Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 36
Periódico do Komainu, Forte Militar (Fruta do Diabo)




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O zunido contínuo do vento rebatendo contra as velas do Sol Nascente perdurou madrugada adentro enquanto os Cães seguiam com suas tarefas sem dar tempo aos cérebros para processar os ocorridos de Woo Pululu. Não havia voz — ou sequer suspiros — para competir com o furor dos mares e natureza. Desde que Yun entrou em seu consultório e fechou a porta logo depois que Hanzo jogou Nicholas sobre a maca, o silêncio tomou toda a embarcação e ele somente se concentrou em resolver o problema que lhe fora dado em mãos: posteriormente, dar-se-ia o luxo de organizar os próprios pensamentos, mas agora não era hora disso.

Havia muito a ser resolvido, isto é, além do rodízio de tarefas regular e a bagunça dos suprimentos jogados ao convés, descobrira da pior forma que seu capitão havia feito questão de jogar suas gavetas pela janela e de novo uma parte de seus desenhos agora descansava juntos dos peixes (se não fosse a perspicácia de esconder documentos sob o assoalho, também não lhe restariam sequer uma anotação médica), porém, mesmo que desejasse discutir seriamente sua conduta, no momento em que pisou os pés na embarcação para carregá-la de suprimentos, sentiu-se quieto demais para argumentar e, por fim, no momento em que o novo espadachim foi atingido por sua antiga capitã, ele perdeu completamente o ânimo, bem como a vontade de resmungar.

Tudo depois disso foi rápido. Costurou-o e o pôs para dormir, posteriormente guardando em seu armário os equipamentos usados para fechar o ferimento de Nicholas e também o recipiente entregue por Franz nos dias em que estiveram trabalhando juntos. Ao ver o medicamento pela metade, Yun por um breve instante se permitiu pensar no quanto os dias em que passara com os pierrôs haviam sido proveitosos, não só porque eram infinitamente mais divertidos dos que viriam a partir de agora, mas principalmente por conta do conhecimento absurdo que adquirira acerca de técnicas de combate e medicamentos de uso comum, como anestésicos e sedativos. Quanto mais poderia aprender, se tivesse mais tempo?, se perguntou. Ainda lhe faltava muito estudo para que pudesse se aperfeiçoar, visto que passara tempo demais considerando-se um bom médico, mas depois de dias convivendo com um verdadeiro talento, aprendeu bem que de nada adiantaria pensar demais no que seria ou não seria, pois, de outra forma, apenas ficaria triste com seus (não) resultados — restava agora colocar o esforço necessário para ser excelente em algo além de curandeiro.

— Kaze?

De repente, a voz, baixa de maneira atípica, de Hanzo irrompeu por detrás da porta trancada, e em seguida mais três batidas foram ouvidas, seguido do pequeno farfalhar do molho de chaves e um rangido vindo das dobradiças.

Yun sequer teve tempo de sair da mesa para responder e, ao vê-lo entrar no consultório, deixou seu corpo cair de volta na cadeira, dando um suspiro pesado, como o de um pai ao receber seu filho no quarto depois de um pesadelo, ou então como se visse o enorme elefante branco que seu capitão queria lhe mostrar.

— Diga, Hanzo. Aconteceu algo? — perguntou, embora soubesse que algo terrível estava por vir. Não obstante, a resposta não veio de imediato, porque Hanzo fitou por alguns segundos a figura desacordada de Nicholas, esperando uma confirmação de que era seguro falar.

— Ele está dormindo, lhe dei um remédio para dor e não irá acordar tão cedo. Pode falar — Yun complementou.

— Está certo disso? — sondou o capitão.

— O que é tão confidencial que nem mesmo as paredes podem desconfiar saber? Apenas diga logo — respondeu, impaciente, estalando os dedos da mão esquerda.

Contra a parede, Hanzo engoliu em seco, soltando uma lufada de ar: — Eu descobri quem são os piratas assassinos — ditou, severo.

Um silêncio frio pairou pelo consultório.

— Quais deles, Capitão? Você já deve saber que nessa profissão isso é algo bem comum — ironizou.

— Kaze, aqueles piratas — ele disse, sem delongas, observando a feição do companheiro de viagem, que se fechou em uma carranca, franzindo o cenho à espera de que ele continuasse o que tinha para falar.

— Hanzo, nenhum deles sobreviveu...

— Não são os mesmos — o capitão interpelou, rápido e certeiro — Quero dizer, o método é o mesmo, mas os ataques continuaram após nossa operação, o que implica que não são da mesma origem. Além disso, entrei em contato com conhecidos e descobri que a marca também já não é a mesma...

Incrédulo, Yun apenas continuou o encarando, sentindo seus olhos piscarem à medida que seu discurso continuava. À sua frente, Hanzo parecia um completo lunático, dissertando sobre um assunto que não fazia o menor sentido e, acima disso, não parecia ter a menor relevância na situação que se encontravam: haviam recrutado duas crianças para a vida dos mares, uma delas sem qualquer bagagem e outra ferida, e como se isso não bastasse, agora estavam navegando na Grand Line no meio da madrugada... por que diabos ele estava insistindo naquela história, entre tantas outras? De que...

— ... porra você está falando? — deixou escapar em voz alta e, por fim, quando notou na feição de seu capitão que havia realmente dito algo, resolveu que não recuaria mais.

— Hanzo, você quase morreu em um duelo pirata e ainda trouxe mais dois moleques para nos seguir a bordo, sem qualquer planejamento! Por acaso você pensou antes de escolhê-los? — perguntou a ele.

Hanzo fechou os olhos, mas não baixou seus ombros quando, de prontidão, tirou de dentro de sua túnica um papel amassado e jogou para que Yun lesse.

— O bando da Poyo fez isso — disse em um único tom, mudando de forma abrupta o rumo daquela conversa com suas sobrancelhas apertadas no centro da testa. No jornal, datado algumas semanas atrás, havia a imagem de um senhor corpulento e cabisbaixo, um pirata sem orgulho, com o antebraço censurado em uma tarja preta e a imensa manchete ilustrando sua derrocada. — Estivemos dois dias ao lado deles. Dois dias inteiros, Kaze.

Então, mais jornais foram colocados à mesa e citados em voz alta pelo capitão, todos recortes de semanas anteriores e, em cada uma das matérias, os mesmos relatos se repetiam: um único sobrevivente era deixado depois de um saque noturno, cercado do sangue de seus companheiros e com uma horrível marca à ferro quente em sua pele para que a memória de seu fracasso em proteger os confrades nunca fosse deixada para trás. A única exceção era o navio flamejante na costa de Pulvereta, caso que já conheciam de outrora, pois Pieri havia se dado ao trabalho de mencionar ser obra de seus infames aliados, mas que só agora podiam dar o verdadeiro valor.

A marca feita em sangue nas velas da caravela queimada... Sem sombra de dúvidas era a mesma que Poyo ostentava em seu braço e chapéu pirata. Yun engoliu em seco ao fazer a conexão, mas ainda assim tentou se poupar da verdade.

