Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 38
Grand-Line, Carniça (Fruta do Diabo)




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Bem antes de ser gato, Belka, em seus tempos áureos, precisava apenas estalar os dedos para que todos seus desejos fossem realizados e, se por um acaso alguém tentasse lhe negar um novo vestido, ou quiçá um novo par de joias para combinar com seus sapatos chiques, não havia problema, afinal tinha total liberdade para demitir qualquer um que lhe maltratasse dentro daquela casa. 

Aqueles sim eram bons tempos. Como a única da grande e influente família Bosman que mantinha-se frequentemente na cidade (uma vez que os demais adultos, com exceção de seus irmãos, costumavam passar a maior parte do tempo viajando de ilha em ilha em reuniões de negócios), a grande mansão do reino de Náutica era seu palácio particular, sempre bem frequentado pela grande burguesia e com os melhores jardins de toda Cowrie. É claro que tinha suas obrigações como nobre, ser parte da elite não era fácil como todos pensam — as aulas de etiqueta nos horários inadequados sempre a incomodavam, bem como o assédio dos pobres da cidade baixa, que sempre a tiravam do sério — não obstante, sabendo que deveria se distinguir da ralé, a garota não poderia sentir-se mais satisfeita sobre a própria vida e, destarte, usava cada olhar invejoso que recebia das meninas de sua idade como armadura, da mesma forma que fazia os elogios sinceros vindo dos homens que a cobiçavam, sua espada.

As tardes eram longas e as noites de verão quase não tinham estrelas, dado que as luzes da cidade estavam sempre acesas e dispostas a recebê-la. Belka era uma humana como qualquer outra, tirando o fato de que era melhor que cada um deles e, quando dizia isso, tinha quinze pessoas ao seu redor para atestar seu caso. Tudo sempre era perfeito, ou melhor dizendo, ao menos para ela, que vivia no topo de sua pirâmide. Contudo, para aqueles que estavam sob seus pés durante sua passagem, as opiniões não poderiam ser mais diferentes: enquanto, por um lado, ela afirmaria descaradamente que as faces enrugadas e olhos rolando não passavam da mais pura inveja daqueles que a rodeavam, seus empregados estavam planejando uma verdadeira tramoia para cima de si, fazendo de tudo para transformar sua vida num verdadeiro inferno.

Fosse trocando suas roupas de lugar ou a humilhando publicamente com suas más educações, os subordinados não mediam esforços para destruir sua reputação e não era preciso de muito para notar o quão péssimo era o tratamento que eles lhe davam: estavam cegos pela ambição de ascender em suas vidas, por isso descontavam suas frustrações proletárias sobre a pobre garotinha abençoada por Deus, que nada fazia para pessoalmente os ofender, mas ao mesmo tempo continuava aguentando sozinha suas torturas. Só que ela tinha a impressão que ninguém se importava realmente com seu sofrimento. Seus pais eram ocupados demais para ela e os pretendentes não esperavam ouvi-la reclamar. Entre todos os súditos, restavam os irmãos, mas eles também não pareciam muito interessados nos males que poderiam ocorrer consigodecerto era uma falta de classe sair falando mal de quem a servia diariamente, mas que culpa ela tinha em denunciá-los, se ninguém fazia o que queria direito e, por conta disso, ela corria risco de vida?

No fim das contas, diferente dos lençóis trocados e vestidos rasgados, que eram irritantes, mas não eram verdadeiros atentados, bastou um dia de descuido para que tudo que prezava ruísse diante de seus olhos e, tão rápido quanto começou, seu império todo foi a baixo, exatamente como nos contos fantásticos, mas, diferente de Eva, a fruta que era o próprio Diabo.

