Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 37
Grand Line, alto-mar (Fruta do Diabo)




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Por volta das três da tarde, no dia depois da festa com os Pierrôs em Woo Pululu, Flint ainda lavava as louças utilizadas no almoço e janta e, ao mesmo tempo, preparava uma pasta de menta para as queimaduras de Bertruska e Poyo, que por descuido, depois de acordarem para desenfronhar as velas, dormiram de volta no convés até perto do meio-dia. Isto posto, era de se esperar que a capitãzinha estivesse menos animada que os outros tripulantes, mas, pelo contrário, desde que convencera o cozinheiro e ex-marinheira a comprar uma piscina de plástico cheia de palhaços e elefantes caricatos na ilha anterior, não havia tempo ruim para ela e sua companheira galinha, que já desfrutava de um banho gelado mesmo enquanto a água enchia.

— Que inveja de você, Fio... — resmungou Poyo, de joelhos sobre o assoalho quente e vestindo uma camiseta pertencente a Morgan bem maior do que seu corpo, invés do biquíni que Bertruska lhe dera (afinal, precisava poupar ao menos um pouco a pele do sol). — Queria pular o tempo para quando já estivesse cheia... — e fez um bico para a ave.

Alguns metros a distância, observando a capitã pela porta da cozinha, Bertruska ria pequeno no balcão ao ver que o novo item havia roubado sua galinha de si, enquanto posicionava as bolsas de gelo em seus braços avermelhados. Ainda que estivesse queimada, teve a sorte de somente os membros superiores ficarem expostos ao sol, uma vez que caíra no sono na sombra do banco de madeira, tornando assim a dor, apesar de incômoda, infinitamente mais suportável; não demoraria para que pudesse retornar ao seu cronograma de malhação junto do cozinheiro. Suspirou.

— Visto daqui, nem parece que é galinha... — disse, puxando com o canto dos lábios um canudo e bebendo um pouco de água gelada.

— O Morgan, ou a Fionnula? — debochou Flint em resposta, referindo-se a noite anterior, quando o médico só faltou entrar no cu de Franz, de tanto que quisera se aproximar dele. Aparentemente, ele estava descreditando o perigo que corria pelo ciúmes da Larvinha e, enquanto não era obrigado a limpar os restos mortais de um desastre, restava ao cozinheiro rir da cara de ressaca do amigo. 

A combatente levantou a sobrancelha, levando um segundo ou dois para entender a piada, mas então soltou uma risada espalhafatosa, tentando, sem sucesso, levantar o punho para cumprimentar o cozinheiro; por fim, ela passou os olhos brevemente pela mesa de jantar, onde a navegadora e seu morceguinho posicionaram-se logo após o almoço de baixo de um guarda-sol, a fim de estudar o frasco que Morgan afirmou ter ganho como um presente do médico Pierrô. A feição desgostosa e o mau humor latente de ambos indicavam que talvez a prenda não tenha sido recebida com tanto fervor, mas não era muito difícil incomodá-los, pensou consigo mesma.

— De qualquer forma, depois dos bichos que vimos nessa última ilha, eu estive pensando...  Será que o que a Autumn dizia sobre a Fionnula era verdade? — perguntou a Flint, à esmo, e voltando sua cabeça para cozinha devagar.

— Que papo de bêbado — respondeu e, de prontidão, abriu um sorriso brincalhão ao ver o biquinho que se formara nos lábios da guerrilheira. Ele continua: — Tenho certeza que nem mesmo uma palavra do que aquela trambiqueira dizia era baseado em qualquer fato. Talvez nem um explícito "estou roubando vocês" — suspirou. — Não acho que você deveria manter suas esperanças.

— Mas não seria fofo? Ter um cisne, invés de uma galinha...

— Olha, cisne não dá para comer, né. Ou melhor dizendo, eu nunca tentei fazer um...

— FLINT! — ela interrompeu, alto.

