordendo os lábios inferiores enquanto fingia conter um choro. Sua dissimulação nesse ponto era tão evidente que Morgan não conseguia sentir o mínimo de pena por ela; insistia que eram conhecidos, mesmo que nunca tivessem trocado uma palavra, e só podia concluir que nada de bom viria dela. A mulher, por sua vez, tinha os três olhos marejados e parecia verdadeiramente confiar em seu próprio teatro. —  Não sei o que será de mim sem ti. 

— Mais importante que isso: nós não permitimos sua saída — adverte Belka, soltando-o e retomando sua postura. Quase entregou suas intenções, mas felizmente nenhum dos dois “prisioneiros” pareceram notar. Buscava uma resposta de Bertruska, contudo esta parecia enfeitiçada, não mexia um músculo sequer. 

— Não foi um pedido, entretanto. — o homem ofereceu um sorriso cínico a imediata — Mas prometo não fugir daqui. Inclusive, se for seu desejo, poderá me entregar para a marinha imediatamente depois de voltar, eu não ligo.

E saiu sem olhar para trás, abandonando as outras três mulheres. Pela segunda vez na noite, o navio ficou em completo silêncio. 

≈≈≈

Era noite outra vez e Flint só carregava amarguras e arrependimentos de ter cedido sua dólmã. Com o perdão da palavra, estava um frio do caralho do lado de fora, perto da proa do navio. O vento castigava sua pele, as noites sempre eram geladas à beira mar, contudo não se moveria um centímetro de onde estava, nem para buscar sua capitã, e muito menos para voltar a cabine em busca de suas roupas. Que se foda, pensava. Se podia ter o direito da escolha uma vez na vida, que fosse agora, decidindo que morreria congelado em vez de ferir seu orgulho e voltar com o rabo entre as pernas — e nem era um homem muito orgulhoso, diga-se de passagem. Isso para provar o quão puto estava naquele momento; se olhasse aquela mulher de três olhos por mais um segundo, não conseguiria se aguentar. Faria jus a alcunha de “maníaco” e a serviria para os porcos (porque não poderia estragar a sua comida com aquilo). 

Tragou profundamente um dos cigarro, soltando boa parte da fumaça por suas narinas, desejava sentir o efeito da nicotina até o último. Só haviam duas coisas no mundo que o acalmavam: cozinhar e fumar, porém o primeiro item era impossibilitado pela existência da vagabunda azul em sua sala. A cada segundo se irritava mais com a mendiga desgraçada que invadira seu espaço; iria precisar de algumas centenas de cigarros (e talvez muito álcool) para, talvez, reduzir o ódio que sentia. Compreendia que o cerne de todo o problema era a vinda do infeliz da praia, mas não conseguia odiar alguém que escolhera dividir seus cigarros — mil vezes pensar que ele também era vítima da putinha do que havia escolhido um amigo errado. No final das contas, sempre foi um homem reservado, eram poucos com quem dividia os canecos de bebida e menos ainda aqueles que compartilhava histórias e um bom fumo. Talvez sua mãe estivesse certa em dizer que era e sempre seria um largado — fazia sentido se excluir desse jeito, visto dessa forma. 

Ter entrado naquele bando pela primeira vez lhe pareceu uma ideia terrível — nem mesmo a entrada de Bertruska o fez questionar suas decisões. Todo este inconveniente confirmava que, quanto mais se deixava levar, mais acabava atolado até o pescoço em problemas dos outros. Nunca havia se envolvido emocionalmente com um bando, geralmente não trocava mais palavras que o necessário e apenas trocava seus serviços como cozinheiro por carona, entretanto desta vez se afeiçoou. Gostava da pirralha, ouvia com prazer suas histórias por horas, vez ou outra até se esquecendo de sua existência miserável. Antes que pudesse notar, já havia a enchido de doces e mimos, enquanto ela lhe enchia de sentimentos positivos em troca. Além dela, contra suas expectativas, apreciava Belka e seu desejo de destruição — na maior parte das vezes, desejo de autodestruição. Se divertiu em todos os momentos que passou bêbado com a gata, lhe contando sobre só Deus sabe o que ele disse enquanto estava quase inconsciente e ouvindo sobre seus próprios anseios e pedaços sortidos de sua trajetória. E, diabos, até da ex-marinheira conseguia gostar um pouco! Elas o tornavam, ainda mais, fraco e emocional.

