Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 6
East Blue, Goa Kingdom (Dawn Island)


Notas iniciais do capítulo

Dá-se o inicio de um novo arco, e infelizmente eu continuo aqui, os atormentando com minha presença. Sou eu mais uma vez, o escravo de duas pirralhas e também o comentarista dessa tão peculiar aventura.
Espero que estejam apreciando essa longa jornada.
O dia é longo, e esse capítulo também. Lhes desejo boa leitura.



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As ondas vinham calmas sobre a areia, pra frente e para trás, mal encostando em suas solas de sapato antes de fazerem seu caminho apressado de volta ao oceano. Como não tinham consideração por ninguém, continuavam seu trabalho de livrar a água das conchas vazias e lixos de procedência humana, ao mesmo tempo que enlameavam a praia — os dois lados de uma mesma moeda. Era um equilíbrio estúpido estipulado por algum Deus qualquer; uma bobagem sem precedentes que Poyo levava ao pé da letra, repetindo para si mesma como única verdade. O mar não tem respeito por ninguém. Ele não tem que ter respeito por ninguém. Se nem mesmo ela, agora uma ilustre capitã pirata, merecia um tanto de atenção, então era certo que ninguém teria e ponto final. Isto posto, não foi um espanto que o homem, a pouco jogado à mercê da orla, também não tivera um tratamento digno, por mais que, pelas roupas, parecesse ser um nobre. Não que importasse, é claro; nos olhos marítimos, nada disso era sequer pontuado. E, para os piratas, então... Por hora não passava de um pinguço-coitado qualquer. 

Flint e Bertruska o levantaram pelos ombros, deixando a cabeça pender para frente e o  arrastando com peito dos pés no chão (aliás, é válida uma anotação mental: o único pé ainda calçado usava uma loafer de couro marrom que deveria, com certeza, valer uma fortuna! Se tivesse tempo, talvez fosse a hora de surrupiar outro tesouro). Por onde passavam, deixavam um rastro reto do pé contra a areia, além do cheiro, que mesmo disfarçado com a maresia não deixava de ser terrível. Não era bem um odor de morte, mas chegava perto. A nuance desconhecida entrava ardendo pelas narinas, forte demais para um olfato tão infantil quanto o dela. Nunca sentira nada igual. Parecia terrível demais para se conviver; “quero dizer, eu certamente teria pulado em alto mar também, se fedesse desse jeito”, Poyo pensou. E nesse âmbito que os assistia. Muito bem posicionada a alguns passos de distância, analisava o homem com um jeito julgador que não cabia em sua pouca idade. Os outros dois odores lhe eram conhecidos, tabaco e álcool, e portanto não incomodavam tanto assim. Estavam intrínsecos nele, se misturando com pitadas de sal e cheiro de ferro (provavelmente vindo das feridas que estiveram abertas em algum momento). Quase um perfume comparado o outro, uma vez que o “cheiro de Flint” exalava vida nos olhos de Poyo e, em compensação, o outro não poderia ser descrito com outra palavra senão “cadáver”. Ademais, por incrível que pareça, o que causava o ardor no nariz não parecia vir das feridas, como era de se esperar (essas, inclusive, estavam até que bem tratadas, apesar de frescas em sua maioria, com uma casca fininha por cima dos arranhões, que de nada servia contra o sal grudado na pele): vinha do homem em si e ponto final. Podia estar curado, sangrando, completamente nu ou cheio de perfume; independente disso tudo, continuaria igualzinho. Sem dúvidas, um coitado. 

Por sua vez, os três da frente trocavam olhares, estudando a situação. Não que essa fosse a melhor estratégia, —  ficar parado com um corpo nos ombros nunca é uma situação agradável —, agora, sem conhecimento de causa, não restava muito além de esperar alguma aprovação ou gesto mútuo que permitisse o resgate imediato do indivíduo maltrapilho. Belka, a mais velha e, estranhamente, a mais sensata, depois de um segundo de silêncio para perceber que, sim, aquilo era problema dela, apenas maneou a cabeça em direção ao navio com um suspiro cansado. Era tarde demais para devolver seus companheiros... Como criancinhas,  queriam adotar cada filhote sujo que aparecia à porta; mesmo que fosse sarnento, ou fosse um manguaça imundo e briguento, como era o caso atual.  

Caminharam até a carniça em uma recíproca mudez — foi até de se estranhar. Quando avistaram o barco, a gata tomou a dianteira e subiu na frente, pronunciando suas condições:

— Coloque-o no sofá e troque essas roupas — ditou no mesmo momento em que suas patas traseiras encostaram o convés e as dianteiras na cintura — Não quero areia no navio. — a última palavra soou com um tom de pesar. O cozinheiro objeta:

— Como faremos? Não tenho nada além do que estou vestindo. — alertou Flint, olhando diretamente para a imediata, pois ainda evitava contato ocular com a ex-marinheira.