No entanto, invés de se sentir acuado ao ver a feição desesperada da combatente, que nada podia fazer para defender sua aliada na condição em que estava, o cozinheiro apenas deu uma risada ladina, dando de ombros e, sem qualquer temor, sussurrou um "ainda", abrindo um sorriso de orelha a orelha enquanto aplicava a mistura para queimaduras. Bertruska torceu o lábio mais uma vez, aborrecida como uma criança ao perceber o deboche. Se não estivesse dependente de suas receitas para aliviar a dor, certamente o acertaria agora, disse a si mesma. Só por isso que não o quebrava na porrada agora, e apertou os olhos.

— Mas eu não me importo dela continuar viva com a gente por mais uma ilha... Se você pagar pelo milho e ração — disse ele, dando uma piscadela. A combatente levantou a sobrancelha e, ao ver sua cara, o cozinheiro caiu na gargalhada, não levando muito tempo para que ela o acompanhasse.

— Entããão — interrompeu Morgan, de repente. 

O médico havia surgido plantado na porta da cozinha e agora os encarava com uma feição de poucos amigos, batendo com o pé no chão em determinada ansiedade.  — Se é que não estou interrompendo nada — continua —, já que ela vai ficar mais uma ilha e tudo mais, será que eu não posso fazer um pequeninho, tipo, bem pequeno mesmo... — Fez uma pinça com dedo indicador e polegar. — Experimento com ela? — E mostrou o frasco com a outra mão.

— Depende. — Bertruska o olhou, severa — Eu posso fazer um experimento com sua cara? — Ela levantou o punho, fazendo-o encolher.

— É que, veja bem... — começou a murmurar, mas foi interrompido:

— Posso ou não posso? — Ela aumentou o tom, levantando-se da mesa (mesmo machucada, não poderia tolerar tamanha insolência), mas Flint foi logo a acalmando, puxando-a de volta para o acento pelo quadril enquanto Morgan apenas tsc'ava com o lábio, partindo em direção a mesa outra vez. 

Todavia, talvez pelo seu mais puro azar, ou então por um sexto sentido galináceo, quando estava no meio de seu caminho, Fionnula aproveitou seus ombros caídos de decepção e, no segundo em que viu uma brecha em sua mão, deu um rasante para tomar o frasco com o bico, imediatamente o arremessando para fora do navio. Morgan gritou, e Merin, muito esperta, não pensou duas vezes antes de arrancar os sapatos e joias do corpo e, como um peixe, saltar para o mar em busca do artefato de seu morceguinho.

— Merin! — Poyo gritou, como um apito. Nem um segundo depois, Flint estava arrancando a dólmã e sapatos e se jogando ao mar, a fim de buscar a vagabunda suicida (isso era nostálgico, de alguma forma).

— Que barulheira é essa aqui? 

 Finalmente, Belka, tirando somente a cabeça para fora, arreganhou a porta do alçapão com uma expressão vidrada.

— A Merin se jogou no mar por causa do Morgan — Bertruska deu de ombros, apontando com o polegar o médico, que tinha as mãos na cabeça, em pânico (o que faria, se perdesse agora seu capacho navegadora na Grand Line?). Não obstante, a ex-marinheira não levou um segundo para mudar de assunto ao sentir o odor peculiar vindo da gata. — Belka, você andou bebendo? Está fedendo a vômito e álcool.

— O que você espera, depois da festa de ontem? — rebateu ela, apertando os olhos, afrontosa.

— Você nem ficou na festa ontem! — Poyo interrompeu a conversa, entrando na cozinha com uma Fionnula encharcada nos braços. (A galinha estava em desespero pela evidente tentativa de assassinato e não queria ficar sozinha com Morgan, segundo a menininha).

— Cale-se! Desde quando preciso de companhia para beber, pirralha? — perguntou retórica, batendo a patinha irritada no chão, já sentindo seu olho direito pulsar devido ao estresse — Será que não podemos passar apenas um dia sem agir feito macacos? Eu não aguento mais viver com vocês nessa carniça!