— Maldito sentimentalismo — repetia para si mesmo. E pensar que cedera à um estranho seus bens mais preciosos... “Dá-me um trago”, que besteira inacreditável! Por causa delas, as mulheres de seu barco, havia se tornado mais tolerante a quem entrava em sua vida. Antes disso, jamais teria sentido pena de um moribundo na praia, e muito menos lhe dado um cigarro. Quero dizer, pena eu tenho de mim mesmo!, pensava, repetindo o que sua mãe lhe dissera. Nunca conquistaria nada em sua vida. E por um segundo pensou que, naquele bando, estava no caminho certo de seu sonho... Uma bobagem. Tudo era uma bobagem.

— Dá-me um trago, Sr. Cozinheiro. — uma voz conhecida surgiu atrás de si, um tanto risonha, como se contasse uma piadinha interna. Flint desejou afundar naquele instante, se permitissem até o inferno. Ia virar-se irritado, xingar aquele pirralho com todos os nomes que conhecesse, mostrar a que veio, contudo sempre fora fraco demais. Após um longo suspiro, entregou ao “amigo” um de seus estimados cigarros, recebendo um sorriso em troca. 

— Suponho que não preciso acender outra vez. Não vou lhe ofender com mais depravação. — diz, cínico. 

— Jamais aceitaria algo tão terrível. — rebate Morgan com alguma ironia em sua voz, mas com um semblante sério. Arqueou uma sobrancelha — Não notou que sou um homem casado agora? Nem fumar eu deveria, ou não vou sobreviver até a velhice — e deu um risote baixo, levando o próprio cigarro a boca e balançando a cabeça em negação. 

— Eu também iria preferir a morte. — Flint suspira, segurando a fumaça por três segundos e jogando ao ar. — Quero dizer, não posso imaginar como é viver preso a alguém dessa forma. Há quanto tempo você a atura?

— Eu não a conheço.

— Como assim?

— Essa é a primeira vez que a vejo. Bem, a primeira vez que interajo com ela. — pausou a fala para dar um trago — Enxerguei-a pela primeira vez a alguns meses, próxima a minha casa, após isso nunca mais deixei de senti-la por perto. Era como um fantasma.

— Nunca considerou confrontá-la?

— Não queria essa dor de cabeça. Afinal, ela nunca chegava perto, somente observava de longe. Depois de um tempo você esquece que está lá, ou só prefere esquecer. Sinceramente, não acreditava que estivesse viva — confidenciou ao homem — Sabe, eu não acredito em muita coisa. Sempre julguei assombrações como truques de mentes exauridas pelos mais diversos motivos. O que eu via não é problema de ninguém, e assumi sua presença como minha própria mazela a se lidar. Todos tem uma, certo?

— Infelizmente. — riu nasalado, um tanto nervoso, não gostaria de discutir sobre seus próprios fantasmas — O que planeja agora? 

— Em relação a quê? 

— Quanto a ela. — Flint tira o cigarro da boca e apoia o pulso na grade do drácar. — Agora que sabe que é real, pretende confrontá-la?  

— Não acho que cabe a mim decidir. — explica Morgan. — Veja bem, estou completamente encurralado. De um lado, serei entregue para a marinha por sua capitã em troca da minha recompensa assim que amanhecer e, do outro, fujo esta noite com minha própria assombração e passo o resto da minha vida como um fugitivo de ambos: o governo e minha perseguidora. Em qualquer uma destas as opções pago por meus pecados e em nenhuma delas irei sobreviver. Arrisco dizer que tenho pouco menos de um ano de vida. 

— Baixas expectativas, de fato. — o cozinheiro suspirou, compreendia ao menos uma parte do que o garoto passava, já estivera em seu lugar. — Entretanto, preciso quebrá-las. Quando recebi meu preço não contei com mais de seis meses, porém antes que notasse havia vivido muito mais que isso. Os meses viraram anos e me acostumei com a fuga. Nas semanas anteriores fui pego e já cansado, aceitei minha pena: parecia a hora correta. — deu uma pequena pausa em seu monólogo — O destino não me permitiu a morte, a capitã me salvou. Não podemos contar com a  benevolência de Deus, vivo somente com minhas incertezas e isso basta. 

— Para alguém tão cheio de dúvidas, você me parece bem assertivo. — Morgan diz, pensativo. — Talvez por isso a Gata tenha lhe salvado, embora não pareça ser do feitio dela — murmurou a última parte, visivelmente nervoso ao pensar no que lhe aguardava. Não podia negar o medo de ser executado, e tendo passado a vida buscando a lógica entre os livros, viver na ambiguidade também não lhe parecia atrativo. 