— Posso dar alguma das minhas se…

— Cale-se, você é uma dama. — ralhou Belka, interrompendo seja-lá-o-quê Bertruska queria falar. Talvez fosse melhor assim. — Dê a ele esse seu roupão branco logo e pare de frescura. — ordenou e, como todos sabiam, sua palavra era lei. 

Completamente desgostoso, mas com algum senso de dever, Flint aceitou a “proposta” de oferecer ao estranho o que lhe restava: sua dólmã. Sabia que não era ela que o tornava cozinheiro; afinal, suas habilidades iam muito além de um avental velho e já engordurado de forma irreparável, não obstante, justamente porque nunca teve muito, apegou-se aos símbolos do que julgava ser sua única habilidade e ao menos por estes, zelaria (já que não respeitava nem a si mesmo). Às vezes é necessário ser caridoso, penalizou-se. Subiu mais uma vez no barco, pegando o homem pelos ombros enquanto a mulher erguia as pernas. Tiraram-lhe o único sapato, a casaca, colete, lenço e, por último, a camisa de botão. Então, num único embalo o colocaram para dentro do barco, como um pacote de suprimentos pesado. Ao vê-lo caído na madeira do convés, só de calça e cheio de escoriações pelo corpo, contentou-se em, antes de iniciar sua caridade, deixar escapar mais uma arfada baixa e sôfrega, no intuito de expulsar a frustração de ver quem receberia seu mais precioso bem: um cachaceiro desconhecido que, como Belka bem apontara, provavelmente era um briguento de bar. Não que fosse muito diferente de si, mas como ia fazer o bem de qualquer forma, tinha passe-livre para o julgar. Se, por acaso havia cometido algum pecado de apego material, pagaria  por ele agora.

Relutante tirou a própria veste, ficando de regata no frio da praia matutina (não havia amanhecido ainda). Ela até negou, todavia, não deu para não notar um risote maldoso e cínico por parte da imediata, escorada na porta da cabine e o fitando com puro desdém: era incoerente ver tanto drama vindo d’um homem de quase dois metros, e por isso não podia evitar de caçoar. Prontamente vestido, o mendigo enfim pode entrar e ser delicadamente colocado por Bertruska no sofá para descansar.

Deste momento em diante o tempo pareceu rastejar. Os minutos com o corpo inerte no sofá pareciam horas inteiras. Sem ter como prosseguir, os tripulantes estavam dispostos da seguinte forma: Bertruska em sua posição habitual, sentada sobre duas cadeiras (pernas esticadas numa e, na outra, as costas milimetricamente eretas como manda a cartilha militar), Flint encostando o cóxis na bancada, braços cruzados e evitando como o diabo evita a cruz o olhar da moça e, por fim, a gata, que fuzilava toda eriçada o homem desacordado por ter destruído seus planos de fazer compras. Os três pareciam avulsos a tudo que não fosse o sofá. Até trocavam encaradas confidentes hora ou outra, buscando a clemência de qualquer um que tivesse uma ideia do que fazer, mas sempre com um olho no peixe e outro no gato, pois não perdiam quando, de vez em quando, o morto tinha um mínimo espasmo, voltando a dormir calmamente em seguida. Infelizmente está vivo, concluíram. 

O problema que caiu em mãos (e patas) é ainda maior do que parece. Iria acordar hora ou outra, e o que fariam, então? Contariam que o salvaram e esperariam alguma gratidão? Até parece. Era um nobre, não podiam esquecer. E já não usava as roupas que adormecera! Qualquer um ficaria irritado em dada situação. Acima desse mísero detalhe, ainda tinha outro pior: ele não parecia, de jeito nenhum, alguém de se bater-papo; não ferido e maltrapilho daquele jeito! O rosto, mesmo no sono profundo, tinha um semblante sombrio que nunca nem sonharam em ver. O cozinheiro e a imediata concordavam entre si: era um pouquinho aterrorizante, sim. Mas só um pouquinho. 