Belka não desconfiou dos risos parvos que a seguiam. Certa feita, quando a refeição chegou aos seus aposentos, ela comeu sem pensar, porque jamais imaginaria que a estupidez dos pobres seria capaz de vencer a cultura e ciência que por anos lhe fora ensinada. Foi ingênua, sim, mas porque naquela época não existia a maldade. Isto é, aqueles idiotas a odiavam porque era rica e linda e só por isso, queriam vê-la morta, estirada no quintal! Como é que poderia ver aquilo se aproximar? Talvez porque fosse desde o princípio destinada ao martírio, no dia em que seu assassinato estava programado, não houve sequer uma pessoa pela mansão que pudesse ajudá-la. Estavam todos longe, isentos da culpa de não a salvar. No dia seguinte, quando seus pais voltaram para não encontrar nada além do vestido ensanguentado, nenhum empregado foi culpado; todos, todos riram de si enquanto os pais choravam baixinho e culpavam a própria ausência pelo desastre. Não havia vítimas, exceto ela, que, naquele exato momento, vagava moribunda pelas ruelas do que um dia fora seu próprio palácio. O caixão vazio que fora arreado à sua frente era seu, mas ela não foi convidada ao próprio funeral. Em meio aos parentes trêmulos e burgueses vestidos de preto, prestando condolências aos enlutados, Belka permaneceu de patas juntas atrás de uma moita até que não aguentou mais ver os reflexos de si mesma nas silhuetas das senhoritas acinturadas e, quando percebeu, já estava andando de volta, para longe daquele lugar e em direção a qualquer outro que pudesse a tornar mais forte.

Virou bicho e voltaria outra hora para tomar o que é seu, mas enquanto isso restava o dia de agora e o sentimento sujo de querer os castigar.

Buscar vingança não era fácil e, para um gato de rua, ter força era algo que parecia inalcançável. Os dias, mais curtos do que nunca, se passaram em um piscar de olhos, até que todos os nomes de quem a feriu pareciam estar vagos em meio ao sentimento de medo e inanição que a acometia. Sem qualquer experiência de vida e nem ao menos uma moeda no bolso, fora a primeira vez em sua vida que Belka entendera o verdadeiro significado de "fome" e, com a janela das novas experiências aberta, foi nesse momento que, pela primeira vez, encontrou prazer em tirar dos outros o que lhe faltava: assim como a metáfora de uma nova vida, tudo começou, de fato, com uma janela, quando, em meio as caçadas noturnas, notou de relance a luz quente de uma casa térrea que iluminava fraco os paralelepípedos desalinhados do beco onde, como em uma miragem, uma lata de lixo parecia estrategicamente posicionada. Ela não hesitou quando viu a sombra de uma mulher contra a cortina com seu cantarolar distraído. Sem nem pensar duas vezes, saltou do esconderijo em sua direção da janela aberta e então destroçou-lhe a carótida numa só arranhada, sentindo o sangue quente irromper em uma parábola diretamente para sua cara. Já que eles queriam tanto saber, foi nesse dia em que aceitou ser o monstro que se tornara. Foi o dia em que todo restante de sua humanidade foi embora.

— É por isso que ela morreu — Belka explicou, afiada como um picador de gelo e semicerrando os próprios olhos ao passo que levava a colher de sopa para sua boca. — Porque ela me roubou o que me era mais estimado — finalizou.

Sem resposta, um longo e gelado fio de suor escorreu pelas costas da pequena garota ruiva, que tremelicava enquanto ouvia a gata delirar sobre a sua história. O corpo inerte de sua mãe estava caído ao chão a alguns minutos, mas ela só tivera tempo de chegar para ver Belka se empanturrar feito um bicho em sua mesa de jantar, tamanho fora a serenidade da gata ao matá-la. Não fez barulho ou hesitou; a assassinou a sangue-frio e isso significava que certamente estava pronta para atacá-la também.

Sentindo as pernas hesitarem aos próprios passos, a garota, com os olhos estalados na face e a boca entreaberta em um suspiro de pavor contido, começou a recuar lentamente para porta da cozinha, sem se virar ou dizer uma palavra, entretanto, antes que conseguisse sair correndo, Belka se levantou da cadeira num pulo rápido, avançando até ela com a mesma colher em punho e subjugando-a com o entalhe afiado do cabo de prata. O berro que a menina daria fora interrompido pela mesma perfuração fina que lhe tirou a vida. Mesmo assim, a gata não parou de apunhalar seu corpo até que os membros, desgovernados, parassem de se contorcer no próprio sangue, caindo inertes como uma galinha depois do abate. 

Se limpou pouco depois e saiu da casa com a maior quantidade de joias que conseguiu pôr no corpo, deixando o casebre com as portas escancaradas e a certeza de que não havia mais ninguém naquela casa que pudesse ter presenciado o assassinato. Isto é, é claro que cedo ou tarde as descobririam no chão da cozinha, mas isso não lhe importava agora. Em sua cabeça, não havia qualquer resquício de arrependimento e, muito pelo contrário, a adrenalina que sentia era tanta que jamais pensara que poderia ter outra dose de prazer. 

