Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 5
East Blue, alto-mar (Marine 153rd)


Notas iniciais do capítulo

Boa noite, estimados marujos.
No capítulo de hoje, encerramos o primeiro arco dessa tragédia. Agradeço humildemente àqueles que não só se importaram com a história como também compadeceram com minha escravidão.
Não irei me prolongar demais aqui no início, visto que a cada palavra fora da linha é descontada do meu salário (a liberdade de expressão é uma virtude que só cabe aos vivos), mas nos veremos nas notas finais, sim? Boa leitura.



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Impetuoso como era, o sol não se importou com os piratas cansados e começou sua ascensão pelo céu na mesma hora de sempre, os inibindo de dormir o tanto que precisavam — não que fossem conseguir, de qualquer forma. A noite anterior fora terrível, protagonizada pela sinfonia plangente e irreprimível de uma capitã (criança) desesperada. E quem dera que fosse pelo medo de serem descobertos como os ladrões de um barco da Marinha!, pensava Flint, pois dessa forma ao menos poderia resolver o problema. No entanto, se tratava de uma situação fora do seu alcance. Era uma emergência. Precisavam, urgentemente, de um médico. 

   O caos se iniciou pouco depois da meia-noite. 

   Estavam os três alimentados e confortáveis; Belka e Flint ainda na mesa de jantar, bebendo para afogar o estresse daquele dia que não tinha fim, e Poyo — a contragosto — já recolhida nos aposentos do barco. De repente, a dupla mais velha daquele bando frustrado ouviu um grito medonho vindo do deque inferior. Saíram com uma rapidez inacreditável; o cozinheiro na frente, temendo o pior de olhos arregalados, e a imediata meio trôpega, mas ainda assim com considerável preocupação. Dentro do convés, deram de cara com a menininha torcida feito cobra, com metade do corpo na cama ainda coberto e o torço virado para o chão, regurgitando tudo que tinha no estômago. Os bracinhos seguravam na beira da madeira, tentando não se desequilibrar e cair de cara no próprio vômito, mas a pobrezinha não tinha mãos o bastante para não se sujar, e era olhar para baixo ou se afogar. Sua pele bronzeada estava pálida. Talvez até verde, se olhassem bem. Em volta de si, tanto o chão quanto o lençol estavam ensopados pela pasta mal-digerida do jantar, ainda cheirando a rabanete, mas com pitadas de suco-gástrico e suor. Uma imundice. 

— Valha-me Deus! — exclamou Belka, imediatamente tapando seu focinho. Esbarrou em si mesma enquanto tentava recuar, parte pelo enjoo, e outra pela quantidade exacerbada de álcool no corpinho de menos de um metro de altura. Apoiou-se tonta na parede, e mesmo que estivesse olhando a cena de longe e através de um só olho, não pode evitar de sentir certo desgosto: odiava bagunça e, acima de tudo, não suportava odores como aquele. 

Por outro lado, Flint não disse uma palavra e não levou sequer dois segundos para grudar na menininha. Levantou seu corpo febril pelas axilas, a pondo de quatro sobre a cama, virada para a fora — ao menos dessa forma não iria engasgar. Não era pesada, mas por estar tão mole fora difícil de firmar. Apressado, sentou-se ao seu lado sem se preocupar em se sujar, segurando os cabelos atrás da cabeça e inclinando-a para baixo, pois nem isso ela parecia capaz de fazer por conta. Era de dar pena, sua situação. Tremia os joelhos e braços de frio, com dificuldade para se equilibrar, e entre as golfadas delirava com um ou outro gemido sofrido. Não parecia ter sobrado muito dentro de si, todavia, o pouco que vinha, saia queimando a garganta. Poyo nunca havia passado por algo assim antes: sempre comeu de tudo, mas em pequenas quantidades, e o que entrava já era gasto em seguida porque corria demais. Eventuais desinterias ocorriam, é claro, a maioria por decorrência da ingestão de água contaminada e outras por comer alimentos que passaram do ponto, mas isso nunca foi o bastante para derrubá-la (era muito forte e se orgulhava disso). Contudo, essa única vez fora o bastante para perder toda a arrogância de se achar melhor que as doenças. Nada havia lhe feito tão mal. A cada puxada de ar, sentia um tijolo latejando dentro de seu estômago, por mais que tivesse certeza absoluta que respirar não tinha muito a ver com dor de barriga. Não conseguia conceber um porquê para aquela maldição cair justamente em suas costas. Porque, para ela, era disso que se tratava: uma maldição.  Afinal, estava bem agora pouco! Tinha um bom barco, tripulantes e, claro, havia desfrutado da melhor refeição de toda sua vida!  Decerto era o castigo por ter sido tão feliz num dia só. Só podia ser isso. 