Agravando tudo, os raios de sol começaram a emergir da única janela daquela sucursal do inferno (o chamado “Monstro dos Mares”, ou só Carniça, pros mais íntimos). Nesse ponto, Belka estava incontrolável em relação a seu ódio pelo maldito pinguço e a companhia de imbecis que chamava de companheiros. Parecia ser a única a notar que a visita a cidadela era imprescindível: a comida que tinham estava acabando, precisavam de um novo barco, novas roupas — o cozinheiro, salvo à beira da morte, não tinha nada além do que usava e logo iria começar a feder — e, caso Poyo resolvesse testar seus limites (e os de Flint junto) mais uma vez, precisavam de remédios! E falando em Poyo… A raiva que sentia do, com o perdão da palavra, fodido nem se comparava a que estava sentindo naquele momento pela capitãzinha. Se não fosse por ela, para começar nem teriam esse problema em mãos: foi ela quem resolveu gritar; ela quem cutucou o ninho de moribundos; e também foi ela quem despertou a piedade na ex-marinheira — levando Flint no processo, pois o frouxo não tinha a menor capacidade de dizer “não”, muito menos para uma mulher tão... categórica. Como sempre, todos os problemas daquele bando se resumiam em uma pessoa: ela, ela e, mais uma vez, ela. Pois então, diga, para onde foi a culpada? Fugiu. Sumiu de vista. Como se não fosse problema dela, desapareceu no ar deixando inúmeros pepinos para lidar. 

Congelou imediatamente, cada pelo do seu corpo para o alto.  

Belka sibilou baixinho para si mesma um “Ela fugiu”, tentando assimilar a ideia. Sabia onde encontrá-la: na cidade. Confiava em suas habilidades como ladra, então não tinha com o que se preocupar. Assim sendo, era a chance perfeita de, como ela, jogar o problema para os outros e sair correndo dali. Anuncia:

— A pirralha fugiu. — soltou assim, sem mais nem menos. 

No mesmo segundo que terminou de falar, Bertruska se levantou das cadeiras derrubando tudo no chão, pálida como papel. Flint, que já estava ansioso a ponto de relavar seu cutelo umas três vezes e depois de decidir que era sensato escoar um café no mesmo cômodo que um homem desacordado, até tentava esconder sua tensão geral sorvendo gole por gole da xícara fervente, mas a gata pode notar exatamente o momento que a bebida entalou na garganta (quando terminou sua frase). Mais uma vez, era a única sensata entre eles, e por isso os dois mais novos a fitavam com os olhos esbugalhados, em busca de sua gigantesca sabedoria felina. 

— Você cuida do defunto — Belka apontou para o cozinheiro, que franziu o cenho, mas não respondeu porque ainda tinha líquido quente na boca (todos os movimentos de um gato são friamente calculados). — Enquanto isso, eu e Bertruska vamos para a cidade buscá-la. 

— Como sabe que ela foi a cidade? — interpelou a ex-marinheira afobada. 

— Você acha mesmo que a imedigata da tripulação não conhece sua capitã? — A gata aumentou o tom de voz, tão furiosa que nem percebeu seu deslize. Sempre detestou ser questionada. 

Flint não conteve o riso e espirrou o café em si mesmo: — Imedigata? — caçoou. 

Foi a gota d’água. Belka catou Bertruska pelo braço e saiu marchando depois de bater a porta. Se ignorar esse segundo de desleixo, abandonou a carniça vitoriosa. 

≈≈≈

Por incrível que pareça, nada aconteceu durante a caminhada da praia até a civilização — nada que fosse importante o suficiente para as parar, no caso, pois havia sim um gordinho correndo na divisa do mar que as olhou estranho no caminho. Bom, de duas, uma: ou estava com inveja de músculos tão definidos, ou então nunca tinha visto uma felina tão refinada na vida. De qualquer forma, independente do que quer que fosse a resposta certa, concordaram ao menos em um ponto; “Nunca se sabe o que se passa na cabeça dos homens”. Não que isso seja relevante de alguma forma. 

Bem diferente das demais cidades que estiveram, a cidadela não tinha nenhuma saída para a praia, e a única entrada possível era ou por cima das muralhas, ou pelo mar. Até deveria ter um portão nos arredores, — afinal, de fato tinha um homem na praia —, porém, elas seriam barradas na hora que tentassem entrar, então estava fora de cogitação. Como (ainda) não podiam voar, e Belka não podia entrar na água, a única opção que lhes restava era escalar com as unhas os paredões. A gata não percebeu na hora, mas enquanto discutiam sobre o único caminho, deve ter feito uma cara de coitada tão grande que a ex-marinheira, uma mulher de coração mole, se compadeceu com seus olhos abatidos e ofereceu levá-la até o topo nas costas. 

Mas a bichana era orgulhosa…

 Preferia mil vezes sofrer fisicamente do que ferir seu ego. Não pensou muito antes de negar a ajuda, já mostrando serviço e fincando suas unhas tão bem lixadas na pedra lisa do muro. Escalou um pouco menos de um metro só no ímpeto de se mostrar, até que escorreu devagarzinho com as unhas riscando o concreto; outro rastro de humilhação, se perguntada. 