As duas, capitã e guerrilheira, se entreolharam, confusas. Ainda que a gatuna desviasse do assunto, sua aparência era realmente algo a ser comentado, afinal, diferente dos dias habituais, ela não havia se dado o trabalho de tomar um banho quente de banheira e tampouco trocar as roupas da noite anterior; estava com uma aparência cansada, os pelos embaraçados e marcas fundas embaixo dos olhos, como os de quem não dormiu direito. Bertruska não teve dúvidas de que ela havia, senão fugido do quarto durante a madrugada, nunca nem pisado nele para começo de conversa.

— Ninguém irá me responder? — Belka continuou, cruzando os braços em frente ao corpo e mandando um olhar atravessado em direção a Poyo e sua galinha, que cacarejou em claro sinal de desespero (mais do que nunca, Fionnula sentia-se a um passo de ir parar na panela).

— Ah, Belka, pelo amor de Deus — A voz de Flint, no momento em que pisou outra vez no deque, soou irritada, mas não era para menos, pois de fato estava molhado da cabeça aos pés e, em seus ombros, carregava o corpo desacordado de Merin — Ninguém tá com cabeça para isso hoje não...

Em resposta, todos o encararam, estáticos, sobretudo a imediata, a mais desgostosa deles. Flint suspirou.

— Tique-taqueMorgan! anta da sua namorada precisa de algum socorro, faça seu trabalho! — ele bateu com o pé no chão, despejando a moça no meio do assoalho (pois não queria ter de molhar o sofá).

Depois disso, o médico foi ao corpo correndo —  temendo que sobrasse para ele — e Flint caminhou em direção a sua dólmã, os ombros caídos de cansaço e as sobrancelhas baixas, no entanto, antes que pisasse na cozinha, Belka saltou sobre a bancada, apontando o dedo em sua cara:

— Ah, tá bom! Para mim, você parecia de muito bom humor para saltar no mar e ficar batendo papo! — soltou uma lufada de ar.

— Belka...

A gatuna levantou uma das sobrancelhas, sem tirar a feição mandona.

— Você está fedendo. E muito! — disse Flint, com o lado direito do lábio retorcido em desgosto. 

Nesse instante, a face da gata foi ao chão e lentamente sua pata desceu do apontar opressor para juntar-se a sua cintura: fora completamente derrotada e a batalha nem mesmo havia começado, pois, no momento seguinte, o maldito cozinheiro a agarrou pela gola do vestido e saltou o alçapão, carregando-a à passos lentos em direção ao banheiro, onde a largou feito um cachorro sujo dentro da banheira e imediatamente ligou a torneira, antes mesmo que ela se levantasse para recobrar sua dignidade.

— Quando terminar, lhe prepararei um café e algo doce, para a ressaca — explicou, e então a porta se fechou e a água começou a inundar suas patas e joelhos, arrastando para longe sua autoestima, mas não os terríveis pensamentos febris.

Aquela humilhação... era insustentável.

Belka estava certa que carregava humilhações demais para uma vida tão curta quanto a sua, e decerto que mesmo as sete vidas de gato não seriam o bastante para agregar todos os desprazeres que fora obrigada a engolir calada, contudo, nada que vivera antes fora o bastante para vencer a vergonha que sentia naquele momento, afinal, além de ter sido verbalmente rebaixada por quem mais estimava naquela tripulação, ainda fora carregada como lixo para o andar de baixo e jogada fora, como se ninguém se importasse com seus sentimentos.

Sentia-se, naquele momento, pior que um bicho. A água morna subia por suas patas e, a medida em que arrancava suas roupas e apoiava metade de seu corpo para fora da banheira, não conseguia deixar de pensar que o que mais queria naquele instante era se afundar em um caldeirão fervente de água do mar e deixar-se desmaiar, sucumbindo ao destino de todos aqueles que tinham o desprazer de conhecer o Diabo. Nada senão um completo apagão seria capaz de levar seu estresse agora. Odiava ser gato, assim como odiava ser amaldiçoada e maltratada por aqueles que eram inferiores a si. Mesmo assim, enquanto ouvia os passos de Flint se distanciarem, partindo em direção às escadas para o andar de cima, por um momento permitiu-se fechar os olhos e se imaginar subindo cada degrau com mãos, e não patas, e, então, pensou como seria a expressão de cada um dos tripulantes ao não reconhecê-la completamente mudada. 