— O velho que ouvimos na taverna estava só tentando assustar um casal, Hanzo! Nós não podemos validar todos esses casos só com sensacionalismo e delírios de bêbado! — resguardou-se, massageando as têmporas em uma tentativa de afastar o estresse, ao mesmo tempo que sua voz parecia vacilar ao falar e os olhos teimavam em arder por ter de levantar o tom. — O caso do navio em chamas pode ter sido causado por eles, mas o que garante que as demais histórias são reais? Até onde sabemos, podem ser terceiros copiando a marca só para aparecer nos jorna–

— Eles vieram do East Blue também, encontraram os Pierrôs em Logue Town e formaram uma aliança desde lá — Hanzo interrompeu, rígido e eloquente, e só respirando fundo quando viu seu subordinado se calar. — Juntando as peças, nós é que estávamos errados em acreditar que o caso do Restaurante Flutuante tinha a ver com o retorno do Mother Justice; afinal, como eles poderiam ter saído da Grand Line sozinhos, mesmo após tanto tempo? Foram eles, o tempo todo. E estávamos lutando junto dos aliados deles quando fomos atrás de nossas pendências.

— Mas isso não é da nossa conta! — Yun bateu na mesa e, em resposta, Hanzo pisou firme no chão, calando-o com sua imponência apenas para indicar com um breve menear Nicholas, que continuava dormindo ao lado. Sem outra escolha, o médico somente mordeu o lábio inferior e, por fim, baixou seu tom:

— Por quanto tempo perseguimos o outro bando, capitão? Isso tudo... realmente valeu a pena? — perguntou firme, embora a voz tenha vacilado sutilmente depois de mencionar o "capitão". Ele, por sua vez, notou de imediato sua hesitação e, sem pensar duas vezes, aproveitou-se de sua fraqueza para desprezar a pergunta:

— Na madrugada anterior, eu ouvi a gata assumir seus crimes junto de Poyo — pontuou, colocando ambas as mãos sobre os papéis da mesa — Elas planejavam matar Hide assim que ele descobrisse alguma coisa. Essa é a resposta para sua pergunta: quando o tirei de seu bando, eu o salvei, como eu fiz com você — e apontou o dedo para Kaze, que engoliu a vontade de chorar, apertou os olhos e prontamente rebateu:

— Não, Hanzo! Você nos envolveu ainda mais com essa merda! — disse, vulnerável — Você não é o justiceiro do East Blue, porra! Você nem nasceu lá! Deixe que a Marinha resolva isso!

Em contraponto, e sem perder a postura, Hanzo deu as costas, cruzando os braços sobre o peito. — Nós iremos atrás deles, Kaze. Eu não estou lhe consultando sobre isso, é apenas um aviso — pontuou.

— Isso é algum tipo de punição, apenas porque não concordei com que trouxesse o homem que parecia Lennard junto conosco?

Kaze soltou a queima roupa, na breve esperança de encontrar qualquer brecha na coluna ereta do capitão, entretanto, antes que pudesse avaliar qualquer reação, um estampido na porta do consultório os interrompeu subitamente: um estalar de madeira, alto como um tiro em comparação ao silêncio que se fazia na embarcação além da discussãoressoou por todo o cômodo e ambos, capitão e imediato, se olharam por um breve segundo, se perguntando a mesma coisa. "Dilatação ou espionagem?" — independente da resposta, Hanzo nem titubeou para encostar na base da espada presa a bainha, se preparando para empunhá-la enquanto ia direto a porta. Então, ele a abriu com força e não viu nada. Somente um corredor escuro, úmido e vazio.

Um suspiro aliviado escapou do médico.

— Kaze — Hanzo chamou a atenção mais uma vez. Ele havia colocado a espada de volta na bainha, mas não precisava dela para ameaçá-lo; palavras eram o bastante para pôr o médico em seu lugar.

— Direi só uma vez e espero que compreenda: isso não tem a ver com os homens-pássaros, tampouco com Lennard — ele continuou, em tom austero, com o cenho franzido e a postura enrijecida. — Isso é sobre honra. Sempre acreditei que havia ensinado-o a respeito disso.

Por fim, olhou-o de cima a baixo, com os olhos desaprovadores e a postura de um mestre, cujo aluno havia manchado sua integridade. Depois disso, somente avisou-lhe que deveria preparar-se para uma reunião que haveria de acontecer nas próximas horas e foi embora.

≈≈≈

Após correr pela passagem do consultório à área comum do navio, entre o vestíbulo e a espaçosa — porém não decorada — sala de estar, Hide torcia os dedos da mão sobre a madeira da mesa de jantar, respirando ofegante enquanto quase implorava aos céus para que Hanzo e Kaze não saíssem do consultório tão cedo e o percebessem naquele estado. Não havia forma de disfarçar a adrenalina que sentia naquele momento. A princípio, ele tinha certeza de que não estava fazendo nada de errado, pois, no fim das contas, só queria ver se Nicholas estava bem, mas depois que ouviu a verdade sobre sua antiga tripulação, apenas não conseguiu tirar de sua cabeça que era sim o culpado daquilo tudo e, ainda mais importante que isso, percebeu que precisava se manter calado, porque, até que se provasse o contrário, ele não passava de um espião sujo dos Gatos.

— Está tudo bem, garoto? — de repente, o capitão perguntou, tocando-lhe o ombro com ternura. Hide deu um salto no lugar.

— E-eu... — resmungou.

— Você não precisa ficar acordado agora. Quer que eu lhe prepare um chá para dormir? — Hanzo perguntou.

Todavia, embora soasse como pergunta, Hide não levou um segundo para compreender que não deveria dar uma resposta, uma vez que o homem não o esperou e, antes mesmo de terminar de falar, já estava se direcionando a cozinha aberta, onde encheu uma chaleira de água e a colocou para esquentar. Também, não foi difícil perceber que suas olheiras pareciam mais proeminentes do que nunca, mesmo que — teoricamente — tivesse sido oferecido tempo de descanso depois de sua luta. (Não que pudesse culpá-lo por dormir mal, Hide pensou).

— O se-senhor deveria dormir, também, Capitão — gaguejou, tentando manter sua compostura na mesa (por mais que estivesse prestes a desmontar) — Insisto que tome um chá para dormir, também!

— E quem lá é você para exigir algo? — Hanzo ergueu uma sobrancelha, fazendo com que o menino se arrepiasse por inteiro, como um gato assustado. Mas então o capitão riu. — Rá! Estou brincando com você — e continuou a dar risada, apoiando seu cóccix sobre a pia para olhá-lo enquanto a água esquentava — Eu realmente preciso relaxar, você tem razão. Eu queria que meu kiseru não tivesse quebrado...

Hide sentiu uma pontada em sua cabeça, mas anuiu singelo, abrindo um sorriso desconfortável. Será que acharia graça daquilo, caso não estivesse tão tenso?, se perguntou — e de maneira quase involuntária, sentiu vontade de perguntar o que Hiroshi pensava sobre aquilo, mas se refreou, pois aquilo já não fazia mais parte de sua vida (só a melancolia, que era implacável e insistente).

— O que é um kiseru? — indagou ao capitão, tentando desviar do assunto anterior, sobretudo dos pensamentos horríveis que vinham em sua mente só de lembrar na tripulação velha.

— Hum — Hanzo ponderou por um segundo, tocando a barba rala com a mão esquerda — É uma espécie de cachimbo, eu suponho. Quebrei o meu ontem, sem querer...

Hide pensou que era estupido se dizer que quebrou algo sem querer, pois implicava o fato de que, de vez em quando, ele quebrava coisas de propósito, mas resolveu não comentar sobre o assunto, porque sabia que ouviria o que não queria. — Entendi... De qualquer forma, o chá deve ajudá-lo a relaxar o bastante — disse a ele.

Por fim, sincronizado com a sua fala, a velha chaleira começou a apitar atrás do capitão, que se virou para retirá-la do fogo e, em seguida, serviu sobre a pia dois copos de chá de ervas e os pôs em uma bandeja. Depois disso, ele a levou para que Hide se servisse e sentou-se à sua frente na mesa redonda.