A gata até que merecia, mas Bertruska não riu de sua desgraça. Em vez disso, apenas apontando o óbvio: — É muito liso para escalar dessa forma. 

— Você jura? — ironizou a mais velha. Se tivesse pele, estaria vermelha de raiva (ou de vergonha). 

— Vamos de gancho. — ela afirmou. 

“E era só o que faltava agora, a mulher estava completamente louca!”, pensou Belka, mas antes que pudesse censurar aquela ideia imbecil, a ex-marinheira tirou do shorts uma pochete camuflada que deveria ter, pelo menos, um palmo de grossura. Isso lhe impediu de dizer qualquer palavra, porque sua boca despencou no mesmo segundo. Nunca, nem em seu maior pesadelo, havia visto uma bolsa tão horrorosa quanto aquela. Não bastava estar estufada com mil entulhos dentro; era verde, marrom e musgo, de zíper dourado e com pequenos spikes no cinto que se envolvia na cintura. Depois de tamanha cafonice, nada no mundo a surpreenderia. Nada mesmo. Dessarte, estava completamente anestesiada quando viu sair daquela aberração um gancho retrátil embolado num cabo de aço que não tinha mais que um dedo de espessura, e também nem torceu o focinho quando Bertruska, sem hesitar, o jogou na primeira proeminência do muro, a um metro e meio acima de sua própria altura. Isso tudo era fichinha! Nem a incomodava. Mas... Bem, abocanhar a gola de suas roupinhas e começar a escalar sem mais nem menos, isso… Isso era demais.  

Quando notou que estava suspendida um metro no ar e com a barriga de fora, um escândalo inevitável se iniciou. Se debateu, gritou, esperneou, e só não chutou mais porque sabia que cairia. Inversamente proporcional a altura, sua luta diminuiu porque, querendo ou não, naquele momento sua vida dependia daquela desvairada.  No primeiro momento que a corda acabou, Bertruska se agarrou com uma mão só na proeminência da parede, arrancando o gancho e imediatamente o arremessando para mais alto. Seu porte físico era pavoroso e, apesar de suar bastante durante o processo, continuou a repetição firme até que, por fim, alcançaram o topo. Sentou-se no chão. Estava cansada e suada, mas era vitoriosa. 

Para gata, no entanto, não se tratava de uma vitória. Um alívio por sobreviver, talvez. Mas estava bem longe de ser uma vitória. Depois de ser erguida como uma viga num muro de doze metros, não se importava com absolutamente nada. Não tinha vergonha de ter despencado de quatro no chão, aliás, muito pelo contrário: louvava o primeiro gato que decidiu usar suas patas dianteiras para manter o equilíbrio no chão, pois era um completo gênio. Tremia tanto que somente a segurança de estar colada ao chão a acalmava. O medo a reduziu ao concreto.

Contudo, mesmo o assoalho tem sentimentos, e bastou uma risadinha da mulher para se recompor por inteiro. Evoluiu para bípede, ajeitando a saia e voltando a malícia habitual. A olhou de cima e disse: 

— Procuramos a capitã agora, sim? 

— Você está bem para descer? — retrucou Bertruska, ainda com um riso contido nos lábios, mas parou para sua própria segurança quando viu a fúria nos olhos felinos. — Tem uma escada ali do lado. —  também se levantou. Era hora de ir. 

Passada toda a epopeia de entrar na cidade, puderam, finalmente, voltar ao seu objetivo principal: buscar Poyo. Felizmente não levou cinco minutos para localizar a meliante, sentada tranquila em uma das mesas externas de uma doceteria; o cabelo um pouquinho só molhado, mas, no geral, limpíssima e sorridente. Do jeito que estava, cheirosa e de cabelos penteados, nem parecia ser pirata, e sim uma nobre como qualquer outra. O que reforçava essa visão era o garçom inclinado ao seu lado, lhe servindo em uma bandeja uma pilha de bolinhos, chocolatinhos, biscoitinhos e outros vários “inhos” doces. Foi a vez de Bertruska se desesperar. A menininha não tinha como pagar por aquilo. Nem ela tinha.

— Você vai ajudá-la? — Belka pergunta, maldosa. Sabia muito bem que a mulher não tinha como ajudar. 

— Gastei tudo que tinha com o barco, vai ter que ser você. 

— Nah. — Belka abriu um sorriso gigantesco. — Deixe quieto, ela sabe se virar sozinha.