Será que, dessa forma, Flint gostaria dela?, se perguntou, deixando escapar a melancolia pelos lábios. 

Não levaria muito tempo para descobrir. Quando o cozinheiro pisou no andar de cima, ela logo pôde ouvir sua voz ressoar como um trombone, brigando com Morgan por ele estar mais preocupado com o frasco do que com Merin, desacordada e, por fim, a voz de Bertruska e Poyo gargalharam feito éguas, muito provavelmente porque o médico havia feito alguma coisa "engraçada". Eles pareciam felizes, apesar delaEstavam mais unidos do que nunca...

Com a voz entalada na garganta, Belka sentiu vontade de começar a chorar, mas se segurou, porque já estava baixa demais onde estava. Os estalos da madeira do andar de cima continuavam, assim como as conversas e outras tarefas cotidianas — não era exatamente necessária do jeito que estava, e durante o tempo que continuasse gato, não haveria nada que pudesse fazer para mudar. Era um mascote, como a galinha da ex-marinheira; um bicho que, por acidente, era um pouquinho mais racional que os outros, porém não o suficiente para que a tratassem da forma que merecia. Como é que havia chegado tão baixo?, se perguntou, observando a visão turva das patas traseiras entre a água e sabão. Outrora, fora tratada como uma princesa, uma peça grande na alta burguesia e tivera mais criados do que capacidade para lembrar de seus nomes; era mimada, bem vestida e mais linda que qualquer outra nos bailes e festejos das famílias de alta classe; como que, de repente, havia sido rebaixada a um reles gato escaldado?  Visto dessa forma, ninguém poderia culpá-la por querer mudar. Era seu direito querer voltar para sua glória. 

Assim que sentiu o ranço começar a desgrudar de seu corpo, a gata arrastou-se para fora da banheira, envolvendo o corpo em uma toalha felpuda e aguardando alguns minutos até que seu corpo recuperasse força o suficiente para que pudesse soltar o tampão da banheira. Estava puída e derrotada, mas ao menos agora não poderiam acusá-la de desleixo consigo mesma. Em direção ao quarto, tomou da cômoda um vestido largo e confortável, vestindo-o de qualquer jeito e, sem perder tempo, ajeitou minimamente os pelos do rosto, penteando-os apenas o bastante para que ninguém mais reclamasse. Em seguida, quando já havia guardado a escova na gaveta da penteadeira e largado sua toalha na vara para cortina do banheiro, continuou a ignorar as vozes estridentes e as risadas do segundo andar, partindo em direção daquilo que determinaria o seu futuro.

O porão estava vazio e escuro, como o habitual, mas assim que terminou as escadas, sentiu imediatamente um calor reconfortante a tomar e caminhou sem nenhuma dificuldade, afinal, havia cravado em sua mente o caminho de seu esconderijo de maneira que poderia segui-lo mesmo que estivesse de olhos fechados. Não havia conversas do andar de cima agora, somente ondas do mar e luzes foscas que escapavam do teto e buracos da madeira, refletindo sobre o restante dos tesouros que conquistaram em suas últimas invasões — desde que acolheram um novo tripulante, as invasões noturnas haviam cessado e, após os gastos da última ilha, todo o ouro que tinham parecia ter diminuído significativamente, ao passo que, com mais uma ou duas paradas sem novos ganhos, os suprimentos poderiam começar a faltar. 

Não era bem o que importava naquele momento, disse a si mesma. Firme, porém muito silenciosa, Belka continuou seguindo até o final do navio onde, por debaixo de uma pilha de barris quebrados, encontrou a luz branda que procurava entre o breu. Sem hesitar, ela retirou as tábuas de cima, cavucando os entulhos e, bem no fundo de tudo que não queriam mais, ela retirou a pitoresca fruta oval de cerca de vinte centímetros e a segurou com as duas mãos, abraçando-a com todo o seu corpo.