A vingança era estupidamente doce, da mesma forma que era ter para si o dinheiro das peças roubadas — uma ínfima parcela do que um dia tivera, porém, com o preço de revenda de duas vidas inteiras e uma passagem só de ida para o inferno. Não se importava mais. Naquele momento, Belka partiu em busca de uma nova jornada, riscando o primeiro nome da lista de todos aqueles que, um dia, voltaria para buscar.

≈≈≈

Um solavanco na embarcação a fez acordar e, com uma tremenda enxaqueca, Belka abriu os olhos devagar, observando o fúnebre consultório de Morgan, onde a luz noturna invadia pela pequena escotilha coberta por uma cortina improvisada e, ao fundo, as vozes dos demais tripulantes oscilavam em uma cacofonia exaltada, discutindo sobre algo que não lhe dizia respeito aparentemente, pois não estava incluída naquilo para começo de conversa. Deixou um "tsc" escapar. Não havia álcool em seu sangue e o sentimento de sobriedade era algo que abominava mais do que a si mesma.

— Eu bem sabia que tinha algo de errado com aquela vendedora — sussurrou, em alto tom, Bertruska, claramente incomodada e continuando uma conversa já iniciada. O burburinho vinha da antessala do segundo pavimento do barco, a um corredor de distância de onde Belka estava. — Mas nunca vi uma mulher tão bonita ser má desse jeito — ela continuou, provavelmente suspirando.

— Pela primeira vez, acredito que a trambiqueira não tenha a ver com isso — Flint protestou. — Acho que ela não a venderia, se soubesse que podia se transformar de verdade...

A guerrilheira bateu em alguma superfície de madeira. 

— Mas ela não queria vendê-la! Veio até o porto para buscá-la! — Aumentou o tom de voz.

— Vocês não ouviram nada do que a Fio disse não?! — Poyo se intrometeu. Belka não a via, mas imaginou que estava cruzando os braços em frente ao corpo e emburrando o bico.

— Pó, pó! — a galinha concordou, soltando um pequeno cacarejo, mas agora sua voz já não soava mais como um galináceo. A gata franziu o cenho. — Autumn era má e ela me vendeu sim! — acrescentou a mesma voz.

Nesse instante, Belka não conseguiu conter o salto na cama, sentindo seu coração disparar e os olhos se arregalarem. Que diabos...

— A profecia era verdadeira, a Fio se transformou em um cisne, deixe de ser cético, Flint!

— E você deixe de dar ouvidos à trambiqueira! — O cozinheiro brigou com Bertruska. Todos se calaram por um instante e, por fim, ele soltou um suspiro cansado: — Mas, se você acredita que o que estamos vendo é um cisne, não tenho mais nada a acrescentar nessa conversa.

— Mama-Flint está certo, Autumn não era confiável-pó!

Sentindo uma pontada na nuca, Belka se levantou da cama, sentindo as pernas tremerem em demasia, tornando difícil manter-se em pé sem precisar se apoiar nas paredes. Preciso urgentemente de uma bebida, disse baixo, inspirando profundamente a fim de encontrar algum tipo de coragem dentro de si. Deveria deixar o quarto, mas a realidade lhe estapeou a face e sabia que no momento que pusesse as patas para fora do consultório, seu destino estaria selado para toda a eternidade. Por outras sete vidas, estaria amaldiçoada a viver como um gato.

— Não se levante ainda, vai acabar desmaiando novamente.

Talvez fosse culpa da vertigem, mas Belka sequer havia percebido a presença do homem no quarto e, destarte, quando a mão gélida de Morgan lhe tocou a testa, checando sua temperatura, ela deu um salto no lugar, virando-se rapidamente para olhá-lo e já com a cauda partida em duas. Ele estava inalterável, olhando-a com firmeza através do fraco fogo azul que emanava de seu rabo. A conversa do lado de fora, agora um pouco mais animada e com audíveis gargalhadas de Bertruska, havia se tornado abafada e distante, como se um vidro os separasse.

— Considerando sua cara de merda, se quiser se matar, podemos resolver isso agora mesmo. — O médico apontou para a mesa, onde descansavam alguns frascos cheios de algo que Belka mal pôde observar devido a escuridão do local.