Na prática, não estava contando nenhuma mentira. Mas quem disse que era no que Bertruska queria acreditar? Para ela, a loirinha de olhos gigantes não passava de uma criança inocente, e aquela gatuna imunda era sua corruptora. Aquela indiferença era de ranger os dentes. Queria mesmo se conter e não sair brigando com sua superior no meio da rua, entretanto… quando percebeu, já era tarde demais para voltar atrás. Com o dedo indicador apontado no focinho, exige: — Não se faça de besta, Belka, você tem que ajudá-la. 

— Sossegue, Berta — caçoa a gata, dando de ombros. — Ela é tão ladra quanto eu e você. — e finalizou com um pisque. 

O sangue ferveu nas veias. Ia mesmo partir para uma briga ali mesmo, confiante de que poderia vencer, mas nem deu tempo para se posicionar porque um vulto correu em seu meio, interrompendo tudo que estava se formando. Ambas olharam para o lado, percebendo uma mesa completamente vazia, sem comida ou capitã, e um garçom com a maior cara de desagrado do universo. Não precisava ser um gênio para entender a situação. Mais uma vez, teriam de seguir o rastro da pirralha. 

≈≈≈

Encontrar a garotinha fora bem mais simples do que Bertruska imaginava. Nas duas vezes que notou seu sumiço, teve certeza absoluta que nunca mais a veria — Poyo não era só escorregadia; tinha uma energia infantil que ninguém daquele barco poderia acompanhar, e por isso essas escapadas eram tão apavorantes. Contudo, todos esses temores pareciam fúteis diante das habilidades da imediata e, na verdade, chegavam a ser ridículos. Belka lia os pensamentos da menina como se fossem os dela, sabendo exatamente onde procurar não importa o quão longe ela estivesse. Esse peculiar instinto surgiu com a necessidade, já que, enquanto a perseguia na cidade que se conheceram, precisava não ser notada, e para isso agia como sua própria sombra. Aprendeu a prever seus movimentos; a ser como ela. Em consequência disso, agora no mesmo bando, não havia nada que superasse essa conexão (um dos motivos para ela ser a imediata, e não outro qualquer). 

Em todo caso, a pirralha não tinha ido muito longe dessa vez. A encontraram em um beco, com a mão direita na parede e cabeça tombada, tentando recuperar seu fôlego depois de uma corrida intensa (e uma refeição caprichada). Quando ouviu os passos se aproximando, olhou para trás estremecida, achando se tratar do garçom de antes, porém, ao notar quem realmente chegava, percebeu que reencontrar com o garçom não era tão ruim assim. Belka andava calmamente em sua direção, não estava nem um pouco afetada pela irresponsabilidade da capitã (afinal, já estava acostumada com sua imbecilidade), mas a ex-marinheira era outra história... Ainda não conseguia compreender esses pequenos crimes, afinal sempre se considerou uma mulher justa e direita — mesmo que agora fizesse parte de um barco pirata. Uma criança vigarista ia contra tudo que acreditava. Não tinha ideia de que era possível ser tão malandro na tenra idade, pois, para ela, todos os infantes tinham certo grau de pureza. Poyo, no entanto, era o terror em pessoa desde que nasceu. Não precisou conviver muito com ela para entender isso. À vista disso, como seus princípios não podiam estar errados, teria de fazê-la engolir a pureza que lhe cabia por bem ou por mal.

Avançou furiosa para a menininha, pronta para lhe puxar as orelhas e levá-la para se desculpar com homem. Contudo, fora interrompida pela gatuna, que pressentindo a chegada de outra discussão acalorada, toma a palavra antes que pudessem se chocar — afinal, não deixaria que o senso de justiça de Bertruska impedisse suas compras. 

—  Seu tempo de fuga melhorou, pirralha. O desgraçado não teve nem tempo de te seguir. — a ex-marinheira a encarou indignada, enquanto Belka se aproximava ligeiramente da menininha para elogiá-la. — Porém, o que te faz pensar que pode roubar só para si mesma? — ralhou, vendo o sorriso alegre dela ser substituído por uma expressão de puro constrangimento. As bochechas enrubesceram quase que no mesmo instante. — Que tipo de capitã egoísta é você? Deixou seu cozinheiro sozinho no barco, tremendo de fome e frio, enquanto você sai para encher o buchinho? — termina com um leve tapa na barriga de Poyo, forçando as sobrancelhas para baixo na tentativa de parecer mais ameaçadora (ao menos o máximo que se consegue quando se é um gato).