— Não há dúvidas; não há nada melhor que um chá para encontrar algum descanso — Hanzo sorveu o copo, soltando um suspiro de satisfação ao sentir o sabor amargo tocar sua língua. — O que achou do nosso bando, Hide? Imagino que, após viver tanto tempo com piratas, a diferença deve ser gritante, não?

O menino não respondeu de prontidão; o chá tinha gosto de mato e ele não tinha muita vontade de falar sobre o assunto depois do que ouvira escondido. De todo modo, apenas agradecia por seu capitão não parecer ter percebido sua conduta estranha.

— Eu não sei...

Começou a dizer, mas então perdeu-se em sua própria narrativa, afinal, não estava a tempo o suficiente junto do bando, mas também não poderia definir que passou uma temporada grande o suficiente com qualquer outra tripulação antes desta. Era um viajante solitário e, nos breves momentos em que não esteve só, viajara somente com Hiroshi junto de si, o que não era considerado grandes coisas, já que ele era tão pirata quanto aqueles que acompanhava agora. Ele não poderia definir ao certo o que havia de diferente entre uma tripulação e outra, sobretudo quando apenas sonhava em ter paz e uma casa.

— Tenho certeza de que se adequará ao nosso modo em breve. É sempre difícil estar com pessoas novas, e confesso que meus aliados não são os mais comunicativos — o capitão tomou frente, dando mais um gole no chá. (Nesse momento, Hide já havia largado seu copo há alguns centímetros de distância, pois não conseguiria tomá-lo sem açúcar). — Mas espero sinceramente que possa contar comigo, caso precise de alguém para conversar.

— Bom, eu também não me considero especialmente comunicativo, então não precisa se preocupar com minha solitude — respondeu Hide, sincero — Além disso, Hide está acostumado a viajar sozinho! Mesmo que todos o odiassem, ele estaria de pé amanhã também!

O capitão arregalou os olhos, mas não levou muito para que soltasse um risote gentil, antes de questioná-lo novamente. — Você viajava sozinho antes de seu último bando? Por quanto tempo esteve com eles?

Poucos dias, Hide quis responder. Contudo, sua voz falhou na garganta no mesmo segundo em que se lembrou dos dias solitários em que passara na carniça e ele sentiu um súbito mal estar ao pensar no destino que os aguardava, como bem ouvira Hanzo dizer no consultório. Se o capitão não o tivesse percebido, ele afundaria junto deles, pensou consigo mesmo, sentindo um pingo de suor escorrer por suas costas. Por um momento, ele teve dúvidas se era aquilo que eles mereciam — e, acima disso, se era verdade o que eles fizeram com aquelas tripulações. Não era bem uma resposta que queria ter.

— Viajei com os Gatos por pouco tempo, mal tive tempo de conhecê-los — respondeu, em tom baixo, e abaixando os olhos para o copo de chá, lembrando-se do dia em que conhecera Poyo e, posteriormente, tivera contato com o cozinheiro pela primeira vez. — Capitão, tem açúcar? — perguntou.

Hanzo sentiu as próprias sobrancelhas pesarem e o lábio murchar, não sabendo como se sentir com uma pergunta tão inocente. Será que o garoto alguma vez já havia apreciado um bom chá?, se perguntou. Certamente, não. Enfim, ele apontou com o queixo em direção a um dos armários e  Hide de pronto se levantou, tomando o pote de porcelanato em mãos e o trazendo para mesa. Mais uma vez, o capitão abriu a boca em uma consternação genuína — mas não necessariamente ruim —, assistindo-o adoçar a bebida com duas colheres bem generosas. Crianças são inacreditáveis, pensou mais uma vez e, com nostalgia, lembrou-se das primeiras vezes em que preparou comida para Kaze por volta da época que o recolheu dos escombros de sua antiga casa e do quanto ele era habilidoso com os hashis, apesar de terem sido criados em ilhas diferentes. Nunca mais encontraram alguém tão próximo assim, mesmo depois de dez anos viajando juntos. Isto é, o médico até podia recusar a agir como ele e muitas vezes até brigavam porque, em sua opinião, Hanzo estava tentando forçar uma similaridade cultural apenas para burlar a saudade de sua casa, mas, bem no fundo, não havia como esconder o fato de que eles dois eram mais próximos entre si do que seriam de qualquer outra pessoa do North Blue pelo simples fato de terem se encontrado — e, se isso não significava que eram farinha de um mesmo saco, então ao menos era a prova de que eram minimamente compatíveis.

Há dez anos, Hanzo acreditava firmemente que estava trilhando o caminho do heroísmo ao ensinar à risca os preceitos do bushido, contudo, a verdade era que nunca nem esteve perto de alcançar a plenitude que tanto sonhara porque era impossível limpar a sujeira de seu nascimento e, agora, olhando para trás e pensando no quanto mudaria em sua paternidade precoce, sentia um enorme nó se formar na garganta, arrependendo-se amargamente de não respeitar a individualidade de Kaze e, sobretudo, por não ter mais tempo de voltar atrás.

Ou talvez tivesse

Antes desconectado, Hanzo chacoalhou levemente a cabeça, voltando a prestar atenção ao que acontecia à sua volta e, por fim, viu em sua névoa a figura de Hide, que sorvia com gosto o chá açucarado. Não tinha a menor ideia do lugar que o garoto viera e, ainda era cedo demais para definir seu caráter, mas, por um instante, um fio de esperança correu por suas veias, como se o destino lhe desse em mãos a chance de se redimir pelo passado.

— Está melhor agora? — perguntou, sorrindo pequeno, e em resposta o menino assentiu tímido com a cabeça. — Que bom — Hanzo continuou — Não posso dizer que concordo com açúcar a essa hora da noite, mas não é como se eu fosse de doces diariamente, também — e deu uma risada contida.

Depois disso, os dois beberam de seus copos em um silêncio regido apenas pelas ondas do mar, e pouco antes de Hide se retirar para descansar (agora mais calmo, ainda que os pensamentos ruins não tivessem ido embora), Sherikan se juntou à cozinha e começou a preparar para si próprio uma xícara de chá, pois era quase hora de trocar de turno com Fang e ele e não queria estar com sono quando precisasse.

Os olhares de Hanzo e Hide estavam mais perdidos que o habitual, mas ele preferiu não argumentar sobre e apenas seguiu com sua rotina habitual.

≈≈≈

Fang descansou por pouco mais de duas horas antes de Sherikan invadir o deque inferior, despertando-o de seus sonhos bigodudos como se algo terrível tivesse acontecido.

— Você precisa subir agora — ele disse, afobado e com os olhos estalados — O Kaze fez uma coisa muito louca.

Uma pontada de estresse tomou sua nuca e o navegador se levantou assustado da rede, assim como fez Hide, que estava lutando contra a insônia e agora tinha a desculpa perfeita para se pôr de pé. (Se havia algo feito pelo médico capaz de deixar Sherikan com tamanha afobação, era certo que não poderia ser algo bom).

Ainda meio atordoado e com os olhos meio fechados, Fang correu pelos corredores tropeçando em seus próprios pés, temendo pelo estado em que encontraria a embarcação e, quiçá, em qual estado encontraria o próprio capitão, mas não foi preciso ir muito longe para entender o drama, pois logo que chegou a antessala, encontrou a figura de Yun apoiada a pia, tomando o café da manhã sem qualquer preocupação e, a alguns metros ao lado, o capitão estava sentado a mesa, completamente desestabilizado e com a mão segurando a testa, levantando os cabelos desgrenhados para cima. Ele mal respirava.