— A Belka? — Flint dá uma gargalhada quase contida. — Se dependesse dela, estaria a sete palmos agora! E isso se me dessem o direito de ser enterrado. Acredito que a Capitã não pensou muito nos motivos para me salvar, apenas agiu por impulso.

— Então... — hesitou num segundo, como se as palavras não viessem a sua boca. O silêncio perdurou no navio. — Você acha que ela me salvaria também?

Flint não soube como responder. Ficou calado, ouvindo as ondas do mar bater no casco do navio e pensando francamente no que acabara de ouvir. Quem sabe o que se passa na cabeça da capitã? Não poderia garantir algo que, mesmo para ele, era um mistério; somente ela poderia lhe dar uma resposta para aquela pergunta. Jogou a bituca de cigarro na orla.

— FU-LINT! — ambos os homens viraram em direção ao grito estridente. Correndo em direção a proa vinha a pequena capitã, encardida dos pés a cabeça e com um gigantesco sorriso nos lábios. Carregava algo em suas costas, em uma tentativa falha de esconder o quer que fosse aquilo (que, diga-se de passagem, era maior do que ela). — Trouxe algo para você! É meu presente de casamento. — cantarolou olhando nos olhos do cozinheiro, tirando de suas costas três coelhos mortos (especialmente gordinhos, fofos e felpudos, escolhidos a dedo) amarrados pelas patas traseiras. A menininha sorriu maior ainda — Patas de coelho para dar sorte. Não consegui escolher uma só, por isso preferi trazer todas. Quanto mais sorte, melhor! 

— Sempre achei que precisasse somente das patas — o cozinheiro a encarava com ternura, ainda que por dentro estivesse espantado (acreditava que havia magoado a garotinha durante seu ataque de fúria, jurava tê-la visto chorando no momento que fora embora). — Não haverá nenhum casamento, mas prepararei um cozido para ti, pirralha. Obrigado pelo presente. — fez um leve carinho nos cabelos emaranhados da menininha, sujando-se de terra. Se havia alguma dúvida até aquele momento, agora tinha certeza de que havia sido pescado

— Como assim, você não vai casar? — Poyo joga sua caça no chão. — Está me dizendo que fiquei brava à toa? 

— Você ficou brava? — Flint indaga.  

— Porque você não me convidou! Ora, sou a capitã, devo ser a primeira a saber das coisas! No mar, sou a autoridade máxima. Quem realizaria a cerimônia senão eu? Pensei que pudesse ser por conta da minha idade, mas eu tenho total capacidade de participar de eventos importantes! Sem contar que... — e continuou a falar sem parar, vez ou outra aumentando o tom de voz como se estivesse no meio de um sermão importantíssimo, e outras apenas lamentando sobre qualquer assunto que viesse em sua mente. No geral, não era alguém com uma linha de raciocínio muito apurada. 

Por outro lado, Morgan continuava apoiado no balaústre, assistindo a “discussão” do homem e criança enquanto terminava seu cigarro. Era estranho estar tão perto de uma situação como essa; mas, de alguma forma, lhe trazia certa nostalgia — ser o telespectador do banal não era muito diferente do que sua perseguidora fazia. Quando terminou de fumar, estava pronto para voltar a cabine e aceitar qualquer um dos destinos, todavia, algo chamou sua atenção: um curativo cobrindo todo o ombro esquerdo da menininha. Estava manchado de sangue, carvão e terra em algumas partes, pouco apertado e possivelmente não havia sido trocado tem alguns dias (dado o estado das manchas). Se perguntou por um segundo o porquê de nenhum adulto tê-lo refeito, já que a princípio não fora mal feito: só estava gasto. Observou por alguns segundos até notar que, no meio do borrão escuro, havia um desenho ali: um pequeno gato sorridente com um tapa olho, quase sumindo entre as dobras e outras sujeiras. Entendeu do que se tratava na hora; era ela quem não queria trocar. 

— Que curativo interessante, você que o fez? — perguntou Morgan para a garotinha, interrompendo seu monólogo desenfreado e já indo em sua direção. Contudo, antes que pudesse tocar no braço, ela recuou. — Eu posso ver seu machucado? Sou médico.

— NÃO! Vai destruir minha bandeira pirata! — Poyo protesta, chacoalhando sua cabeça em negação. 