— Você sentiu saudades? — sussurrou baixinho, como se estivesse acalentando um bebê chorando, e então ninou o Diabo em seus braços.

Belka sentia seu peito pesado por tê-la abandonado dessa forma, mesmo que fosse apenas por tempo suficiente para que pudesse tomar banho. Sozinha e escondida embaixo de tanta sujeira, a coitadinha era menos importante que ela, o gato podre da tripulação; como poderia fazer isso com sua única fonte de felicidade? Seu bebezinho; a chave para sua salvação. Se chegasse perto e encostasse a cabeça nela, tinha certeza de que poderia escutá-la choramingar doce como o filho que nunca, por causa de sua condição, poderia ter.

"Ela não vai fugir, se você largar no chão", uma voz interrompeu seu pensamento, murmurando ao pé de seu ouvido, mas a gata não tremeu com o vento familiar. Já estava habituada com sua presença agora.

— Eu não quero que fique longe de mim — respondeu, fria e categórica, sem olhar para trás. Naquele instante, os rangidos de madeira e solavancos do mar haviam cessado, sobrando apenas um ruído branco de corrente de ar e apito contínuo. — É minha — ela acrescentou.

"Você sabe, ela foi minha antes de você. E antes de Hide também", disse, à esquerda por um momento, até que chegou ao outro lado soprando frio em seus bigodes. "E vai ser de outro alguém depois de você".

— Calado! Eu não sou estúpida como vocês dois — ralhou Belka.

Por um segundo, o silêncio absoluto tomou o porão velho.

"Então por que ainda não a devorou?", perguntou a voz.

— Porque...

"Come agora", disse. "O que te impede?".

— Cala boca — repeliu, apertando os olhos e a fruta contra seu peito — Isso não tem mais a ver com você.

"Só estou te motivando a ir além de quem a antecede, Gato", explicou, sacana, deixando um riso sujo estremecer todo o barco.

Belka apertou a fruta ainda mais forte.

"Coma e vença essa batalha", insistiu.

— Eu...

"Você está com medo de não funcionar?", perguntou. "Já não fez isso antes? Por que não consegue fazer agora?"

Um calafrio desceu sua espinha e, com uma fraqueza momentânea, ela sentiu a fruta pesar mais do que o habitual, como se quisesse rolar para longe de si. A Coisa riu lúgubre.

"Quer que eu segure para você?", perguntou.

— Não! — recuou rápido, sentindo os pelos se arrepiarem ao sentir um leve toque em seus ombros. Virou-se para trás, mas não havia nada ali. — Eu consigo segurar. Estou bem com ela — acrescentou, tentando não parecer assustada.

A voz, então, ruminou bem baixinho uma risadinha assíncrona, terminando em sua orelha esquerda. "Que gosto essa coisa tem?", perguntou. "Será que é doce?"

— Não é.

"Azeda então?", Aquilo deixou o ar escapar, como se risse pelas narinas.

— É horrível — ela respondeu. — Como um tijolo.

"E se dividíssemos ela na metade?", sugeriu. "Cada um ficaria com um pedaço e não teria um gosto tão ruim..."

Em seu entorno, Belka sentiu duas mãos geladas rastejarem por seus braços; a pele pálida e ossuda tremia enquanto os dígitos se aproximavam um do outro, quase se encostando como finas agulhas de costura. Ela se virou rápido, tentando se desvencilhar, mas a figura era um breu infinito que a engoliu em tecido, a sufocando numa escuridão que fedia a carne podre. Desesperada, ela lutou com uma mão só contra a teia gelada que a encobria, sentindo os dedos frios Daquilo engatinhando sobre seus pelos para tentar puxar a fruta do outro braço, por fim, o ar se tornou nulo quando, tão de repente quanto antes, a mesma luz fraca que indicava a presença da fruta se juntou a figura nodosa de um rosto sem expressão ou características, branco como a folha de papel e, ao mesmo tempo, a encarando de volta. "Aquilo" era a "Entidade". Era Hiroshi.