A última parte da bronca era uma mentira descarada, apenas plausível o suficiente para consternar uma criança de baixo intelecto. Flint provavelmente estava bem, tinha certeza disso. Talvez com um pouco de frio, já que ficara de regata no barco, mas com certeza não estava com fome ou sofrendo! Mesmo sabendo disso, achou necessário induzir certo nível de culpa na capitã, a fim de impedir que sumisse outra vez num futuro próximo — afinal, se ela saísse roubando inutilidades e sem pensar nas consequências, teriam seus rostos manchados antes da hora e, quando realmente precisassem abastecer o navio, não conseguiriam nem entrar nos lugares. No entanto, a gatuna não esperava que sua manipulação fosse tão eficaz. Dentre tantas reações possíveis, seu tiro saiu pela culatra, já que a capitã caiu em prantos só com a ideia de seu cozinheiro estar sofrendo por sua culpa.

— Preciso voltar para o navio. — falava em meio aos soluços e fungadas — O Flint vai morrer! 

Belka fechou o cenho. Não sabia lidar com crianças e, de forma geral, não as suportava. Amaldiçoou: — Puta merda…  — e olhou para a mulher, implorando por ajuda. 

Por sua vez, a choradeira fez com que Bertruska esquecesse completamente da raiva que estava das duas, atingindo seu (único) ponto fraco: o instinto maternal.

— Olha o que você fez! — censura, olhos firmes na gata. Em seguida, ajoelha-se perto da menininha e começa a consolá-la: — Ele é um homem forte, Poyo… Não o viu com o garfo na mão? Sem contar que voltou da morte, não é mesmo? — colocou as mãos em seus ombros. 

As palavras que ouvia entravam por um ouvido e saiam pelo outro. Chorava copiosamente, sem nem conseguir enxergar de tanto que chorava (ou talvez não enxergasse porque estava com as mãos nos olhos). Percebendo que suas palavras não surtiam efeito, ex-marinheira a acalentou num abraço, acariciando seus cabelos e sussurrando em seu ouvido palavras de conforto. Quase parecia que alguém realmente tinha morrido. Belka se sentiu mal pelo que fez. 

— Vamos parar com a choradeira — diz a gata olhando nos olhos da menininha — deixo você levar um presente para o cozinheiro. — Como não deu em nada, aumentou a barganha: — e um para você mesma, se quiser. 

Não precisou dizer duas vezes. A ranhenta saiu do abraço em um salto, enxugando as próprias lágrimas no braço e voltando a sua animação habitual: — Você prometeu! — diz eufórica. 

Bertruska riu, apoiando a mão no joelho para se levantar; aproveitou para encarar Belka uma última vez, no único intuito de mostrar que ela também ouviu a promessa. A gata engoliu seco, mas não titubeou, assentindo com a cabeça para as duas. Saíram do beco em direção às compras.  

Todas as lojas estavam abertas agora. As ruas de tijolos cheias de pessoas bem vestidas, analisando as vitrines com a mão no queixo e jeito pomposo, como se achassem normal pagar o valor de um navio em um simples chapéu. 

Talvez não fosse o lugar mais acessível para abastecer… Mas não restava outra opção. 

Naquela cidade, não havia nada que custasse menos que um rim funcional ou um escravo de pouca idade. A roubalheira era tamanha que nem mesmo a honestidade da ex-marinheira parecia prevalecer. Mesmo assim, seguiram as três de pescoço esticado, na fútil tentativa de se misturar o máximo que podiam naquele lugar. Optaram em buscar o básico primeiro: alimentos e remédios. As lojas ostentavam uma imensidão de móveis caros e frutos exóticos, expostos nas bancadas como um  troféus e, com tanta pompa e elegância, tratavam os clientes (aqueles que alcançavam o perfil ideal) como membros da mais alta patente, esperando que gastassem seus milhões em quinquilharias e outras inutilidades. Por outro lado, aqueles que não atingiam o patamar imposto pelos ricos não eram nem recebidos nos estabelecimentos. Belka não se lembrava da última vez que fora tão discriminada. Lhe olhavam torto, como se nunca tivessem visto algo tão pavoroso quanto ela; talvez nunca tivessem, de fato. Crianças apontavam o dedo para si no meio da rua, como se fosse atração de um circo, e em vez de serem reprimidas pela atitude desrespeitosa, seus pais apenas as afastavam, com medo de se tratar de uma doença contagiosa. 

A gota d’água foi quando, em meio a milhões de clientes mal educados e que não tinham nem metade da elegância da gata (sua capitã e subordinada inclusas), foi ela a escolhida para ser expulsa da loja de roupas — com a justificativa de que estava assustando os demais clientes. Poyo tentou argumentar, mas como consequência de se aliar ao monstro, só conseguiu uma passagem só de ida para a rua também. Próximas a calçada, irritada e esperando Bertruska terminar de comprar o necessário, a menininha contava vantagem pelas carteiras que havia saqueado, sentia-se vingada: botas novas e uma quantidade considerável de dinheiro facilmente mudavam seu humor. A gata, por sua vez, desejava mais do que qualquer coisa retornar na madrugada e destruir todos, um por um, daqueles que ousaram a humilhar; mas sabia que não adiantava esquentar a cabeça por agora. A vingança é um prato que se come frio, e todos que foderam com sua vida irão pagar alguma hora.  