— Bom dia, Fang — cumprimentou o médico, levantando a xícara de café, como um convite para que se juntasse a si: só então a imagem realmente foi absorvida pela mente do navegador e ele pôde perceber do que se tratava tamanha comoção. Soltou um suspiro cansado.

— Surto de piolhos? — perguntou em tom jocoso, puxando uma cadeira da mesa redonda e sentando-se à frente do capitão, que continuou na mesma posição de antes, ainda em estado de choque. Yun, por sua vez, travou seus hashis no meio do caminho, processando a piada do navegador, até que soltou uma pequena risadinha ladina, respondendo-o:

— Culpo mais aos vermes do que aos piolhos, meu caro. Foi apenas uma pequena mudança de perspectiva — e deu de ombros, tornando a comer o pote de roscovo e ignorando o solavanco que Hanzo deu na mesa, batendo com as duas palmas na madeira.

— Uma afronta direta, você quis dizer — ele se exaltou.

— Não se preocupe, é só cabelo — Yun apertou os olhos, olhando diretamente a ele com um tom desafiador — Está nadando junto com minhas gavetas agora.

As palavras do médico furaram o capitão sem piedade, que não conseguiu replicar o afronte, e em vez disso abaixou as sobrancelhas, tentando recuperar a própria postura antes de olhar os demais subordinados. À sua frente, o médico continuava de olhos semiabertos, sem voltar a comer e o olhando de cima de um pedestal, esperando que retornasse a dizer algo para que prontamente jogasse mais de seus erros do passado em sua face. Sem outra escolha, então, Hanzo precisou se calar, aguentando nas costas o peso de suas ações porque não havia nada que pudesse ser feito sobre isso. Como poderia repreendê-lo, se tudo aquilo era sua culpa?, se perguntou, e uma dor excruciante tomou seu peito ao pensar no significado daquela atitude; alto e presunçoso, Kaze, agora com os cabelos desalinhados na altura da nuca, estava maior do que nunca fora antes, posando com a coluna ereta em cima de todas as promessas esmiuçadas no chão: sem remorso algum, ele havia cuspido em seu próprio orgulho e largado suas ambições para que, dessa forma, pudesse o atingir intimamente.

A atmosfera poderia facilmente ser cortada com uma faca.

— Ficou bonito assim — Hide interrompeu do corredor e, antes que pudesse sofrer qualquer represália, caminhou com a cabeça baixa em direção a cozinha, ignorando o olhar do capitão que queimava em suas costas. Yun o agradeceu e, depois disso, o assunto morreu ali.

Pouco mais tarde, quando todos já haviam se acomodado à mesa, um suspiro cansado escapou dos lábios do navegador, que não conseguia se sentir confortável naquela situação: antes de ir dormir, havia sido instruído pelo capitão a tomar o caminho mais rápido, pelas correntezas dos Calm Belt e, como se isso não bastasse, estavam naquela situação agora. A ilha dos elefantes nunca pareceu tão acolhedora.

— Enfim, iremos seguir para qual direção hoje? — perguntou com um sorriso terno, servindo para si mesmo uma tigela de arroz com brotos de feijão e uma xícara de chá preto — Parece-me um bom dia para navegar. Imagino que não demoraremos para chegar em uma próxima ilha.

— Não seguiremos o Log Pose hoje, Fang. Assim que possível, lhes darei os devidos direcionamentos sobre nossa nova missão — respondeu Yun, finalizando a própria refeição e caminhando em direção a pia, a fim de lavar a louça suja.

— Devemos nos preparar para combate? — questionou Sherikan, arregalando um pouco os olhos, porém endireitando a postura de maneira séria.

Yun girou o tronco, observando a figura do capitão pesadamente, antes de retornar para a louça e responder ao espadachim: — Apenas burocracia, Sherikan. Não se preocupe.

— Suponho que não haja problemas em retornar para a rede, então — Fang deu com os ombros para trás, coçando a cabeça.

— Por favor, peço que descansem. Eu tomarei o leme pela manhã e os acordarei por volta do meio-dia — Hanzo pontuou.

— Mas o senhor não dormiu na noite anterior — Sherikan franziu o cenho — Como planeja realizar qualquer "burocracia" dessa forma?

Hanzo levantou as sobrancelhas, surpreso pela preocupação, afinal, ainda que o espadachim se mostrasse um bom subordinado, ele não parecia especialmente próximo de si, sobretudo depois dos ocorridos na Ilha dos Homens-Pássaros. Sherikan o respeitava muito, mas tinha certeza de que ele não o considerava um amigo.

— Não se preocupe, garoto — sorriu mínimo, arrumando a espada em sua cintura e acenando com a cabeça — Creio que não conseguirei pregar os olhos até que tudo esteja resolvido.

— Também estarei acordado, então não se preocupe — o médico completou, firmando aos subordinados, que aceitaram com maior tranquilidade, visto que o capitão, após tantas horas de pé e, ainda por cima, depois de enfrentar Pieri no ringue, ainda não tinha parado para descansar devidamente e visivelmente já cedia a exaustão, mesmo de pé. — Fang, apenas peço que busque Nicholas no meu consultório e o coloque em uma rede. Ele não levará muito tempo para se levantar, e prefiro que seu pós-anestesia seja longe  de uma maca desconfortável — Yun continuou, sereno — A dor dos pontos já será incômodo o bastante.

— Sem problemas — o homem-peixe lhe sorriu e, mesmo que entre bocejos, não tirou o pequeno sorriso do rosto até que deixasse completamente a antessala, carregando em seu encalço Hide, especialmente preocupado com o bem-estar de Nicholas. Restou somente Hanzo e Sherikan na mesa.

— Era o meu turno, Kaze. Você pode ir descansar, eu estou acostumado a servir por tantas horas seguidas — Sherikan disse ao médico.

— Aproveite a oportunidade para descansar, não teremos outras tão cedo — Hanzo interrompeu.

— Então vamos atacar algo, de fato — pontuou o garoto, ressabiado.

— Sherikan, vá dormir — Yun decretou em tom severo, mas o garoto continuou de pé, observando a postura estoica do capitão, aguardando a resposta da verdadeira figura de autoridade daquela embarcação.

— Garoto, não é de nosso feitio fazer ataques, isto é, não somos indivíduos desajustados navegando pelos mares. Carregamos conosco nossos princípios e crenças e, quando necessário, precisamos colocá-las à prova, você me entende? — elucidou, fechando os olhos por um segundo, mas não desmanchando seu rosto sério.

— Entendo, senhor — respondeu de cabeça baixa e então, com um pequeno sorriso, Hanzo o acalentou uma última vez: 

— Então vá dormir, rapaz.

Quando ele se foi, o capitão suspirou. Não foi questionado uma outra vez e isso era o bastante para deixá-lo aliviado — bastava Kaze por aquele dia; ele não poderia perder a cabeça também. 

Por fim, voltou-se novamente ao copo de chá preto de sua frente, esperando de maneira fútil que ele tivesse cafeína o bastante para mantê-lo acordado, mas tinha certeza de que nem um barril daqueles seria o suficiente para mantê-lo longe dos pesadelos, e por isso queria continuar de pé. Não queria dormir de jeito nenhum. Desde que se encontrou com o algoz de Lennard e ouviu dele suas motivações, uma porção de memórias retornavam para si quando deitava sua cabeça sobre o travesseiro, quase todas felizes, diga-se de passagem, no entanto não era hora de recordar nada, pois a única coisa que boas lembranças traziam era desolação e arrependimento, além da imensa vontade de voltar atrás.