A voz engatou na garganta e ela sentiu uma incontrolável vontade de chorar.

— Não. Eu preciso disso — disse a ele, paralisada e sem ar.

"Eu também quero uma forma humana de volta".

— Ninguém quer isso tanto quanto eu — falou entredentes, sentindo assim seus pelos se eriçarem e as unhas das patas traseiras grudarem-se ao chão.

"Seus desejos são fracos"

Sentindo seus olhos arderem mesmo na escuridão, Belka arranhava a boca com as próprias presas, de maneira que um pouco de baba escorria junto de um pequeno filete de sangue pelo canto da fenda, no entanto, seus bracinhos seguravam a fruta com tamanho esmero que ninguém poderia dizer que aquilo não era seu filhote: ela jamais correria o risco de estragar seu bem mais precioso, aquilo que lhe faria retornar a vida era substancialmente mais importante que ela própria. Em sua nuca, o ar quente da Coisa a acariciava e então Aquilo abriu sua boca abria, deixando escorrer o escarro sujo, que passou pela fruta e desceu até o seu braço para manchar o pelo limpo. Sentiu seu peito pesar e os olhos caírem em desespero. A pobre casca... Agora estava deturpada com seus fluídos monstruoso. Não poderia permitir. 

Carinhosamente, limpou-a com o próprio braço, quase vendo a si mesma no reflexo imaginário ao som do riso fraco Daquilo que estava em suas costas. Por um breve segundo, a imagem da libertação estava clara no reflexo: será que o teria um sabor seria mais doce do que o que sentira quando sua vida fora roubada de si?, se perguntou.

Deveria descobrir, ali e agora.

— Belka! — a voz de Flint a despertou antes que um de seus dentes perfurasse a casca e, em um susto, escondeu-a atrás de suas costas, aguardando a chegada do cozinheiro — Você precisa se alimentar, senão ficará doente — ele disse, franzindo o cenho ao vê-la escondida na escuridão — Está tudo bem?

A imediata se amaldiçoou pela distração, visto que sequer percebera os passos do cozinheiro ao descer a escada, tampouco o ouvira ao se aproximar, ainda assim, não demorou muitos segundos para que a luz do lampião a iluminasse e, pela penumbra, o homem a encarou com um meio sorriso cansado, fazendo um sinal com a mão para que se aproximasse; certamente havia feito um de seus pratos favoritos e era aquilo que aquela pequena curva em sua boca significava, sabia disso. Mesmo humilhada, por um breve momento seu coração se aqueceu, mas não o suficiente para segui-lo e deixá-la para trás. Foi descoberta em seu esconderijo e agora, Ela precisava de um novo local para ficar.

— Irei subir em alguns minutos, Flint — respondeu, tentando ao máximo não deixar a ansiedade transparecer em sua voz.

Ele concordou com a cabeça, soltando um suspiro: — Certo, faça o que achar melhor — Suas costas se viraram e a gata finalmente permitiu retornar a respirar — Se demorar mais de cinco minutos, virei lhe buscar e não aceitarei um "não" como resposta.

Maldito cozinheiro, pensou consigo mesma, mas a voz que ecoou em sua cabeça não era só dela, e sim de Hiroshi também.

≈≈≈

— Já estava achando que você havia morrido lá embaixo — disse Bertruska, ainda sentada na bancada da cozinha, mas dessa vez sem as embalagens de gelo em suas costas. Ela usava uma camisa larga e estava comendo um sanduíche prensado. Belka apenas assentiu com a cabeça e logo pulou para sua cadeira predileta, ajeitando-se ao lado da ex-marinheira.

— Que bom que subiu, estava indo descer para buscá-la — afirmou Flint, encarando-a diretamente nos olhos, não contente com seu silêncio mórbido e incomum.