— Você não vem me ajudar? — perguntou Flint, sem largar os cabelos da menina, mas consternado: só agora percebia que a cada jorro, Belka ia um passo para trás, e no momento já estava escondida pela porta, só com metade do rosto visível. Se não tivesse a flagrado naquele instante, teria sido tarde demais.

A gata dá um pulo ao perceber que foi pega, e tenta justificar: — Eu não tenho mãos, só patas — afirma com propriedade, numa frase regada pelos seus soluços-de-bêbado que só faziam o cozinheiro querer trucidá-la ainda mais (mas conteve-se em respeito a capitã). Suspirou profundamente, vendo que havia perdido aquela discussão. Nem que pudesse usar da força bruta, não poderia obrigá-la a ajudar. Quando o viu suspirar, Belka viu uma “carta branca” e não tardou em sair correndo dali, aproveitando a brecha antes que ele mudasse de ideia: dormiria na mesa de jantar, mas não em um cômodo fedido como aquele, e muito menos ajudaria a limpar aquela bagunça toda num barco que nem deles era! Agora sozinho, restou a ele ajudar a menininha a se levantar, trêmula, e guiá-la até o banheiro para que pudesse se banhar e se trocar.  

Assim foram as arrastadas horas até o amanhecer. Flint velou a noite inteira, garantindo que Poyo tivesse o mínimo de descanso. Cruzava os dedos para que não fosse algo grave demais, que se resolvesse sozinho com o tempo, mas a madrugada não parecia ser longa o bastante para sua prece se realizar. Sentia-se culpado pelo mal-estar da menina, assumindo que sua comida havia desencadeado tudo aquilo, e não o fato dela ter comido demais (que era o real motivo). Por causa disso, não se incomodou em se submeter ao trabalho de babá, correndo de meia hora para o mar para não sujar mais uma cama ou outro muda de roupas (além das que usou quando acordou pela primeira vez, especificamente). No fim da noite, já era um especialista em prender os cabelos sem machucá-la, além de conseguir evitar perfeitamente o barulho enquanto passava pela gata adormecida na sala de jantar. Não era o que ele esperava para a primeira noite depois de escapar da morte, mas de qualquer forma ele também não estava esperando ser salvo em primeiro lugar. Já que viveu, estava em débito com a “enferma”; e era mais do que sua obrigação aprender como ajudá-las. 

≈≈≈

Às nove da manhã o sol estava alto no céu. Belka até tentou, mas não tinha jeito de continuar dormindo por causa da luz somada a uma barulheira desconhecida vinda do lado de fora do barco. Ao levantar-se, sentiu sua cabeça martelar: com certeza estava de ressaca por ter bebido demais (já era uma situação corriqueira). Consequente e convenientemente, não tinha nem ideia do inferno que seus companheiros de viagem haviam passado durante a madrugada anterior, então estava muito calma. Espreguiçou-se sem pressa, de olhos apertadinhos e boca seca, depois indo direto à saída do convés para implorar (da forma mais educada que sua dor de cabeça permitia) para que fizessem silêncio. Como poderiam ser tão barulhentos a essa hora da manhã?!, amaldiçoou em pensamento, sem nem imaginar o que a esperava. 

Do lado de fora, como se ativasse um transtorno de estresse pós-traumático, eriçou-se por inteira ao sentir o cheiro terrível, e as memórias da noite anterior lhe vieram em flashes: o grito, a capitã passando mal, sujeira pra todo lado. Não precisou mais forçar seus olhos para mantê-los abertos: acordou na hora.  Em sua frente, Poyo estava pendurada na proa do navio, usando uma roupa de marinheiro que dava quase o dobro de seu tamanho — peças masculinas, a propósito — e se livrando mais uma vez do que continuava na barriga. Olhou para o lado e deu de cara com Flint caído no chão, os olhos vermelhos arregalados e com olheiras que mais pareciam crateras, talvez tentando descansar um pouco daquela noite sofrida. Até se sentiu mal por ele, mas, por incrível que pareça, isso não era o que mais lhe chamava atenção no momento, porque todo seu campo de visão fora tomado por uma ilha. Estavam quase na encosta, se tivesse demorado um pouco mais para acordar, talvez estivesse naufragados na águas rasas agora. Precisava ir ao leme.  