Muito, muito distante, todos os sonhos e promessas que fizera pareciam escorrer por suas mãos, largando-o sozinho com o bushido que não poderia jamais cumprir. 

Impiedoso, seu único olho lhe traiu, contorcendo a visão da cozinha e a cabeça pescou o ar. 

Kaze, que secava as mãos em um pano de prato, apenas respirou profundamente ao ver Hanzo já dormindo, sentando na mesma posição e com os membros completamente tensionados, parecendo uma estátua de pedra. Mesmo em sono profundo, ele continuava inflexível, e era esse pensamento que mais o chateava.

≈≈≈

Yun não cumpriu com a promessa do capitão de despertar os demais tripulantes ao meio-dia, e em vez disso comandou o navio sozinho com pontuais intermissões de Hanzo, que antes de retirar-se aos próprios aposentos para tomar um banho gelado, pediu para que deixasse todos em paz até que estivessem próximos de ancorar. Dito e feito, passado das duas horas da tarde, quando o quartel onde desembarcariam já tinha forma no horizonte e restavam apenas alguns nós marítimos e pouco menos do que vinte minutos para aportarem, o médico desceu ao porão do Sol Nascente, pronto para acordar seus colegas, mas, quando chegou lá, todos já estavam de pé, esperando por ele.

— Pensei que nos acordariam ao meio-dia — Fang pontuou, a face séria e sentado sobre uma das caixas de suprimento, ajudando Sherikan a polir uma de suas espadas.

— Se estavam acordados, por que não subiram? — Yun perguntou, levantando uma sobrancelha.

— Vocês não nos queriam lá em cima — Sherikan respondeu. — Além disso, Nicholas acordou a pouco tempo e não queríamos deixá-lo desamparado. Fizemos companhia.

Nesse instante, Yun reparou na presença fosca de Nicholas, que encarava o vazio, por mais que não aparentasse cansaço e, ao seu lado, Hide observava tudo em silêncio, com os olhos caídos e, em seu colo, tinha uma muda de roupas limpas, provavelmente cedidas por um dos demais tripulantes. O médico não quis dizer, mas depois de passar horas e mais horas sozinho no navio, por um momento até se esquecera da presença dos dois novos aliados.

— Você está com dor, Nicholas? — perguntou ao ex-Pierrô, aproximando-se dele para olhar a imensa cicatriz que discorria por seu rosto, fechada apenas pelos pontos escuros que dera na madrugada anterior.

— Estou bem — ele respondeu — Não há muito a ser feito quanto a isso — e apontou o rosto, abrindo um sorriso tão pequeno que o médico não pôde evitar em se culpar, pois não tinha capacidade de consertar aquilo. 

— Nós vamos desembarcar em breve, sugiro que terminem de se arrumar e preparem-se.

Em resposta, os subordinados encararam o imediato interrogativos, afinal, a muito estavam se preparando, mas ainda não faziam qualquer ideia dos motivos por trás dessa expectativa e não havia nada pior do que se sentir perdido em alto mar, contudo, Yun não disse mais nada e deu as costas para seu consultório, apenas retornando para buscar Nicholas e preparar um curativo para o machucado. 

Durante esse tempo, eles, que foram deixados para trás, aproveitaram para discutir entre si as inúmeras possibilidades do porquê de terem saído tão depressa da ilha anterior e também de terem mudado a rota, não obstante, foi fácil perceber que não chegariam a nenhum lugar habitual tão rápido e, no fim das contas, nenhuma dúvida foi respondida e somente novos questionamentos foram levantados, restando a eles a mais completa indignação. 

Um pouco mais tarde e já prontamente vestidos, o Sol Nascente voltou a seguir em frente e não demorou para que fosse ancorado no píer da ilha militar com a ajuda de alguns marinheiros de baixa patente, que amarraram as cordas e lhes ofereceram outra ponte de saída. 

Assim que viu tamanha comoção no porto, Fang, que desde o princípio esteve com um pé atrás com a decisão súbita de tomar um cinturão perigoso como um Calm Belt, por fim ligou os pontos em sua cabeça do que estava acontecendo e, infelizmente, as conclusões que tomara não foram das melhores, principalmente quando um dos homens uniformizados se dirigiu a eles, fazendo posição de sentido para seu capitão antes de indicar que deveriam segui-lo. 

Hanzo foi o primeiro a tomar parte, caminhando à frente dos companheiros com o queixo erguido e peito estufado, porém completamente calado, evitando qualquer contato visual com os demais cadetes da base militar. Aos subordinados, somente dirigiu um único olhar de gestão e, para o bom entendedor, era óbvio que pedia a eles somente suporte e — mais do que qualquer outra coisa — absoluto silêncio. Nenhum dos seus o desobedeceu.

A ilha em que pararam era relativamente pequena, sobretudo em comparação a Woo Pululu e, ainda em maior contraste, parecia demasiadamente alinhada, com construções quadradas, milimetricamente dispostas a calçada e sem muita cor. Tudo além do porto era de pedra e, além do cinza, somente o azul do emblema e dos uniformes se destacava, trazendo um ar bastante imponente para um pedaço de terra que parecia tão ínfimo. Os marinheiros estavam por todas as partes, carregando caixas ou limpando janelas; quase todos concentrados demais em suas tarefas para olhar o grupo de forasteiros que caminhava na rua principal. Fang nunca havia estado em uma ilha com tantos deles anteriormente (ainda que tivesse tido contato com um galeão marinheiro a não muito tempo atrás), contudo, através das reações de Hanzo, Yun e Sherikan, conseguiu assumir com determinada segurança que não era a primeira vez deles num lugar como aquele, e por isso, em razão da própria segurança, resolveu não fazer qualquer cerimônia e agir como se aquela fosse uma situação normal. 

Não que fosse, repetiu a si mesmoEle não tinha a cabeça a prêmio como Lilac tinha, porém, talvez por respeito a ele, não conseguia fazer pouco caso dos feitos governamentais. 

Na última ocasião, quando entregaram os Mother Justices, manteve-se dentro do recém consertado Sol Nascente, observando com cuidado o encontro burocrático do capitão e imediato para com as entidades, enquanto ele próprio não conseguia parar de pensar que aquilo não tinha muito a ver com o que ele gostaria de fazer quando foi ao mar pela primeira vez. É claro que servir a justiça era melhor do que se envolver com o crime para sobreviver, mas isso não significava que conseguia perdoá-los por tirar de si seu único amigo. Finalmente, o aperto no estômago que sentia ao adentrar em uma base como aquela era tão incômodo que poderia se equiparar a uma faca o penetrando, talvez o peso de aderir a traição. A missão estava completa, Mother Justice foi entregue à justiça, logo, o que mais tinham a resolver com a Marinha? A vontade era perguntar a qualquer um que fosse antes mesmo de deixar as dependências do navio, mas o olhar cansado do imediato o impediu, ainda mais depois dos ocorridos daquela manhã. Viria a descobrir no momento certo.

— Não demorarão muito para que possam o atender — disse o marinheiro ao capitão, fazendo uma continência antes de voltar pelo mesmo corredor em que viera. Hanzo e Yun fizeram uma pequena mesura com a cabeça e então se recostaram em paredes opostas, no aguardo de quem quer que fosse.

Agora estavam em uma antessala de paredes altas e com poucos móveis além de um sofá verde musgo, duas poltronas de jacquard e um aparador de ébano cheio de jornais amassados e uma planta que há muito tempo não via um único raio de sol. À direita, o corredor de onde vieram quebrava em uma escadaria íngreme e, à esquerda, havia um arco de arabescos que estendia outro corredor, dessa vez reto e cheio de altas janelas, com uma porta fechada logo ao final. 