Apesar de, na maioria das vezes, Flint não gostar de forçar os outros a dizerem o que sentiam, depois do incidente ocular de Bertruska, ele se tornara mais vigilante com o que ocorria sob seu nariz, na intenção de evitar outros episódios como aquele, dessa forma, quando notou Belka avulsa nos dias que sucederam o ingresso de Hide ao seu bando, ele a princípio deu o benefício da dúvida de que ela estava nervosa com a hipótese de serem descobertos; mas ao vê-la mudar da água para o vinho quando ele se foi, decidiu não arriscar mais e prontamente tentou tirar mais informações da imediata. Ela precisava falar o que estava acontecendo, antes que o pior acontecesse. 

Mas seus esforços não pareciam avançar em nada. Ela apenas abaixou os olhos e encarou o prato que acabara de ser servido em sua frente e sequer o agradeceu.

— Coma bem, temos longos dias pela frente — disse ele, deixando um suspiro escapar.

E fez um breve carinho em sua cabeça. Ultrajante, Belka praguejou, o olhando arrogante no momento em que ele se virou de costas. Não era uma criança para ser tratada daquela forma. Era uma mulher que merecia ser amada.

Por fim, a cozinha foi tomada por um silêncio dulcificante, onde apenas o barulho da louça e a garoa fraca se faziam presentes por todo o recinto, porém, para Belka, cada gota que batia contra o vidro, bem como cada tilintar de talheres na pia, ressoava como uma explosão insuportável em sua cabeça, a deixando completamente louca.

— Belkinha, por que tem teias de aranha nos seus ombros, foi brincar no porão sem mim? — a capitã perguntou, de repente, a tirando de seus pensamentos com sua vozinha esganiçada.

Ora essa, até a pirralha estava a desafiando hoje?, pensou, irritada.

— Deixe isso quieto, Poyo. A Belka não está de bom humor... — Flint começou, mas foi interrompido:

— Eu não preciso de você para me defender toda vez — a gata retrucou, ácida — Eu sei responder uma pergunta direcionada a mim.

O cozinheiro levantou uma sobrancelha. Em contrapartida, foi Bertruska quem teve a primeira reação rebote:

— Então, responda-a — disse, dando de ombros e sem largar o sanduíche de suas mãos.

Insultada com seu descaso, Belka a olhou séria, como se fosse atacá-la. — Eu não estava brincando no porão, — apertou os olhos para a ex-marinheira, como se a desafiasse, e então voltou-se a capitã, que a encarava intrépida, como se não compreendesse o que estava prestes a acontecer — Eu estava contando nosso tesouro. Estamos ficando na merda, se vocês querem bem saber.

— Temos uma boa reserva financeira, Belka. E, se tudo der errado, vendemos as suas joias... — o médico choroso ironizou, a voz abafada pelos próprios braços.

— Não é mais fácil a gente comer a porra daquele frango, Morgan? — ela aumentou o tom — O que é meu, é meu, você não vai nem sonhar em encostar!

— Chega disso — Flint repreendeu, sério, largando a louça e descansando as mãos sobre a pia — Não vamos a lugar algum, se continuarmos com essas discussões. Vamos comer em paz...

— E quem foi que te elegeu capitão, Flint? Até onde eu sei, você e bosta são a mesma coisa nesse navio — ela contra-argumentou, grossa, em meio ao silêncio dos demais. Do sofá, Poyo soltou um pequeno guincho de insatisfação, mas foi prontamente calado por um gesto simples do cozinheiro:

— Ninguém me elegeu capitão, mas se eu estou mais certo do que precisamos que a imediata, então é meu direito como parte dessa tripulação intervir — ele suspirou.

— E é seu direito assumir que estou incerta e ser arrogante comigo, também? — cuspiu a gata, batendo outra vez na mesa e lançando o prato com o bolo decorado no chão.

Ninguém disse nada. De prontidão, Flint se virou para respondê-la, indignado com sua conduta, entretanto, no exato momento em que seus olhos se encontraram com as enormes esferas esbugalhadas e acumulando lágrimas da gata, ele não conseguiu fazer nada senão sentir um arrepio repulsivo percorrer sua espinha, pois os olhos que ela tinha, nem de longe eram os mesmos de antes. Ela o via como um pedaço de merda, como nunca fizera antes. 