— Precisamos parar aqui... — Poyo choramingou, olhando para a imediata com meia cabeça virada, só o suficiente para ver o quão verde estava. A gata não pode recusar, também estava preocupada com o estado da pirralha.

— Leme a bombordo, Flint! Atracamos aqui. — Belka gritou, o cozinheiro se levantou no mesmo segundo. 

Enquanto Flint virava o leme, Belka correu para segurar a capitã que quase caíra na água com o movimento. A colocou sentada e seguiu para recolher as velas, se perguntando em que momento os dois pensaram que era uma boa ideia navegar sem ela acordada e ainda no meio da madrugada. Contudo, dado a cara deles, preferiu nem imaginar o ponto que atingiram para chegar àquela decisão. Naquele momento, só sabia que precisavam de terra firme (e de um barco novo, pois não voltaria ao deque inferior batizado pelos restos da sopa de rabanetes). 

De cima das cordas, pode avistar o porto com mais clareza, e já ia pedir para que jogassem a âncora para ir de bote até lá, porém parou no meio do ato ao perceber um homem sendo chutado ao mar por uma mulher de cabelos curtos. Naquele ali, não dava de jeito nenhum. A outra doca estava ocupada, mas teria que servir. Passou as ordens para o cozinheiro, que foi sem pestanejar, provavelmente já anestesiado  por tudo que passara, e seguiu sozinha para recolher todos os suprimentos que restavam no barco. Tinha uma sorte danada de estar com seu uniforme de marinheira, pois assim poderia fingir que estava tudo certo, como se fosse normal apenas três pessoas (um gato, uma criança e um homem de dólmã ensanguentado) sair de um galeão gigantesco. 

Atracaram em uma velocidade incrível para três pesos mortos, estando de pés no cais em menos de dez minutos do momento que avisaram a mulher “queimando arquivos no fundo do mar” — outro nome para assassinato, já que Belka não queria acreditar no que tinha visto. A capitã saiu em disparada como sempre, só que dessa vez a mudança do embalo do mar para o chão fixo não foi agradável, e sim um gatilho para outra vez sofrer com o engulho e mirar sua cabeça ao mar. Não deu um segundo para Flint correr e socorrê-la, a segurando antes de mergulhar. Por fim, a imediata desceu com uma pilha de sacolas de compras, analisando o novo terreno pela primeira vez (como Poyo era uma emergência, nem se preocupou em saber que ilha era aquela). “Ah, se arrependimento matasse…”, mas tanto faz quando se vai morrer de qualquer forma! Ao fundo, dois imensos prédios com o mesmo símbolo do galeão cobriam o céu, e a frente vinha uma mulher de cabelos curtos e negros, a mesma do outro porto, uniformizada com os trajes da marinha. Sua pressão foi aos pés e não teve nem tempo de avisar que cairia, pois quando foi ver já estava escorada nos braços do cozinheiro, que por algum milagre percebeu seu apagão. 

Como se não houvesse sofrido o suficiente, aquela era a prova definitiva de que Deus jamais estaria ao seu lado. Após o pequeno lapso — tão ligeiro que o cozinheiro mal tivera tempo de reagir —, a gatuna retomou sua pose (neste ponto sequer sentia os efeitos da ressaca, o pavor tratou de curá-la), eriçando seus pelos e tomando uma posição defensiva, afinal era a única com as mínimas condições físicas de lutar naquele momento. Não partiu para cima da marinheira, esperou pacientemente o primeiro movimento partir da agente da lei, entretanto nada a atingiu. Por outro lado, Flint não esperava por nada, o desmaio da gata clareou sua mente — até  então repleta de preocupações para com a capitã — , e pode notar o infeliz local onde atracaram e, principalmente, a mulher que os observava. Não era um homem fraco, já havia vencido batalhas e vivenciado aventuras suficiente para compreender o que tornava-o forte, contudo a experiência não tiraria de si o embargo da vida. No fim das contas, fora desde os seus primórdios um desafortunado e as sequelas de seu sofrimento o amaldiçoariam para sempre. A escuridão o tomou. 