— Mas não está doendo? — ele insiste. — Parece frouxo, além de que está todo sujo. Se você me permitir, posso refazê-lo. Inclusive, posso deixá-lo permanente após a cicatrização da ferida. — avança mais uma vez, mas dessa vez a menina não o impede. Algo em sua fala havia capturado sua atenção — O desenho, eu quero dizer, não o curativo. — terminou com uma piscadela, que fez os olhos de Poyo brilharem. Havia vencido. 

Sob o olhar incrédulo do cozinheiro (que havia se perdido na parte de “fazê-lo permanente”), o médico pode desfazer a atadura, expondo um corte pouco cicatrizado, inchado e com os arredores ligeiramente arroxeados. Não havia infeccionado, felizmente, mas uma ferida que deveria ter se curado em pouco tempo agora tinha uma aparência péssima e (um pouco) de cheiro. Poyo gemeu de dor no mesmo instante que ele tocou seu ferimento, estava se contendo já tem dias apenas para não ter de tirar o curativo. 

— Vamos entrando na cabine, vou dar um jeito nisso. — sorriu gentil para a menininha chorosa. Ela assentiu com a cabeça, esfregou os olhos e gritando animada, tomou a frente dos dois homens. 

— Filho da puta! Devia ter avisado antes que era um médico, seu merda. — o cozinheiro, finalmente voltando ao seu estado normal, reclamava em bom tom. — Tenho um buraco na palma da mão, sabe como é difícil cozinhar com isso? Vai tratar disso também. — e resmungando, foi até a cabine, pensando qual a melhor maneira de preparar coelhos. 

Os três seguiram de volta ao ninho das cobras. 

≈≈≈

  Bertruska era uma mulher humilde, com um coração sempre aberto para todas as mulheres que lhe pedissem alento — moças infelizes eram seu único e, portanto, maior ponto fraco. Se deixava convencer por qualquer historinha triste que contavam e, naquele caso, não foi diferente. No primeiro minuto que a estranha iniciou o drama, já havia decidido de que lado iria estar: contra aquele que a fez chorar, é claro. E, se isso significava ir contra o homem que a alimentou nos últimos dias, e que também remou seu navio… Que assim seja. Decerto ao menos faria alguém parar de chorar. Seja quais forem seus meios, era seu dever dar sangue e ossos para proteger as mulheres: as mais bonitas, diferentes, de três olhos ou de qualquer jeito.
 

— Bertruska! — ouviu um grito estridente — Acorde, garota! Está com cara de imbecil, só falta babar. — Ao acordar de seus devaneios, notara que a razão de toda a confusão já não estava mais lá; o homem moribundo havia sumido de vista. “Será que foi encontrar o cozinheiro?”, pensou consigo mesma, “Bem, pouco importa”. seu objetivo estava ali: a maior das beldades, jogada de joelhos no chão, maltrapilha e com lágrimas nos olhos. Ó, vida cruel! Precisava ajudá-la ou jamais mereceria qualquer perdão. 

Ignorando a gata, olhou em direção aos três belos olhos da dama e estendeu-lhe a mão.

— Venha, donzela, lhe darei algo delicioso para beber e roupas limpas. — o sorriso galante daquela mulher... Belka jamais imaginou que iria ver algo tão... estranho.

— O que é isso, Bertruska? Esqueceu o que estamos fazendo aqui? — Belka pergunta, indignada. 

— Eu tenho minhas prioridades. — a mulher responde, sem tirar os olhos dos… peitos da visitante. Foi andando, cega de amores. 

A gata não podia acreditar no que estava acontecendo. É verdade que não havia convivido com aquela moça por tempo suficiente para confiar sua vida nela, mas não achou que seus desvios de caráter fossem tão gritantes. Esperava uma  autodepreciação leve, como vivenciara com seu cozinheiro; ou então alguma falta de inteligência, como era o caso da capitã. No entanto, de jeito nenhum imaginaria  tamanha falta de vergonha! Achou, no mínimo desrespeitoso, para não dizer que estava ultrajada com aquele comportamento. Irada, trata de puxar o braço da ex-marinheira com seu rabo, a fim de impedi-la de avançar rumo ao precipício (porque aquela mulher azul era tudo, menos um bom partido). Depois de enlaçada como um cavalo, a puxou para perto de si (e também para baixo), encarando-a olho no olho: Bertruska estava furiosa, e resmungou um “o que você quer?” quase indecifrável, que não abalou de jeito nenhum a outra coitada.  