Sherikan, Nicholas e Hide não demoraram a se sentar e, dessa forma, Fang o fez também, tomando uma das poltronas para si. De pronto, lhe veio o ímpeto de tomar um dos papéis ao seu lado, mas assumiu que não seria de bom tom, já que todos estavam quietos em seus lugares; foi só quando o garoto mais novo da tripulação se levantou para buscar um dos jornais para si que ele cedeu a sua curiosidade e, também, passou a os analisar.

Não haviam notícias recentes sobre qualquer coisa que pudesse o interessar: pequenos trechos sobre a restauração das cidades principais de Alabasta depois da chuva e retorno da biodiversidade local, um relato muito longo e prolixo de uma pesquisadora que dava créditos do movimento migratório dos lagartos de fogo do deserto ao comandante da segunda divisão dos Barba-Branca, que devolvera ao lar um lagarto bebê na noite em que passaram juntos em uma barraca (Fang fizera questão de ler esse inteiro, já que adorava histórias de amor), uma porção de feitos espalhados do Bando de Bonney e, por fim, em Mock Town, o pirata Bellamy, a Hiena, havia tomado uma surra na noite anterior. O mundo pirata parecia especialmente agitado do lado de fora do Sol Nascente e, por mais que apreciasse a calmaria, não poderia deixar de torcer pela próxima aventura que iria vivenciar — afinal, foram dias o suficientes próximos aos pierrôs para dispensar uma existência além de chá. Em uma última olhada nas folhas, cerca de quinze minutos depois de estarem sentados e esperando, Fang chegou a grossa sessão de recompensas e não pôde deixar de se sentir tentado a observá-los, especialmente porque gostaria de ver se encontrava Flint entre eles. Não obstante, passado algumas imagens desconhecidas, seu queixo não poderia ter despencado mais em reparar na figura conhecida de um homem-peixe de cabelos roxos e rosto arredondado; alguém que vira vezes demais para se esquecer e que, agora, ao rever com um sorriso firme e uma recompensa ainda mais alta do que antes, não conseguiu agir de outra forma senão amassando as extremidades do papel e apertando seus olhos. Era Lilac, seu grande amigo e quem estava procurando. Ele continuava na ativa e...

— Ora, ora — uma voz firme, porém de tom levemente melódico e beirando a jocosidade, invadiu o recinto, e Fang imediatamente arrancou a recompensa da caderneta, escondendo-a dentro da túnica. Quando ele olhou para frente de novo, Hanzo e Yun estavam parados de frente para um rapaz esguio e de pele morena cujo uniforme da Marinha parecia cair de maneira desleixada, embora não parecesse grande demais nele.

— Quanto tempo que eu não vejo vocês dois por aqui — o rapaz continuou a dizer, e por um segundo parou sua visão em Yun, que tinha as mãos cruzadas sobre peito. — Corte novo de cabelo? — perguntou a ele, franzindo o cenho — As desilusões amorosas atingem até a você? — e riu alto, caminhando em um ritmo estranho da sala de onde havia saído para mais próximo.

De prontidão, Sherikan e Hide se levantaram, prontos para avançar junto capitão e imediato, no entanto, nem Fang e nem Nicholas saíram do lugar — embora que por suas próprias razões. Em contrapartida, o marinheiro apenas os olhou de canto de olho, não perdendo mais do que alguns segundos os observando antes de retornar a atenção a Yun, que o respondia cordialmente, não parecendo intimidado por sua presença. Hanzo, por outro lado, após um breve e respeitoso cumprimento, aguardava silenciosamente as novas ordens.

— Vejo que arrumou novos subordinados, Hanzo. Além de Kaze, não era do meu conhecimento que havia adotado novos meninos perdidos — o homem sorriu pequeno, a voz saindo com um cantarolar estranho e calmo demais, como se não houvesse preocupação no mundo que pudesse o afetar. Se não fosse por sua postura ameaçadora, não haveria como diferenciá-lo de um adolescente sarcástico.

— Podemos entrar? — o capitão perguntou, evitando estender o assunto mais do que o necessário.

— Não antes de me apresentar aos novos subordinados, é claro — ele abriu um sorriso sem mostrar dentes, fechando os olhos em falsa simpatia — Sou Apricot. Imagino que me desconheçam, mas posso dizer com certeza que conheço mais do que bem um de vocês!

Seu sorriso se alargou no momento em que finalizou a sentença e, mesmo que de relance, Sherikan teve a impressão que seus olhos se abriram por um mísero segundo para olhá-lo fixamente, como se soubesse mais do que deveria saber. O espadachim deu um passo instintivo para trás.

— Nós, marinheiros, não temos o privilégio dos piratas de esconder-se sob as sombras, e é por isso que não me importo em dar meu nome — explicou ele, dando as costas para voltar-se novamente a porta— O suprassumo disso é que não dá para sumir, mesmo que este seja nosso maior desejo — finalizou, em tom denso. Não houve qualquer resposta.

— Podemos entrar? — Hanzo insistiu.

— Bom, aqueles que desejam tratar algo comigo pessoalmente, estão liberados para entrar. Ao resto, meu mais sincero foda-se, não deviam nem estar aqui para começo de conversa.

E, então, a porta gigantesca se fechou, restando apenas o silêncio.

Apenas Hanzo e Yun entraram.

≈≈≈

— Sem enrolação. Por que me procurou? — Apricot perguntou, no momento em que Hanzo se sentou à frente da escrivaninha. Ele estava sentado em uma cadeira acolchoada cor-de-vinho e, logo atrás de si, uma moça de semblante firme e cabelos alvos estava pousada como um abajur, sem mover sequer um músculo.

Apricot tinha uma sala apertada demais para um soldado de alta patente, mas não era de se surpreender, pois ele não era exatamente bem visto, apesar do renome de sua posição. Quer dizer, talvez ele pudesse crescer mais, se estivesse mais preocupado com a integridade da instituição e, por que não, dele próprio, mas, mesmo depois de anos o conhecendo, nem Hanzo, tampouco Yun, sabiam o que ele realmente pretendia fazer ali, então parecia seguro firmar que ele não tinha objetivos muito certos. 

Outros marinheiros almejavam a posição de contra-almirantes e, os mais ambiciosos, sonhavam em ser a mão da justiça nas três cadeiras ao lado de Sengoku, no entanto, isso era algo que o garoto não parecia tratar com tanto esmero — o que de forma alguma o tornava um comandante incompetente, diga-se de passagem. De qualquer forma, ele não era alguém que se importava com os privilégios alheios e, para si, não desejava mais do que alguns otários para puxar seu saco e mais algumas cabeças para fazer de escravos como fazia com a garota-objeto atrás de si.

A propósito, Yun não quis dizer, todavia, da mesma forma que o marinheiro havia notado os novos tripulantes do bando, ele também percebeu que aquela garota não estivera sempre ali e, mesmo que estivessem há alguns anos sem se encontrar, se desse a si mesmo o direito de chutar baseado no que conhecia da figura, diria que ela parecia ser uma aquisição bastante nova — talvez não fosse seu capacho pessoal, mas, pela sua posição na sala, era bastante claro que tratava-se de uma subordinada.

— Apricot, tenho provas concretas de que achei os Bakenekos — o capitão afirmou, sem titubear.

— Quem?