— Flint! — guinchou Belka em choque. Não esperava que na situação desagradável em que se encontravam o aliado teria a ousadia de cair desfalecido e pouco lhe importava se quase caiu no mar, havia sim a abandonado em uma saia justa.
— Não me importa quem sejam, o que fazem com a garota? — bradou, imponente, a mulher de cabelos curtos. A imedigata, até então apavorada, agora era tomada por uma irritação sem igual, quem essa imbecil pensa que é? — Eu quero respostas e quero agora! Levem-me até o capitão e posso considerar poupá-los.

O sorriso zombeteiro automaticamente fora desenhado nos lábios felinos e apesar do perigo iminente, deixou escapar uma risadinha afrontosa: — A capitã, você quer dizer? — perguntou, mostrando os dentes afiados e observando atentamente a reação da marinheira.— Não precisa ir a lugar algum, já está olhando para ela!

A mulher, até então estática pareceu perdeu uma fração de sua compostura e, claramente irritada, perguntou ao bichano: — Então seja uma capitã digna e diga-me seu nome, criatura

A infância é uma fase deveras complexa e a mente tola, ou apenas mal formada, de Poyo pareceu não compreender a gravidade daquela situação, pois reconhecer o “ar pesado” é uma das habilidades reservadas a vida adulta (ou ao menos àqueles que têm senso comum) e ela como um exímio exemplo de sua classe, não tinha essas regalias. Aliás, a anterior incapacidade também pareceu se perder entre a vontade de se provar, porque não pestanejou e agiu conforme a emoção, tomando a fala num grito eufórico e orgulhoso: 

— Sou eu! — os olhos da mulher caíram sob a pirralha.— Me chamo Poyo. — sorriu com todos os dentes.  Belka, esperando exatamente esta reação, sentiu-se vitoriosa: além de confirmar a imbecilidade da capitã como uma artimanha, teve o deleite em desarmar o inimigo em um único movimento. — O que quer aqui? — a capitãzinha levantou ainda cambaleando, não importava quão poucos nutrientes estivessem em seu corpo, era seu dever proteger a tripulação!

O que ninguém esperava, com ênfase na imediata, era o quão longe os impulsos tolos da, auto proclamada,  mandante do bando poderiam ir. Foi rápida como uma flecha, e em um segundo já estava sob os ombros da marinheira, numa falha tentativa de lhe desferir um chute. Fora pega no ar pelo alvo. 

O gosto da derrota… como era amargo. 

— Me coloque no chão. — esperneava a menina, nesse momento  parecia nem se lembrar das posições que ocupavam e sob o olhar atento de sua subordinada,  apenas desejava que o enjoo não retornasse. Consternada e percebendo que a mulher se divertia em segurá-la como um maldito peixe, impulsionou seu corpo para cima, a fim de encontrar os bíceps do alvo, travando sua mandíbula no local. O instinto de sobrevivência gritava dentro de si.

A marinheira nem sentiu a mordida. Na verdade, foi mais o choque da situação que a fez agir. Enquanto era atacada, no mesmo ímpeto que parara o golpe da menina antes, a desencaixou do braço sem pensar muito, como uma mãe-gato levando seus filhotes para longe de uma encrenca (tirando o fato que a pegou pela camiseta e não pelo cangote). A devolveu ao solo; por mais que seu rosto estivesse sério, no fundo havia perdido a compostura completamente. Sua primeira vontade era questionar como? E, acima disso, por quê? Afinal, nunca havia enfrentado uma situação tão ímpar quanto essa; quero dizer, de fato estava cara a cara com um gato cor de rosa, um homem desmaiado e uma criança que acabara de a morder. Entretanto, todas as perguntas que tinha teriam de ser deixadas para outro momento, umas vez que as sirenes começaram a apitar: seu antigo-chefe despertou do soco que desferiu e começou a mover os pauzinhos para ir atrás dela. Precisava fazer algo.
— Para dentro do meu barco, agora! Eles chegarão logo. — ditou e esperou que o recado fosse entendido pela usuária da fruta do diabo, seu objetivo havia mudado. — Eu levarei o homem para dentro, a gata deve preparar as velas e, capitã, você deve trazer os suprimentos, não podemos arriscar sua saúde. — se havia alguma dúvida, fora retirada naquela frase: estavam, estranhamente, no mesmo time.
 