— Cala a boca... — ralhou, recolhendo o rabo e desviando o olhar. Não queria falar sobre isso, muito menos com um viadinho que se achava príncipe, pensou consigo mesma. Por outro lado, Morgan apenas levantou uma sobrancelha, debochado:

— Não deveria tratar com tamanha falta de educação quem salvou sua bunda — ele deu de ombros, acendendo um cigarro. A luz tênue do fogo a tentando a incendiá-lo. Como se quisesse estar viva para contar a história, praguejou. Apenas uma chicotada no lugar certo e... — E então, vai falar por conta própria, ou preciso pegar a evidência para saber do que estou falando?

Os olhos da gata se arregalaram e um xingamento ficou preso em seus lábios; não conseguia falar, sua boca estava seca e a garganta completamente fechada.

— Há quanto tempo...

— Há quanto tempo eu sei? — ele interpelou. — Desde hoje. Não estive vasculhando suas coisas durante a festa, se é o que você quer saber. Encontrei o restante quando te trouxe ao consultório.

— Então...

— Eu não contei — explicou calmamente, dando uma tragada no cigarro. — Se eles sabem o que aconteceu, foi ela quem contou, depois que aprendeu a falarDe toda maneira, reconheci a fruta, pois vi o Hiroshi segurando ela algumas vezes. Você a roubou?

— Não exatamente.

Mais uma vez, Morgan arqueou a sobrancelha e Belka soube que ele não confiava em sua palavra. Ela suspirou.

— O Frutinha deixou a mochila de presente para o Flint. A fruta ficou junto.

— Você roubou o Flint? O Flint? — Com os olhos um pouco arregalados, Morgan soltou um "uau" fraco, quase incrédulo, pesando-a com o olhar. — Você sabe que, se tivesse pedido, ele te daria ela, não é?

Belka não disse nada, sentindo um gosto amargo preencher sua boca.

— Vai contar para seu namoradinho agora? Pode ir. Não me importo com essa merda.

Morgan riu baixo, puxando outra tragada e soprando a fumaça para cima, sem se importar com o tamanho diminuto do quarto. — Pode ralhar o quanto quiser, você sabe exatamente onde porque errou. Até para nós, existe limite para o quão filhos da puta podemos ser — disse.

— Vai tomar no cu.

— Você pode me xingar o quanto eu quiser, não vai mudar o que você fez... — Deu de ombros. — Ou o que aconteceu nesse navio. Eu não vou contar.

— Eu sei que você não vai. É realmente mais fácil me denunciar de uma vez e me expulsar deste barco; vão ficar do seu lado com certeza, mas até para isso você não tem coragem! Você não tem forças nem para me ameaçar! — Ela apertou os olhos, cuspindo palavras de ódio enquanto assistia aos pequenos chamuscos que caíam do cigarro e desciam por alguns centímetros até se apagarem antes de tocar o chão. Queria que causassem um incêndio, cada um deles. No entanto, não incomodado com suas maldições silenciosas, o médico apenas riu baixo, sorrindo ladino à medida que via na gata o diagnóstico estampado. Era remorso.

— Ele te perdoaria e, por isso, ninguém poderia te expulsar. Esse é o problema, Belka. É você que está com medo de ser perdoada. Não quer assumir o que fez — disse a ela, em som monótono.

Nesse instante, o cheiro de fumaça no quarto fechado se tornou quase insuportável. A cabeça de Belka começou a pesar. Se até mesmo Morgan estava em posição de lhe dar uma lição de moral, o quão fundo era o poço que ela mesma havia cavado?, perguntou, sozinha, sentindo um ardor tomar sua garganta e os lábios começarem a tremer. Enfim, não aguentou mais e se pôs a chorar.

— Belka...

Morgan apagou o cigarro na própria bota e ajeitou a postura, engolindo em seco e sentindo a respiração pesar. Um gosto amargo tomava sua boca à medida que olhava para a gata, de cima a baixo, analisando cada pelo de seu corpo e as escleras vermelhas, cheias de mágoa; seu corpo estava escondido na penumbra e ele não podia enxergar muito além do que seus olhos, já acostumados com a escuridão do quarto, permitiam, mas ele não precisava de muito para ver a desolação tangível de seu olhar. Ela não dissera nada, porém, por mais que não conseguisse compreender como alguém podia ter motivações tão torpes, sobretudo em relação ao próprio corpo, o médico tinha completa certeza do que ela planejava para aquela fruta e, sem poder evitar, a dúvida que pairava em sua cabeça continuava a mesma: por que Belka se achava digna de tamanho poder? Se nem mesmo o mais ambicioso dos homens ousava ir contra a natureza duas vezes, buscando o poder de duas frutas do diabo, então por que diabos ela, que visivelmente detestava o que havia se tornado, insistia naquilo? 