Com o sol se pondo no horizonte, finalmente a mulher sai com várias sacolas em mãos: poderiam riscar mais um item da lista. Porém, antes de partir de volta ao drácar, faltava o presente do cozinheiro e da pirralha, ou Belka seria crucificada por prometer e não cumprir. Já de cabeça fria, andaram em direção a loja que Poyo desejava, rindo de alguma besteira que a menina tagarelava, entretanto, a gata sentiu um papel grudar em suas patas. 

— Um segundo, tem alguma coisa grudada em mim. — Belka diz, parando de andar e se apalpando até encontrar, entre a saia e sapatos, uma folha de papel levemente amassada. 

Ia apenas jogar fora e continuar seu caminho, mas algo lhe chamou atenção antes que o fizesse: se tratava de uma recompensa da marinha. Abriu o papel ansiosa, com medo de que, por conta do incidente com o galeão militar, a recompensa de Flint tenha subido ou, pior que isso, que tivessem flagrado seu rosto quando pisou naquela base. Mas, não, não era nenhum desses casos. No papel, havia um homem de cabelos castanhos e semblante escuro sentado; as roupas eram até que simples, mas ele por si só tinha algum porte. Um nobre. Ficou atônita, observando a figura e tentando não pensar no pior, mas não teve dúvidas: era sim o homem da enseada. O mesmo que, agora, estava sozinho com Flint no barco por sua culpa. Anuncia: 

— Temos que voltar. Agora. 

≈≈≈

A solidão sempre agradou o cozinheiro, especialmente quando era acompanhada de seu passatempo favorito: cozinhar em completo silêncio. Gostava de cortar com calma os vegetais, preparar a carne e pensar minuciosamente nos temperos que desejava usar, sem se preocupar com a demora ou as barrigas roncando e exigindo por alimento. Sozinho, tinha total liberdade para exercer seu trabalho sem os julgamentos e, portanto, até mesmo sua culinária adquiria um sabor especial. Bem, ao menos era o que diziam nos barcos que frequentou; além de dizerem que era um sujeito muito estranho, é claro. Mas nada disso importava naquele momento. Estava ansioso para, mais uma vez, demonstrar suas habilidades para suas superiores. Concentrado como estava, focava-se tanto no trabalho que, nos primeiros momentos, até esqueceu da presença do homem desfalecido em seu sofá. Contudo, infelizmente ele não esqueceu de sua presença. Quando Flint deixou a carne marinando para fumar um pouco, a assombração do sofá esbugalhou os olhos, os rolando para o lado devagarinho para se encontrar com os do cozinheiro, agora sentado em uma das cadeiras da sala. 

— Dá-me um trago? — pediu ao homem, humildemente e sem levantar a cabeça do sofá. Flint sentiu cada pelo do braço se arrepiar ao ser confrontado com a realidade. Estava sozinho com aquele problema. 

— Como? — perguntou, o cigarro ainda na boca e com incredulidade no olhar. 

— Do cigarro. Dá-me um trago? 

— Te dou um inteiro, se quiser. — Flint chacoalhou a cabeça com o cenho franzido em confusão, mas já tirando do bolso da calça a caixa de cigarros. Pensou se o rapaz poderia acendê-lo sozinho, entretanto já imaginando a resposta, nem perguntou e foi logo colocando um em sua boca, com o isqueiro a postos. Os olhos do coitado brilharam como se visse ouro em vez de fogo. Devia estar a dias sem fumar.

Respeitou seu momento de apreciação, aproveitando para também dar uma longa tragada. Segurou a fumaça em seus pulmões, olhos fechados e ouvindo o silêncio do crepúsculo, até soltar para o cima ao mesmo tempo que o rapaz do sofá.  

— Fiz uma sopa para lhe ajudar com a ressaca — avisou ao homem, se levantando da cadeira —  Precisa de ajuda para levantar? 

— Não se preocupe. — ele ergueu-se sozinho com os cotovelos, pondo o corpo em quarenta graus. — Também não estou de ressaca, mas aceito a sopa. Não como tem dois dias. 

— Jura? acreditei que havia excedido na bebida, afinal cheirava um pouco a rum — disse o cozinheiro, de frente ao fogão, sem se importar em olhar o homem. 

— Tive que limpar os cortes. Como vocês bem viram enquanto me despiam, não me resta um pedaço do corpo sem cicatrizes — Sentou-se certo, esticando o pescoço e erguendo as mangas do dólmã (por mais que fossem originalmente mangas curtas, nele pareciam ¾). 