≈≈≈

Sentia pontadas infernais no lado esquerdo da cabeça e a luz irritava seus olhos, impedindo que o cozinheiro os abrisse por completo. Onde caralhos estava? O embalo característico do mar e o cheiro da maresia denunciavam um único lugar: um barco. Mas qual? Tinha poucas memórias do que acontecera antes daquele exato momento e, além disso, a voz estridente de Poyo berrando em seu ouvido o impedia de pensar com calma. Teria tudo aquilo sido um enorme pesadelo ou quiçá um delírio causado pelo álcool? Era plausível, se fosse outra situação. No entanto, não havia bebido (dessa vez) o suficiente para alucinar, logo, onde estava? 

— Trata logo de levantar, infeliz! — ouvia ao fundo. Sua capitã era mesmo mal educada… Não via que estava pensando? — Eu não vou conseguir um cozinheiro melhor que você, nunca! — continuava a gritar e a gritar. A voz falhava vez ou outra. Parecia chorar copiosamente. 

Com dificuldade abriu os olhos e o mundo pareceu rodopiar novamente: estava em mar aberto; em um barco exótico e desconhecido; a mulher estava lá. Precisava urgentemente de nicotina. 

— Está louca, Poyo? Não vê que esse putinho está fazendo corpo mole para não me ajudar? — A gata diz, ofegante. — JÁ ACORDOU FAZ TEMPO E PENSA QUE NÃO VI! 

Após ouvir as súplicas da garotinha, juntos dos gritos indignados da felina, levantou. Precisava acalentar a capitã e alimentá-la (e neste processo alimentar seu vício, afinal a quantas horas não fumava?).
— Minha cabeça latejava, por isso não levantei. — explicou-se, mesmo que não houvesse necessidade. — Está tudo bem, Poyo. Foi somente uma batida, assim que levantar farei algo para comer. — e após lhe secar as lágrimas e dar um leve afago nos cabelos, mandou-a ir se divertir. Agora, o cigarro era sua prioridade. 

— Ora, acha que mimar a capitã vai te livrar do trabalho? — a imediata reclamou. Somente nesse momento pode perceber o motivo da voz ofegante: estava coberta de suor, corcunda em um banquinho de não mais que quarenta centímetros e remando sozinha o barco com um remo que facilmente dava o dobro de sua altura. Bem, não exatamente sozinha, porque ela estava ao fundo, mas preferiu ignorar sua presença até que houvesse o mínimo de nicotina em seu corpo. 

— Eu vou fumar um cigarro, retirar a dólmã e volto para ajudá-las. — Não se estendeu em sua fala, gostaria de ir o quanto antes. A gata não pareceu satisfeita, afinal, nunca se sabe se esse quando esse “logo” viria, e até lá poderia haver algum vento.

Partiu em direção ao ninho do corvo com o cigarro entre os lábios, sentindo o alívio imediato causado pela maior tragada que pode dar no momento. O doce sabor da nicotina o trazia para a realidade e esta era infernal, nem mesmo todos os cigarros de sua caixa o fariam, verdadeiramente, relaxar. Almejava um pouco de silêncio na borda do navio, mas nem isso lhe era permitido com aquela tão particular tripulação. Repensou sua vida num momento; era essa sua sina? E, para começo de conversa, seria essa ruim o suficiente para todos os pecados que cometeu? Verdade seja dita, tanto a gata quanto a capitã tinham seu charme, e essa noite que passara com elas foi o bastante para perceber que, realmente, não estava num pesadelo. Suspirando retirou a roupa de cozinheiro, dobrando-a com cuidado antes de se sentar. O primeiro cigarro havia acabado. Sem demora acendeu mais um; depois recompensaria a felina por todo seu esforço — e por tê-lo acolhido também. 