Não importava o quanto olhasse, algo naquela situação não lhe descia de jeito nenhum e, na verdade, chegava a se considerar um pouco patético por conta disso. Quer dizer, ele não sabia o que havia a levado a tornar-se um gato, não obstante, não conseguia encontrar uma única justificativa para tamanha soberba cega, ao passo que não tinha conhecimento ou só ignorava o conhecimento universal de que, uma vez amaldiçoado, não havia nada além da morte que pudesse desfazer o que fora feito. Morreria daquela forma, como tantos outros que se arrependeram do contrato com o diabo. Morgan sabia que era seu dever como médico lhe dizer a verdade, mas a voz não entoava da garganta de forma alguma. Estava cansado. Finalmente, sem outras opções, ele apenas suspirou alto, sentando-se na cama de Flint e dispondo-se a ouvi-la falar.

— E o que você acha que iria acontecer, supondo que ela não tivesse comido antes? — perguntou a ela.

— Certamente não perderia meu tempo cacarejando por aí, como um maldito animal — Belka respondeu de prontidão, apertando as sobrancelhas, como se a pergunta de alguma forma a indignasse. — Se eu fosse humana, não precisaria estar vivendo com vocês na Carniça. Eu voltaria para casa — mentiu, olhando-o arrogante como sempre, mas com tamanha tristeza em seu olhar que quase fez Morgan recuar. Mas não podia.

— Isso se você fosse humana desde o princípio, você quer dizer — ele deu de ombros, olhando-a de cima. — Não adianta tentar fugir, agora que está envolvida até o pescoço conosco.

— Vocês que têm recompensas, eu não devo nada para ninguém! — Ela tirintou o olho esquerdo, sentindo nojo de seu tom de voz.

— E você acha que te receberiam de braços abertos em sua cidade natal? Depois de anos longe deles?

— Como não? Sou filha do barão e eles devem-me respeito! Comendo aquela fruta, eu voltaria para meu reinado e poderia viver longe dessa porra de vida pirata!

Nesse ponto, a respiração de Morgan estava tão pesada que seu peito doía a cada lufada de ar, ao mesmo tempo que as palmas de suas mãos agarravam-se uma na outra, movendo-se inconstante à medida que o suor gelado ali se formava. 

Os incontáveis anos estudando sobre medicina não foram o bastante para saber o que fazer naquela situação. Talvez fosse a inexperiência, mas mesmo que fosse, ela não mudava o fato de que se sentia um completo fracasso porque não tinha a menor ideia de como guiar aquela paciente dali. O prontuário parecia incendiar-se na sua cabeça — estava certo dele, estudara o teórico por vezes o suficiente para saber o que ocorria naquela situação, entretanto como havia de explicar a um enfermo que seu corpo já padecerá? Não havia forma amena de dar-lhe aquela notícia e ele não sabia nem dizer se queria a entregar. Em sua cabeça, apenas sua mãe, que sabia de tudo, seria capaz de lidar com aquela situação de maneira ética, mas, por outro lado, sentia que nunca estivera do lado "correto" do espectro, então...

— Belka, — interrompeu, severo, controlando a incerteza e também a avassaladora vontade de chamar pela mãe morta ali mesmo. — As Frutas-do-Diabo representam um poder quase que inalcançável, valem muito dinheiro e homens morreriam para conseguir somente uma... Você deve imaginar aonde eu quero chegar — pontuou, baixo, mas a gatuna não pareceu ser afetada por suas palavras e, invés disso, ela só o olhou debochada, como superior. (Os pacientes mais difíceis eram sempre aqueles que não queriam acreditar).

— Os poderes não são acumulativos, tampouco tem a possibilidade de devolução — continuou, sentindo as mãos tremerem e a voz vacilar. — Não aconteceria nada.

Ele completou friamente e, então, ninguém disse nada.

Ao fundo, o mar, calmo, continuou batendo contra o casco e a conversa ao fundo subiu a cozinha, alheia ao médico e gata, que apenas continuaram se encarando na escuridão do barco por um tempo mais longo do que um segundo deveria ser. Por fim, a imediata engoliu em seco, sentindo o peso do corpo a puxar para baixo.