Sem ter o que fazer, ele apenas abaixou os ombros e a cabeça, submisso, e ela continuou a falar:

— É bom mesmo que abaixe a cabeça — humilhou, subindo na cadeira para ficar mais alta — Não é porque vocês seguem a Poyo, que vocês podem me afrontar. Eu já não aguento mais isso! Todo dia, é a mesma coisa, não importa o que eu faça–

— Belka, por favor...

Bertruska a interrompeu, tentando colocar a mão em seu ombro e mantendo a voz em tom ameno, afinal, também havia percebido que havia algo de errado naquela situação, mas antes mesmo que pudesse perceber o que estava acontecendo, um estalo alto tomou o cômodo e a imediata já estava em posição de ataque, com o rabo partido e uma das partes em sua mão direita. A guerrilheira levou dois segundos para entender o que havia acabado de ocorrer. Poyo estava a entre as duas, com a face vermelha pela chicotada e um pequeno filete de sangue começando a escorrer do corte: ela havia se posto ali para levar o golpe.

Todos ficaram em completo silêncio, de olhos arregalados.

— PODE PARAR COM ISSO JÁ! — a capitã berrou, com os olhos cheios de lágrimas e os punhos cerrados — Eu sou a droga da capitã desse barco e vocês devem calar sua boca agora! — e bateu o pé no chão, o mais forte que seu peso poderia fazer, o que não era muita coisa, mas, mesmo assim, o navio inteiro pareceu tremer com sua presença por uma fração de segundo. Ela tinha um semblante aterrorizante.

— Quem você pensa que é, inferno? — continuou a menina, o tom embargado e carregada de mágoa — Não entendo porque está nos tratando assim! Acha que é boa demais para nós? Que essa tripulação aqui é ralé, comparada a sua grandiosidade?! Me responda!

— Pirralha...

— Não adianta carregar o rei na barriga e passar todo o tempo agindo como a maior vaca do celeiro! — bradou, dando um soco na bancada — Se não sabe tratar bem os únicos que te respeitam, você nunca vai ter valor algum! Isso só te faz um monte de merda!

Belka apertou seus olhos. — E o que você poderia saber sobre a minha vida? Não passa de uma criança brincando de pirata... — murmurou.

— O que foi que você disse? — Poyo gritou. — Grita para mim, em alto e bom tom! Eu quero ouvir ago–

De súpeto, um grito agonizante irrompeu do andar debaixo e os cinco piratas se calaram imediatamente, olhando uns para os outros em alerta. Belka, por sua vez, sentiu sua cabeça flutuar e o estômago embrulhar no mesmo instante. Encarou os arredores, apavorada, olhando todos que estavam próximos de si, Flint, Bertruska e Poyo próximos ao balcão e, ainda na mesa, Morgan e Merin observavam atentos qualquer nova movimentação. Estavam todos ali, logo não haveria com o que se preocupar, correto? Mas não poderia estar mais enganada. Colocou uma das patas sobre a boca, engolindo em seco para evitar que todo o conteúdo de seu estômago fosse despejado ali mesmo e, tomada pela náusea, ao pé de seu ouvido, Hiroshi retornou a sua cabeça:

"Seus desejos são fracos", ele disse, rindo baixinho em escárnio.

Sim, eram estupidamente fracos, assim como sua inteligência era infinitamente inferior ao que sempre imaginara; no fim, não passava de um gato estupido, um animal irracional preso em uma alma capaz de raciocinar minimamente. 

Sentindo os olhos queimarem, Belka desejou que um raio partisse em sua cabeça e, com ele, não levasse somente a sua vida, mas também qualquer traço de consciência que houvesse dentro de si, preferia viver como pedra, do que passar o resto da eternidade presa a figura de um quadrúpede, da mesma forma que preferia morrer do que ver o que estava acontecendo no andar debaixo, mas sabia que era algo que não podia evitar.

"Vá ver o que você fez", finalmente, a voz se dispersou, assim como a luz, o som e também a consciência.

Desligou.


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