 Se necessário, Flint se descreveria com uma palavra: resiliente. Nunca teve o prazer da escolha, precisa constantemente se acostumar com o que lhe era imposto (seja as relações, os trabalhos e os gritos), iniciou a vida menor que uma alga marinha. Talvez por isso não conseguisse almejar muito.
A distância não cura as doenças e muito menos trata as feridas presentes nas raízes; era um exemplo de criança amaldiçoada, não no sentido mítico e sim no plano mais humano possível, sua desgraça fora dada a si no berço. Cresceu malquisto num ambiente sem amor, e as pessoas que passaram por sua vida fizeram questão de destroçar qualquer sinal de personalidade social que pudesse desenvolver. Desejavam um serviçal, não um companheiro ou, no caso de sua mãe, um bom filho (ao menos não desejava o tipo de “bom filho” que ele poderia oferecer). Temia, mais que a morte, esta parte de seu passado. Não importava o quanto  fizesse; a mulher que lhe deu a luz também a tirou, quebrando não só partes de seu corpo durante anos de existência como também seu espírito, e essas feridas não cicatrizariam nunca.

Entranhado dentro de si, o medo o consumiu, e mesmo que não fizesse o menor sentido para quem não estivesse sob sua pele, não poderia se libertar. Temeu relações no início, laços fortes o deixavam aprisionado. Mas, acima dessa sensação de confinamento, toda vez que conversava com uma mulher, todos os sentimentos negativos retornavam, e nenhuma relação poderia se desenvolver dessa forma. Foi assim com várias pessoas, a princípio tentando se enturmar, mas depois desistindo porque a aproximação sempre o levava a dor, e se excluir do mundo normal parecia uma opção mais segura. Quando percebeu, havia caído ainda mais um poço sem fundo, e o simples ato de chegar perto delas lhe causava os maiores arrepios. Não era ela, a mulher do barco. Eram todas. Todas tinham esse efeito sobre si, e no momento que realizou estar em um caminho sem volta, os cigarros da caixa se esgotaram. 

 Levantou sentindo o vento desarrumar seus cabelos, agradecendo pela bondade do Deuses em presenteá-los com um bom clima; ao menos a imediata não teria do que reclamar por hora. Após limpar a poeira das calças (e constatar que sua dólmã estava inutilizável), se dirigiu para a cozinha, certamente estava na hora do jantar. Ao vê-lo se movendo, a face de Poyo se iluminou, o seguindo em uma corrida eufórica, imediatamente atrás dele. A pedido da imediata, respeitou o período de reflexão do homem (ou o período de “corpo mole” e “vadiagem”, como ela preferiu nomear) e aguardou pacientemente a hora em que ele retornaria para alimentá-la. Tinha completa certeza que Flint nunca a deixaria passar fome, e é por isso que sabia que ele era o cozinheiro certo para seu navio pirata. Na cozinha, observou solicita o homem lidar com os vegetais, esperando receber qualquer ordem de afazeres, já que precisava de alguma forma pagar pela companhia na noite anterior. Contudo, ela nunca veio. Conversaram pouco nesse período, mas Flint parecia apreciar sua companhia, deixando-a a contar suas histórias e reagindo somente quando necessário. Era divertido ter alguém que a ouvisse, estava acostumada a ser mandada calar a boca e, por sua vez, o homem se sentia bem em ter alguém que, de fato, prestava atenção em si. Com a lua no céu e os pratos postos na mesinha (que só tinha duas cadeiras, a propósito, duas pessoas teriam de comer no sofá), o cozinheiro serviu aos companheiros o que melhor podia ser feito com legumes e alguns peixes — estes adquiridos pela estranha, que não pensou duas vezes em jogar-se ao mar para conseguir algumas iguarias para completar a refeição —. Sentaram-se todos: Belka e Flint na mesa, porque a gata jamais se sujeitaria a comer no sofá e já estava cansada de ver Poyo mastigando em seu ouvido, e as outras duas onde restou.

— Essa comida está tãão boa! — disse que capitã, falando enquanto mastigava e, obviamente, o fazendo de boca aberta. — A Bertruska pegou ótimos peixes, né, Flint? Sua comida é a melhor, não sei o que seria de nós se você tivesse morrido. — a garotinha tagarelava sem parar, enquanto os outros dois se davam conta de que a estranha ainda não havia se apresentado. Na primeira brecha de Poyo, a felina começa: 

— Então… Bertruska, certo? Ficamos muito gratos pela carona que nos está dando até a próxima cidade. — diz, tentando sondar as motivações da mulher, e ao mesmo tempo buscando quebrar o gelo (pois o monólogo da menininha não levaria a lugar nenhum).  

— Até a próxima ilha? — soltou uma risada graciosa, ao menos o máximo que conseguia — Eu estou com vocês agora, não se preocupem. — e gargalhou alto, virando um caneco de bebida, acreditava ter deixado claro que agora era uma… “qual diabos é o nome desta tripulação?” pirata. 