— Veja, Morgan, eu estudei sobre as frutas, não sou a porra de uma anta...

Belka começou, num tom profundo e sem variação, que até poderia ser considerado ameno, senão fosse pelo forte soco que dera madeira do beliche. Seus olhos brilhavam forte e doentio, como duas safiras encravadas em um crânio nas profundezas de um barco pirata.

— Essa maldição deveria me permitir voltar à forma humana, eu não deveria estar o tempo inteiro assim! — Fez sinal com as mãos, para cima e para baixo, em direção ao próprio corpo. — Claramente tinha algo errado com a primeira fruta! Por isso eu pensei que...

— Se você pensa que o que deu errado com você foi culpa de uma fruta "defeituosa", então você está se enganando porque já sabe da verdade — Morgan fechou os olhos. — Elas não são feitas em massa, não existem "erros de fabricação". As frutas do diabo são assim porque são. Você sabia dos riscos quando–

— Eu não sabia de porra nenhuma! Não me venha com essa história, você não me conhece! — gritou, já perdendo a calma.

— Então, vai me dizer que acidentalmente você caiu sobre uma fruta? Que te forçaram a comer? — O médico levantou da cama, sobrepujando a ínfima altura da gatuna, que olhava para cima, de olhos esbugalhados e boca arreganhada em um ódio descompassado. — Não interessa como você chegou até ela, você não vai a lugar algum se continuar usando os outros como muleta. Agora que você comeu, já foi. Não era antes, mas já se tornou culpa sua.

— ELES ME ENVENENARAM COM ESSA MERDA! — rebateu, a voz bem mais alta do que antes e purgando em ódio, puxando com força as próprias orelhas para baixo. — Por que eu escolheria ser essa coisa? Eu era rica, Morgan, uma aristocrata! Jamais me tornaria uma pirata xexelenta por opção!

— E ser aristocrata lá me impediu de parar aqui também? — pontuou o médico, desafiador, embora dessa vez o que lhe movia não era mera maldade e sim curiosidade, somada a uma vontade genuína de ajudar (e, considerando as limitações da paciente, provocá-la parecia a maneira mais simples de obter informações sobre seu caso).

— Você fala daquele seu buraco de consultório e casa meia-boca? Morgan, eu fui rica de verdade. Você nem sabe o que é ter dinheiro! Eu tinha mais criados em casa do que temos mobília aqui! Mais gente me servindo do que temos de talheres na cozinha! — berrou, cerrando os punhos ao lado do corpo: ela já não se importava, ou sequer percebia, que o andar de cima poderia ouvir o que ela tinha a dizer e, alinhado à desídia, mais uma vez, estava chorando copiosamente. — Mas de que adianta? Eu 'tô morta. Morta! Eles me tiraram tudo, devem ter enterrado na minha lápide um corpo qualquer. Meus pais nunca derramaram uma lágrima por todo o sofrimento que eu tive que passar! Pela fome e frio que eu passei na sua! E-eles...

— Foram eles que lhe esfaquearam pelas costas?

Uma onda atingiu o barco, alertando que do lado de fora os ventos começavam a se tornar mais intensos. Ao mesmo tempo, talvez inconformada pela alegação, ou então apenas insatisfeita com tudo, Belka usou de suas poucas forças para avançar em direção ao homem, dando-lhe um soco na bochecha esquerda, esperando o derrubar, no entanto, em proveito de sua fraqueza, Morgan a retribuiu com outro tapa na face, forte o suficiente para que seu corpinho cambalear para o lado.

Eu sou um médico de bosta, constatou a si mesmo, sentindo a palma da mão arder e a própria alma se estilhaçar. A dor que a imediata sentia era algo que ele não tinha capacidade de curar.

≈≈≈

Aos sons dos gritos de Belka, no andar de cima, uma atmosfera pesada encobria a cozinha da Carniça, onde Bertruska, Flint e Poyo se encaravam de canto, sem coragem para voltar a conversar, muito menos descer as escadas e ir até o consultório para entender o que estava acontecendo. Merin já havia largado tudo para ir até Morgan, mas dado que a discussão continuava, os piratas tinham certeza de que ela não tivera coragem para sequer abrir a porta do quarto, quem dirá do consultório e, portanto, aguardavam encurralados no andar de cima, sem poder tirar nenhum dos três daquela situação de merda. O clima não era dos melhores de maneira geral. Em contrapartida, Fionnula, a recém-chegada e menor atingida, estava bastante distraída sobre a bancada, balançando as pernas para frente e para trás.