O contra-almirante o encarou confuso, com as sobrancelhas levantadas em questionamento, porém mantendo em todo o processo o mesmo sorriso ladino de sempre. Apricot nunca perdia a expressão cômica de sua face; tudo aquilo parecia o divertir, como se o corsário a sua frente não passasse de um maldito palhaço.

— O bando que vem assassinando marinheiros e piratas durante as madrugadas; eles marcam somente o capitão com um ferrolho, como gado — explicou.

— Acho que ouvi algo sobre isso no refeitório, a algumas semanas atrás — ele colocou a mão no queixo, sem fazer cerimônia ou drama; apenas pensando da maneira mais teatral — Pensei que houvesse superado o caso Mother Justice, capitãozinho! Você não deveria se prender tanto ao passado, hiyu-hiyu-hiyu.

— Não se trata de estar preso ao passado, Apricot. Mas de um bando perigoso que vem realizando ataques desde o East Blue — Hanzo explicou, seu tom antes firme, agora ocultamente havia uma súplica. Nada poderia ser feito se aquele marinheiro não lhe desse ouvidos.

— Foram eles que te deram uma surra, então? — o marinheiro perguntou, abrindo os olhos e apontando o rosto inchado do capitão.

Nesse momento, o médico coçou a garganta, chamando a atenção para si: — Nós conseguimos alguns nomes em nossa última parada. O capitão também ouviu uma confissão direta, então nossa denúncia não é infundada.

— Só escutarei se Hanzo me contar quem deixou o rosto dele nesse estado! Foi você, Kaze? Ele que cortou seu cabelo também, de vingança?

Não se importando com as provocações, o capitão apenas colocou as imagens sobre a mesa, pesando a mão um pouco demais ao despejá-las, pois um estrondo curto pôde ser ouvido. A face de Yun se curvou em uma expressão de choque, mas no momento em que não viu uma hesitação na feição de Hanzo, apenas olhou para baixo, recompondo-se por contra enquanto pensava no quanto ele haveria de ter gastado para conseguir aquilo, mesmo depois de Baru reafirmar inúmeras vezes de que eram para sua coleção pessoal.

— Foram tiradas na tarde de ontem — explicou, rápido e direto, tentando evitar ao máximo brechas de conversas paralelas. Depois disso, ele não moveu mais do que suas mãos sobre a túnica e, por sua vez, Apricot olhou por um segundo desinteressado para o capitão e depois tomou as fotos.

— Me pareceu um evento bastante divertido, mas acredito que resolvi o mistério. Foi um dos elefantes que o atropelou, Hanzo? — o homem segurava uma das fotos em mãos, aquela que fora tirada em conjunto com todos os demais bandos, porém sua expressão vacilara no momento em que seus olhos passaram por toda sua extensão — Quanto aos tais Bakenekos, não posso dar minha garantia, mas há alguém de grande interesse da marinha nesta imagem. O que sabem sobre Bertruska Kalahan?

— Muito menos do que vocês, eu presumo, apenas sei que ela está envolvida com o bando dos gatos — pontuou Yun, ainda consternado.

— Bem, meu chefe ficará bastante satisfeito em saber o paradeiro dela e, sobretudo, que agora ligamos ela a outro fugitivo do East Blue-hiyu-hiyu! — apontou para a imagem, onde o médico reconheceu a combatente e Flint posando para a fotografia. Depois disso, ele passou a foto, folheando o resto do monte.

— Ambos fazem parte do mesmo bando, Apricot — Hanzo argumentou, quebrando o próprio silêncio.

— E que prova você tem disso? — Apricot perguntou — Daqui, eu só conheço vocês quatro. E, vendo as outras fotos, só consigo imaginar que participaram de uma grande festa. Nunca vi tanto palhaço junto antes...

— No centro da foto poderá ver um gato e uma criança, foram elas quem assumiram a autoria dos crimes.

O rapaz levantou uma sobrancelha de imediato. — Um gato uma criança — repetiu, olhando firme para o capitão, sondando-o sem dizer nada (não era divertido quando eram os outros que faziam piada).

— Volte a foto, eu lhe apontarei — respondeu.

Algumas fotos dos Pierrôs foram jogadas de lado, muitas delas onde Yun aparecia junto de Franz e Kristian, sorrindo mais largo do que nunca e, ao vê-las, o médico contraia cada vez mais o lábio, torcendo os dedos da própria mão enquanto torcia para que a aquilo passasse mais depressa. Finalmente, Apricot voltou à fotografia principal.

— Aqui — Hanzo afirmou, autoritário, apontando o canto esquerdo da fotografia, bem acima da cabeça de Poyo.

— Bobinho, você está apontando para o canto, não para o cen–

A voz do marinheiro se calou no momento em que Hanzo retirou seu indicador da fotografia, revelando o rosto rechonchudo da garotinha de pele bronzeada e cabelos loiros, que sorria como se acabasse de pescar o maior peixe de todos ou quebrar o pescoço da galinha mais velha do curral.

— Que... putinha... — deixou escapar, pausadamente e quase em um sussurro; baixo o bastante para que Hanzo não notasse (talvez porque estava concentrado demais em sua denúncia), mas não para que Yun deixasse passar sua clara hesitação. Apricot sentiu o olho direito tilintar como se um cisco estivesse sobre a íris.

— As duas assumiram todos os crimes e tinham a intenção de destruir a ilha, se não estivéssemos por lá — Hanzo disse, com pesar em sua voz, dando uma pausa para dar um longo suspiro. — Ela... elas disseram que matariam os próprios aliados.

— Você não deveria pesar melhor suas prioridades? — Apricot ergueu os olhos, mas não havia muito mais do que uma penumbra torpe em seu olhar. O sorriso, no entanto... Este continuava intacto.

— Uma ilha, um aliado... O que é mais importante? — continuou o marinheiro, tamborilando os dedos sobre a mesa em uma sequência inconstante.

— Eu disse que eles destruiriam os dois... — Hanzo recuou de forma figurativa, sentindo uma gota escorrer por sua espinha.

— Mas mencionou ambos como coisas separadas — concluiu — Sabe, Hanzo, eu não me importaria nem um pouco em denunciar essas pessoas, se estivesse em minhas mãos. Mas você sabe por que eu não faço?

O capitão não disse nada e, com um sorriso largo, Apricot prosseguiu com sua fala: — Porque, se eu o fizesse, eu teria que denunciar você junto. E eu gosto de você. Ou, ao menos, mais do que gosto deles — deu uma piscadela maldosa. — Com que cara você acha que eu deveria ir até meu superior, Hanzo?

Ninguém o respondeu.

— Não espera que eu diga que meu corsário de estimação estava se divertindo com um bando procurado, certo? Ainda mais depois de termos autorizado um movimento tão grande quanto um buster call em nome da sua honra.

A ênfase fez com que, por um instante, a íris do capitão e do imediato tremesse. Isto é, eles sabiam que a presença de galeões marinheiros na Ilha dos Homens-Pássaros não era apenas para recolher os corpos, mas haviam escolhido não pensar sobre o que eles fariam com aquela ilha depois de relatar os ocorridos. Agora sabiam que aqueles que não morreram em batalha... foram queimados vivos; apagados da existência junto de ambas as sociedades, a passada e a atual. A ilha deixara de existir por conta deles.

— De outro modo, não tem porquê nos envolvermos mais com sua casta, ainda mais depois do que aconteceu em Alabasta — Apricot continuou — Vocês ouviram falar no que aconteceu? É por isso que nós não gostamos de trabalhar com piratas–

— Nós compreendemos, Apricot — Yun afirmou, sobrepondo-se ao monólogo enquanto via a musculatura de seu capitão murchar e sua mão lentamente descer até a bainha da espada. Deu um passo à frente. — Não vamos mais–

— Tem o outro bando — Hanzo se interpôs, firmando a voz. — Este serve?