Na mesma fração de segundo que a ex-marinheira se explicou, Belka no “susto” (que não era bem um susto, mas tinha esperanças de estar errada com suas suposições) tratou de fincar o garfo um centímetro na mão do cozinheiro, acidentalmente o impedindo de desmaiar outra vez. Flint a xingou alto, derrubando um copo no processo de se levantar correndo e ir lavar o ferimento na torneira, ainda com o talher preso a pele. 

Foi um segundo para a gata colar nele, tentando acudir: — Sinto muito, sinto muito! — suplicou em desespero. 

Poyo gargalhava, talvez não compreendendo a situação por inteiro; ou talvez fosse má de coração mesmo (improvável).  

— Pode deixar, eu resolvo. — Bertruska anuncia calmamente, deixando seu prato sobre o sofá e indo lado a lado ao homem. O loiro até podia ser muito mais alto, mas com certeza não tinha um por cento da força da militar, tampouco sua frieza e praticidade. Ela aproximou a mão para ajudá-lo e ele recuou, pálido. Percebendo a hesitação, ela pontua: — Relaxe, não vai doer muito. — e a sangue frio arrancou o garfo da mão, imediatamente estancando o sangramento com o dedo. 

Belka, uma maníaca por limpeza (se é que precisava ser maníaca para notar algo errado nessa situação), quase caiu dura no chão, oscilando os olhos no garfo ainda ensanguentado caído na pia, e na mulher, que não havia lavado as mão antes disso, segurando uma ferida aberta. Não era necessário ser médico para surtar. Como todos os gatos (e humanos), exigia o mínimo de higiene e até isso lhe era negado! Só podia pensar que fora condenada ao inferno, e seu futuro era chafurdar na carniça eternamente. Viveria com os porcos. Porcos loucos. Não queria acreditar que este era o seu destino… Entretanto, ver a menininha correndo com curativos em mãos, e sem jogar uma gota de álcool no machucado o cobrindo, percebeu que estava longe demais do ponto de volta. 

Em uma de suas sete vidas, foi uma menina terrível, e por isso merecia aquilo. 

A janta se findou ali e foram dormir, cada um com seu novo trauma.

≈≈≈

A sorte parecia finalmente dar as caras para o recém formado bando-pirata, pois uma corrente de ar rumo ao oeste perdurou por um dia e uma noite inteira. Sem precisar remar o drácar, restava aos tripulantes discutirem suas ambições, e nisso não havia adversidade: todos buscavam a Grand Line. Podiam até ser diferentes entre si e se contraporem na maior parte do tempo; afinal, a pirataria era um caminho, não seus objetivos de vida (com exceção da capitã, é claro). Contudo, tênue o quanto fosse, esses laço que criaram por estar em um mesmo barco já faziam parte deles. Era como dizia um dos contos piráticos da capitã: “O mundo os odeia, desde sempre e mesmo agora. Uni-vos então, pobre desafortunados, e fazei do barco o seu lar”. Eles, os amaldiçoados criminosos, não tinham nada além de uns aos outros, e assim iriam prosperar até o fim dos tempos. Tinham uma meta comum, restava agora uma rota. 

— Vamos direto à LogueTown, a gata sabe navegar. — dita Bertruska, sentada nas duas cadeiras da cabine, em frente a mesinha. A sua frente, Belka estava emburrada e com um mapa do East Blue esticado. — Tenho certeza de que o Monstro dos Mares é capaz de aguentar qualquer onda ou clima instável que nos aguarda.  

— Monstro dos mares? — perguntou Flint, este no sofá e participando indiretamente da discussão. Porém, sua pergunta foi ignorada porque Belka já saiu atropelando: 

— E acha mesmo que essa carniça vai nos comportar? A cabine está caindo aos pedaços, e nem cama temos! — cruzou seus braços, olhando de baixo para a mulher, o mais intimidadora que conseguia ser com seus bigodes. — Precisamos de outro barco. Um definitivo, dessa vez. 

— Ou vamos com ele, ou vão sem mim! — a ex-marinheira argumenta, sobrancelhas franzidas e com um bico. Não parecia ser tão assustadora agora. 

— Quem disse que te queríamos na nossa tripulação para começo de conversa?! 