— Acho que tem alguma coisa se aproximando da gente, pó... — disse ela, baixinho, vidrada nos dedinhos do pé que abriam como os das mãos.

— É só uma tempestade — respondeu Bertruska, sorrindo pequeno para a menininha de cabelos ruivos e pele morena, tentando consolá-la. Fionnula não parecia especialmente assustada, contudo.

Naquele momento, a guerrilheira estava de pé em frente a divisória do balcão e vestíbulo, paralela a Flint, que excepcionalmente agora estava sentado no sofá ao lado de Poyo, talvez porque engolir tudo que estava acontecendo de uma só vez era demais até para ele. Os dias estavam sendo bastante caóticos ultimamente; desde que abrigaram Hide a tripulação e até o incidente na ilha anterior, não conseguira dormir bem por sequer um dia, no entanto ao menos nem tudo era más notícias e, entre estar de volta na tripulação de Hanzo ou refém de uma bomba relógio no próprio barco, a nova figura de Fionnula, pequena, fofa e de bochechas rechonchudas, não era algo que precisaria se esforçar muito para tolerar. Independente dos poréns de ter uma nova boca para alimentar, ele podia dizer com certeza que sua cozinha estaria sempre aberta para receber quem precisasse — e não era como se uma criança fosse comer tanto, de qualquer forma.

Entretanto, ser complacente com a situação que estava não significava que a entendia como um todo e, aliás, nenhum deles sabia exatamente o que se passava com a menina-galinha que estava sobre o bar para começo de conversa. Como diabos que aquilo tinha acontecido?, se perguntavam enquanto a ideia de algo capaz daquilo ter "aparecido por acaso" na Carniça crescia em suas cabeças, tornando a teoria mais discrepante. Em outras palavras, já era um consenso de que alguém havia escondido "a coisa" ali dentro sem contar para ninguém, mas como isso podia acontecer embaixo do nariz de todos aqueles piratas? Teria um traidor de cara lavada junto de seus aliados?

Sem demora, todas as suspeitas caíram sobre Belka, mas não havia forma de confrontá-la no tempo em que ela continuasse no consultório, visto que estava trancada com Morgan e seu pranto era a única coisa que poderiam ouvir do andar de cima. Decidiram esperar. Já tinha alguns minutos que o médico não dizia um "a" fora do tom para que pudessem bisbilhotar a situação, mas mesmo que pudessem, não saberiam dizer se a entenderiam por completo, porque o que ouviram anteriormente não tinha sido o bastante para montar o quebra-cabeças daquela situação. Não obstante, desde que Belka começara a chorar nem adiantava tentar se concentrar numa resposta, pois sua voz era tão triste, tão desolada, que eles mal conseguiam respirar.

Por fim, Poyo interrompe o silêncio, num sussurro calmo:

— Será que ela o matou? — perguntou, sem olhar nenhum dos dois adultos, mas inegavelmente fria como a lâmina de uma faca. Flint fechou os olhos e franziu o cenho, contorcendo o lábio em insatisfação com a pergunta, mas antes que pudesse reagir de qualquer outra forma, Bertruska tomou a frente:

— A Merin não ia deixar — respondeu, suspirando pesadamente. — Acho que ele só não aumentou o tom de voz mais.

— E apenas ouviu o que a Belka tinha a dizer? — Levantou uma sobrancelha. — Isso não parece um pouco... Improvável?

— Não se ele não teve outra opção — interpelou Merin, de repente em cima do alçapão da sala: havia passado a porta sem abri-la e só Deus sabe quanto tempo estivera ali, parada e os encarando. (Fionnula levou um susto tão grande que quase caiu da bancada). — Eles estão falando sobre... o que aconteceu com ela, antes de chegar aqui.

— Como assim? — indagou Flint, ressabiado.

— O passado dela. Quem ela foi — respondeu.

— Você ouviu tudo isso, Merin? — Bertruska se levantou da banqueta, subitamente interessada.

— Eu...

— Deixe para depois, Bertruska — disse Flint, finalmente pondo-se de pé e estalando seus dedos em frente ao peito, alongando-se. — Isso há de chegar até nós em algum momento, quando ela quiser que chegue. De qualquer forma, você bem sabe que tem coisas que não gostamos de contar sob pressão, então não force ninguém a isso também.