— Temos que entregar o outro, se esqueceu? — sussurrou Belka — Se você ficar de picuinhas com essa aí, só vai dar chances para que ela tente nos impedir. Entenda: não é porque tem peitos que está do nosso lado, mulher! Ninguém está do nosso lad- — ia completar a frase, mas foi interrompida por um vulto que passou reto por si.

— VOCÊS VÃO ENTREGÁ-LO? — a mulher de três-olhos grita desesperada, se jogando nos fortes braços da ex-marinheira. Bertruska titubeia, mas a segura, esperando o doce cheiro dos cabelos sedosos, quando na verdade só cheirava a mato, e acidentalmente quase furando os olhos com aqueles chifres pontudos.  

— Não iremos, boneca. — piscou em direção a Belka, indicando que deveria lhe dar a deixa. O corpo tenso da mulher azul pareceu relaxar. Tinham uma estratégia — Não permitirei que ela entregue aquele homem horrendo, se este for seu desejo. 

— Não o chame dessa forma — soluçou, aconchegando sua cabeça no peito da ex-marinheira. Pareceu indefesa por um breve momento. 

— Você é o que dele mesmo? — A gata pergunta.

— Por enquanto, nada. Talvez algum dia… — ela responde prontamente, os três olhos fechados e descansando seu corpo num breve cochilo. Estava mais cansada do que pensava e, acima disso, nunca havia sido abraçada antes. O afeto era uma sensação estranha, mas apreciável. 

Por sua vez, Bertruska e Belka trocaram olhares de puro espanto. Para onde fora o “meu benzinho”, afinal? A gata se recusava a acreditar que um apelido desse cunho havia surgido de repente, e isso sem contar toda a história de tê-lo esperado em casa no primeiro dia! Já havia encontrado algumas mentiras na segunda parte do testemunho, mas não tinha ideia de que tudo era falso! Sua teoria de esposa ciumenta havia ido por água abaixo. No final das contas, onde diabos ela queria chegar com tudo aquilo? 

— Como assim nada, vocês não são casados? — dessa vez questiona Bertruska, genuinamente interessada na resposta. Ao contrário da gata, não havia nenhuma preocupação quanto a história e sequer lembrava das discrepâncias. Desejava, acima de tudo, uma oportunidade. 

Mas não houve uma resposta. Antes que pudessem perceber, a moça adormecera de pé mesmo, com a cabeça tombada nos seios da ex-marinheira e o corpo sendo segurado apenas por seus braços. A procura incessante dos dias anteriores poderia ter dado uma descarga de adrenalina para correr pela cidade atrás de seu não-marido, contudo, mesmo ela tem seus limites — no caso da moça, bastou encontrá-lo com vida para ir, pouco a pouco, desligando. Belka quis gritar, preocupada com o desmaio de exaustão (ou ao menos preocupada de ter o peso de outra possível morte em suas costas), mas Bertruska não permitiu que a acordasse: precisavam desse tempo para discutir o que fariam com o homem. Assim que a deixou repousando no sofá, começaram a decidir seu plano de ataque.

Era simples, apenas precisavam de um jeito para burlar os sentidos aguçados da estranha, enquanto algum (qualquer um que fosse) lhe desse cobertura para lidar com o maldito homem. Faltava saber se a ex-marinheira colaboraria com o plano, entretanto, do pouco que a conhecia, tinha certeza de que ela não iria contra a prisão de um criminoso — principalmente se fosse um homem. Bertruska, apesar de todos os infinitos desvios, lhe parecia alguém confiável nesse quesito, e mesmo que tivesse toda sua postura abalada diante de uma mendiga qualquer, contava que seu ódio por qualquer homem vagabundo fosse mais forte. 

A gata tinha poucas certezas, mas sempre confiava na falta de inteligência dos companheiros para dar continuidade em seus planos (não funcionava tão bem no cozinheiro, mas ele não a desobedecia de toda forma). Contudo, ainda não havia considerado que a burrice deles poderia foder com sua vida. Quando tinham uma estratégia prontíssima, bastou arrombar a porta mais uma vez para tudo ir por água abaixo. A capitã voltara ao barco, e a mulher de chifres despertou num susto. Poyo anuncia: 

— Arrumei um médico para o bando! — entrou no recinto falando a plenos pulmões, mas não berrando, sabia que Belka não gostava de seus gritos, queria evitar cascudos. — Esse cara legal aqui, achei ele lá fora. Vai seguir viagem com a gente agora — a memória curta, ou apenas a completa falta de interesse, impedia que a menina notasse que aquele homem em questão já havia sido apresentado a todos, mas não como médico e sim como uma gigantesca dor de cabeça.