— Chega! — Poyo finalmente se manifestou, estava sentada na bancada da “cozinha”. Todos ficaram em silêncio para observar a rapariga de um metro e pouco dando sermão com os braços na cintura: — Eu sou a capitã: ninguém sai daqui sem eu autorizar! Uma vez na carniça, para sempre parte da carniça. Não vão se livrar enquanto eu viver. — se levantou, indo em direção ao mapa esticado na mesa —  E por mais doloroso que seja, precisamos sim de outro barco. Esse não tem espaço para nossos tesouros. Partimos para essa ilha. — e apontou um pedaço verde qualquer no mapa, pois, como não sabia nem ler palavras, não fazia muita diferença para ela. 

Foi… estranho, mas ordens eram ordens. Seu dedo marcava um pedaço de terra considerável, grafado com um pequeno “DAWN ISLAND” ao topo. O cozinheiro e a imediata não tinham nem ouvido falar da cidade. Por sua vez, Bertruska sabia de sua existência e só. Acharam um pouco remoto, porém, Poyo parecia tão convicta de sua escolha que se sentiram seguros em assumir um tantico de inteligência em seu cérebro (que erro!). Velas ao vento, seguiram viagem até que, durante a madrugada, enfim avistaram um porto bem iluminado. Esquisitices e coincidências a parte, a capitã deu muita sorte e calhou de ser de fato um lugar habitado. E como era bem habitado, aliás! Belka não pode deixar de sorrir ao ver as residências chiquérrimas ao longe; mal podia esperar para descer e fazer compras por lá. A encosta era bem decorada, com palmeiras e prédios bem arquitetados e uma imensa muralha contornando a cidadela. Bem no fundinho, também podiam notar um palácio suntuoso com uma abóbada ao topo, cheio de colunas e, mais uma vez, cercado. Era uma capital, com certeza. Quer melhor lugar para conseguir um barco? Se desconsiderasse os mil e um perigos de invadir no meio da noite, estavam, sem dúvidas, no lucro. Que Deus olhasse por eles!

Como estavam no meio da noite e o drácar de dragão parecia tudo, menos um navio pirata, decidiram atracar em qualquer lugar mesmo. Amarraram o navio no primeiro lugar vago que acharam, retirando dele somente o necessário para sobreviver enquanto procuravam outra casa. A ex-marinheira ainda levou uns minutos a mais olhando para seu dragão, talvez tendo um momento de despedida com ele, mas não durou muito porque, de repente, ouviu um grito ensurdecedor da capitã: 

— HOMEM À VISTA! — clamou aos demais companheiros, não se importando com o horário ou com os moradores adormecidos da cidade. A frase foi a primeira que lhe veio à mente na hora: como deveria reagir a uma situação dessas? Era a primeira vez que avistava um moribundo tão moribundo assim. Sua cabecinha diabólica só podia ver aquilo como, no mínimo, interessante. 

No chão, havia um homem estirado na enseada, roupas rasgadas e sujas pela areia. Fedia a Flint (álcool e cigarro), além de outro cheiro que não poderia distinguir. Seus machucados eram superficiais, vergões e arranhões e sequer havia sangue em suas vestes (talvez o mar tivesse as limpado, nunca saberia). Porém algo naquele indivíduo lhe era estranho e curioso, não havia nada em si que lembrasse os comuns manguaças que enfeitam os bares e tavernas; tinha porte, mesmo desmaiado. As vestes pareciam muito melhores do que todas as que já vira em toda sua vida — afinal, se ela estivesse naquele estado, com certeza o mar descosturaria suas roupas a deixando pelada, e ele ainda estava até-que-bem vestido. Divagando sobre a classe, não se deu conta que seu cozinheiro junto de Bertruska já haviam o retirado da relva, carregando-o para um local seco.

Precisavam hidratar o homem e para isso deveriam acordá-lo em primeiro lugar. 


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Notas finais do capítulo

Enquanto para minhas empregadoras comentários só servem para amaciar seus egos, para mim, é meu ganha-pão. Por isso, humilho-me novamente, suplicando por suas esmolas para diminuir o sofrimento de minha existência — e custa muito alimentar um coitado como eu? Comentem. Expressem-se. Não preciso de muito, somente o necessário para me sustentar.

Finalizo com um adeus sem ânimo; cansado. Tenham um excelente dia, mortais.



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