Flint arqueou a sobrancelha, apesar de curioso quanto as desventuras que aparentemente havia vivido, acreditada não ser de bom tom perguntar. Sorriu amarelo, um silêncio estranho havia se formado, não era mistério algum que não sabia manter conversas. Ofereceu um novo cigarro ao homem como forma de quebrar o gelo, o estranho lhe sorriu e desta vez o acendeu por conta. 

— Estava  acordado durante a madrugada? Quero dizer, sabe que não estou sozinho. — o cozinheiro pergunta.

— Brevemente. — diz, parando para outra tragada. — Tenho a impressão de que vi alguém me tirando o sapato, e depois disso só quando você e outra mulher me ofereceram esta roupa. Está velejando só com sua esposa?

— Não! Não — o cozinheiro se engasgou — Não sou casado. Viajamos em quatro atualmente: uma pirralha, a mulher que ouviu a voz, uma gata e eu. 

— Entendi, então só moram juntos?

— Mais ou menos. Não sei exatamente se a chamaram, ela apenas entrou. — ditou pensativo. 

— Entrou na sua vida, você quer dizer?

— Não. Na tripulação — respondeu. — como eu ia dizendo, a gata e a menina me salvaram da execução, por conta disso vivo com elas. A mulher que ouviu veio depois disso. 

— Espera — o rapaz franziu o cenho, tirando o cigarro da boca. — Você disse que um gato lhe salvou?

— Sim. É um daqueles usuários de fruta do diabo — tragou profundamente — não sei ao certo, achei melhor não perguntar. — terminou a sentença segurando uma panela em mãos, iria finalmente servir a sopa. 

Ao colocá-la na mesa, viu as pupilas do homem se expandirem, era satisfatório ver essa reação para sua comida.

— Ah! Esqueci-me da pimenta. Um segundo.

Pegou da bancada um vidrinho com uma mistura de sua autoria: várias pimentas fervidas e amassadas com alguns outros condimentos para aumentar o sabor. Usava normalmente para aumentar o paladar de seus clientes, embora acreditasse que o rapaz não precisaria disso, considerando sua fome. Despejou dez gotinhas no prato, depois misturando com a colher enquanto o ouvia salivar — o cheiro estava o torturando. Contudo, quando ia lhe devolver o talher para se servir, sentiu um vento estranho vindo detrás de si, e virou-se para ver a porta aberta. 

— Credo. Jurei que estava trancada… — Flint murmura, deixando o talher na mesa e indo fechar a porta. 

Ao se aproximar da porta sentiu algo atingir seu corpo, não compreendia o que era, mas sentia um peso em suas costas e algo pressionar seu pescoço, como se tentasse sufocá-lo. Olhou para trás, mas não viu ninguém além do rapaz pálido no sofá. Antes que se desse conta, o aperto se tornou mais forte, estava verdadeiramente sufocando, tentava encontrar alguma de suas facas, mas todas haviam ficado no balcão (uma vez que tivera de tirar todas ao entregar a dólmã ao homem). Bateu na parede, tentando talvez retirar aquele encosto que lhe assombrava. 

 Os sons se tornaram perceptíveis e o visitante, que deglutiu com grande rapidez o alimento, se deu conta do que ocorria com o homem. Esperava que a situação se resolvesse naturalmente, como geralmente acontecia, porém um desespero lhe possuiu quando percebeu uma foice meia-lua, devidamente afiada, flutuando sob sua cabeça. Olhou para todos os lados; não era um guerreiro e mal conseguia levantar seus braços, logo não adiantaria o uso de armas. De toda maneira, observar não era uma opção — não deixaria morrer em vão quem lhe deu um cigarro —, forçou suas pernas, utilizando o resto de energia que lhe restava e então, fez o máximo que podia ser feito:

— Ei — chamou a atenção para si e assim que a conquistou, arremessou todo o conteúdo de um balde que, convenientemente, encontrou no chão. O encosto se revelou: uma mulher de cabelos negros, dois chifres e corpo esguio, segurando a foice numa mão e o cozinheiro arqueado num mata-leão com a outra.

— O que está acontecendo aqui? — A porta fora agressivamente aberta, revelando a figura furiosa de Belka. Atrás de si, a capitã e a ex-marinheira carregando várias sacolas. 

Flint suspirou derrotado, aquele não era seu dia de sorte.


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Notas finais do capítulo

No geral, não desejo dizer nada em especial a vocês leitores e vou os livrar de minha presença. Comentem algo se possível, meus caros, não estou disposto a dar meu posto de fantasma a mais ninguém.

Até o próximo.



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