 O mundo da felina despencou sobre sua própria cabeça, aquele era sem dúvidas o purgatório. Não teve forças de perguntar o porquê, e só encarou a capitã com as sobrancelhas franzidas. Seu rabo estava colado ao chão, se encontrava frustrada demais para agir com o mínimo de humanidade, deitaria no chão e ronronaria se pedissem. Pouco importava. Atrás de Poyo, Flint recebia uma bronca de Morgan por não ter desinfetado seu machucado na mão: se tivesse limpado, estaria curado naquele instante. Só doía porque era irresponsável.  

— COMO ASSIM? — a mulher azul levantou afoita do sofá, completamente desorientada, não havia mais dramatização em sua voz, apenas um desespero genuíno (com parâmetros, era fácil diferenciar um do outro) — Você não pode me trair dessa maneira, eu…não posso aceitar que vá embora junto desse depravado! — berrou, em meio às lágrimas e soluços, apontando em direção ao cozinheiro. — Você tem noção do que eu passei para te encontrar, para jogar todo meu esforço fora desse jeito? 

O médico não respondeu. Ninguém o fez. A moça se encolheu ao perceber que, dessa vez, ninguém lhe dava créditos — talvez tivesse exagerado demais antes? Apertou os punhos, havia perdido tudo. Foi sua vez de ir embora em prantos e de cabeça baixa, mas ninguém sequer a olhou. Mais uma vez, teria de voltar sozinha para a floresta. 

≈≈≈

O clima certamente não era dos melhores, mas ao menos todos tinham um sentimento de resolução no peito — e muito, muito cansaço, afinal, já passava da meia-noite. Esgotados e com os estômagos roncando, todos juntaram-se a mesa (e sofá) naquela noite, para banquetear os (outrora tão fofinhos) coelhos cozidos em um panelão de sopa com os mais frescos vegetais. Até mesmo o médico após algumas doses de álcool, não disponibilizadas para a capitã, pareceu se entrosar com os demais tripulantes (Belka e Bertruska); os adultos encontravam-se consideravelmente mais leves, dispostos a esquecer momentaneamente as frustrações. Afinal, um brinde é sempre bem vindo depois de um dia ruim. 

Melhor do que isso, somente saber que ainda tinham sacolas e mais sacolas de roupas para desempacotar! Tudo novinho e, futuramente, também um barco decente para morar, já que Morgan tinha uma pequena fortuna e iria contribuir com a causa de seus colegas piratas. De fato seria difícil invadir sua casa, estava sendo vigiada afinal era um procurado, mas nada que o desejo por riquezas de Belka não pudesse contornar! Até que enfim teriam um bom lugar para viver! Era o fim das vacas magras e, acima de tudo, o fim da carniça

— Irei abrir esse…— a gata embriagada, andando completamente torta soluçava, em meio às sentenças — pacotes. Roupas novas! — fez uma pequena festinha consigo mesma, itens novos sempre lhe deixavam animada, imagine então sob o efeito de álcool? Era seu paraíso particular.

Segurava as embalagens na pontas das patinhas. Eram consideravelmente decoradas, escuras e elegantes, certamente vindas de uma loja de garbo, finalmente Bertruska tinha feito algo de correto naquele dia. Com um sorriso nos lábios, rompeu as fitas com suas unhas e abriu o primeiro pacote, observando atentamente o conteúdo.

Seu queixo caiu.

Embasbacada, abriu as demais sacolas, retirando todas as peças de roupa uma por uma, não podendo acreditar no que seus olhos viam. 

Era, definitivamente, o apocalipse! 


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Notas finais do capítulo

Retornando ao meu costumeiro monólogo, sinto que devo algumas desculpas aos leitores quanto ao gigantesco capítulo, afinal não estava nos planos de minhas contratantes (e são covardes demais para assumir este aviso).
Quanto aos comentários, essa pauta recorrente em vossas notas, irei sim reclamar desta vez: seus dedos não irão cair ao dar uma opinião, lhes garanto, faço isso toda semana. Meu salário está em jogo, compreendam esse fato e façam o necessário para ajudar essa pobre entidade.

Com pesar, uma pobre entidade faminta.



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