A guerrilheira suspirou. — Não é bem um segredo mais — ela pontua.

— Se fosse, você não insistiria? — Apertou os olhos.

— Se fosse, eu não saberia

Outra onda bateu no casco, desestabilizando o eixo do navio de forma tão intensa que os móveis deslizaram um pouco de lugar e, nem um segundo depois, gotas grossas de chuva começaram a rebater contra as janelas, aumentando rapidamente até que o navio inteiro estivesse tremendo sobre a revolta do mar. Imediatamente o silêncio tomou a sala e olhares de incerteza foram trocados, bem como leves sinais de que deveriam ir até o lado de fora e tomar o leme para fugir daquela tempestade que se iniciava, entretanto somente Bertruska e Flint atenderam a obrigação, enquanto as outras três se empilharam para espiar pela escotilha da porta, assistindo-os atentamente empurrar os móveis para dentro do castelo de proa, na parte da frente do navio, tentando futilmente proteger o que ainda não havia voado para fora da embarcação.

Nem de longe estavam esperando uma situação como aquela. Súbito, as ondas atingiram a altura do parapeito, invadindo a amurada com fortes trombas d'água que os impediram de andar sem escorregar. O navio parecia afundar e as velas faziam um barulho aterrorizante de ricochete. Colado ao mastro, Flint olhou rápido para sua amiga, que estava mexendo com as cordas do mastaréu, e depois rolou as íris para cima de sua cabeça, tendo a impressão de que o garlindéu não iria aguentar. Precisavam rizar o quanto antes, pensou consigo mesmo, suspirando fundo ao ver o caminho até a ponta da retranca. Os cordames tremiam, açoitando os ventos e o impedindo de subir ou quiçá andar, mas precisava caçar os cabos e ir até lá.

— Merin! — gritou o cozinheiro, pouco antes de criar coragem e agarrar uma das cordas para subir. — Trave o leme ou ele vai quebrar! — ordenou a ela, mas sua voz foi abafada pela tempestade e a navegadora apenas franziu o cenho dentro da embarcação, correndo para longe de sua vista. Logo em seguida, foi Poyo quem saiu para o convés, junto de Fionnula, que imediatamente dobrou os joelhos para dentro e agarrou-se na maçaneta, sem equilíbrio. Ele xingou sem som ao mesmo tempo que um trovão rugiu mais alto que a chuva. Largou as cordas e foi até elas.

— O que eu faço? — perguntou a capitã, a plenos pulmões e tentando futilmente andar rente a cabine até a escada que a levaria ao leme. Nesse instante, Bertruska, que não a havia visto sair mas ouviu sua voz, sentiu seus braços amolecerem por um instante e um calafrio a acometeu.

— O que você está esperando, homem? Que eu crie mais braços?! — berrou para trás, enquanto atava com um nó de marinheiro a uma das colunas do palanque que levava a proa. — Vá jogá-la para dentro da embarcação!

Flint não respondeu porque já estava empurrando as duas para dentro, dando-se o trabalho de torcer maçaneta para quebrá-la e as impedir de saírem de volta. Contudo, no momento em que se virou, um estouro diferente dos trovões pôde ser ouvido, seguido doutro solavanco, o barulho de algo cortando o ar e um altíssimo splash. A cabeça pesou nos ombros quando o balanço do mar adernou toda a embarcação para a esquerda, lado oposto de onde o barulho viera. Segurou-se e olhou para os lados, aterrorizado, procurando Bertruska na espessa cortina de chuva e, talvez por sorte, talvez por proteção divina mesmo, ela estava agarrada a ferragem, logo após terminar a rizagem da vela principal. Ele gemeu de alívio, antes de conceber que, dessa forma, não tinha ideia do que era aquele barulho afinal.

Instantaneamente, a pontada de estresse voltou a nuca mais forte do que nunca e ele virou a cabeça ao mar, trépido, observando uma névoa de pólvora descer para o oceano, que aos poucos se acalmava, da mesma forma que a tempestade cessava de supetão e abria espaço para uma sombra turva ao horizonte que, de tão grande, mal sabia dizer se estava indo ou se aproximando.

Um galeão marinheiro, enorme em toda a sua essência.

Flint vomitou no mar.

 


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