— Depende. A Marinha não quer saber mais de piratas como vocês, que denunciam Deus e o mundo só para continuar sugando o nosso dinheiro — ele deu de ombros. — Quero dizer, eu entendo que seja difícil fazer o dinheiro da última recompensa que nos entregou durar para duas pessoas durante seis anos, mas não faz muito tempo que você voltou a ativa, não é? Você não está sendo um pouco ganancioso demais?

— São aliados dos–

— Hanzo, você é o Sir Crocodile, por acaso? — Apricot perguntou, os olhos se arregalando de maneira não-natural.

O capitão engoliu a própria voz, e Yun sentiu as mãos começarem a tremer ao lado do corpo.

— Boa Hancock, talvez? — o sorriso aumentou outra vez, torcendo os músculos acima da boca à medida que desfigurava a própria face em genuíno desdém. — Gecko Moria? Bartholomew Kuma?–

— Eles estavam na ilha conosco, a capitã está com um chapéu pirata em todas as fotos — Hanzo cortou, batendo o punho sobre a mesa e imediatamente largando o pulso sobre a imagem de Pieri. — Toda a tripulação dela está aí; são extremamente escorregadios e fortes e alguns são usuários do fruto — deu uma pausa, fechando os olhos e franzindo o cenho enquanto ouvia a respiração de Yun se tornar cada vez mais escassa ao seu lado. Quase podia sentir o suor frio que escorria de sua face e as batidas aceleradas de seu peito, mas ele continuou, mesmo assim. — Também, nós trouxemos alguém que pode testemunhar contra. Alguém que esteve dentro do bando e sabe mais do que nós.

Apricot, de volta ao seu corriqueiro olhar traiçoeiro e sorriso pequeno, deu a si mesmo um segundo para retomar completamente a compostura e, finalmente, tornou a dizer: — Bom, se isso for verdade, então temos algo para conversar. Elabore.

— Os Piratas Pierrôs, comandados por Pieri, são aliados dos Bakenekos. E, se essa informação não for o bastante, estão todos cientes dos crimes e são coniventes com eles.

— E por que eu deveria temê-los?

— Porque fora a capitã que deixou meu rosto dessa maneira e, sabendo de seu potencial, isso não é metade do que ela seria capaz de fazer — seu tom era seco, sem sentimentos, mas para o imediato era claro o esforço feito pelo capitão; estava humilhando-se em frente ao contra-almirante com a esperança de que isso fosse o bastante para fazê-lo agir; com esperança de que ele conseguiria os parar.

Entretanto, seu esforço não pareceu surtir efeito e, de forma sucinta e desrespeitosa, a risada ladina de Apricot voltou a se alastrar pela sala, retumbando mais alto do que deveria entre as paredes brancas de concreto. Por nenhum momento, o homem fez questão de esconder o próprio divertimento; estava se deleitando com os ombros caídos do corsário e, ainda que tivesse a liberdade e seus próprios motivos para buscar os tais Bakenekos, não perderia a oportunidade de humilhá-lo mais um pouco. O que poderia fazer, afinal? Era divertido em demasia, tornando impossível abrir mão de um prazer tão fugaz. De outra forma, seu sadismo explícito não poderia ser descrito de outra forma senão perturbador.

— Vejo aqui, os Pierrôs são esses daqui? — segurou uma foto entre os dedos indicador e médio, virando-a como uma carta de baralho para mostrar os seis membros sorridentes posando frente a câmera. — Se eles são tão perigosos, eu posso saber o que seu imediato está fazendo aqui, se divertindo com eles?

O capitão encarou Yun com os olhos semicerrados, mas não o reprimiu de prontidão; em vez disso, esperou que ele desse uma resposta coerente — o que, obviamente, ele não fez.

— Problemas internos? — Apricot torceu o rosto em deboche, coçando o nariz com seu indicador. — Eu não tenho todo o tempo do mundo para atendê-los; tragam o delator d'uma vez.

Não foi preciso dizer duas vezes. Yun sequer esperou que Hanzo o enviasse para buscar Nicholas e, com a feição fúnebre, se levantou e foi até a porta, abrindo-a de uma vez e caminhando a passos firmes até a antessala onde seus demais companheiros os esperavam. A atmosfera mudou quase que instantaneamente quando os quatro observaram o rosto lívido do imediato.

— O que aconteceu? — perguntou Hide, preocupado. Nenhum dos outros pareceu reagir.

— Nicholas — Yun chamou, sem olhá-lo, pois sua visão estava tão perdida naquele momento que mal conseguia distinguir um do outro — O capitão está te chamando.

O garoto teria franzido o cenho, se seu rosto não estivesse imobilizado pela gaze posta antes de saírem do barco, mas não demorou para se levantar, seguindo-o cabisbaixo. Hide arregalou os olhos, perturbado com sua submissão.

De volta ao escritório, Apricot abriu a boca em um "uau" teatral, ligando os pontos da faixa sobre a face com os machucados que cobriam o corpo de Hanzo. — Isto — apontou a gaze — também é culpa dela? — pergunta ao capitão.

— A própria.

— Pieri? — Nicholas indagou, contraindo o lábio. De soslaio, olhou para Yun, que não conseguia mais olhar para frente e Hanzo, que tinha as sobrancelhas quase unidas no centro da testa.

— Sim, Pieri — Apricot confirmou, sorrindo da forma mais gentil que poderia com sua faceta pacóvia, convidando-o para se sentar na cadeira onde antes o imediato estava — Um cãozinho me contou que você tem informações sobre ela — e apontou a imagem do bando completo, uma das tiradas por Artúlio depois de seu expediente.

Confuso, o garoto procurou em seus arredores alguma indicação de que deveria se aproximar, mas não encontrou nada. A sala, que não era grande para começo de conversa, agora tinha um ar claustrofóbico, como se as paredes estivessem se comprimindo em um corredor que só o levava para a mesa de interrogatório. Quis vomitar. Nem Hanzo e nem Yun se importavam. Estava sozinho com o diabo.

— Pode se sentar — o contra-almirante insistiu, mais uma vez, tamborilando as unhas sobre a mesa de forma desritmada.

Os olhos de Nicholas passaram outra vez por toda a extensão da sala, buscando sua salvação. Então, sua atenção fora completamente capturada pela figurada da subordinada, que aguardava em silêncio o fim da reunião; ao se perceber observada, a mulher virou o rosto aborrecida, evitando o contato visual, contudo o espadachim poderia jurar que notou um certo rubor forma-se em seu rosto.

— Talvez minha beleza estonteante não seja o suficiente para a realeza, mas peço que foque na reunião — debochou, indicando com o indicador a cadeira, agora com um semblante firme, como quem ensina uma criança — Então, conte-me, quão relevantes foram os crimes cometidos pelos piratas autoproclamados pierrôs?

Nicholas encarou Hanzo com os olhos arregalados e o queixo um pouco caído, instintivamente colocando a mão direita no curativo em seu olho, sentindo o náusea tomá-lo mais forte do que nunca. Quer dizer, em primeiro ponto, por que diabos ele deveria testemunhar contra seu antigo bando? Não parecia fazer sentido, ainda que as relações estivessem cortadas, o passado permaneceria o mesmo independente do que fosse: Pieri continuaria sendo aquela que lhe estendeu a mão quando precisou e, sem dúvida alguma, Hanzo precisava aceitar que, sem eles, certamente sua missão anterior não teria tido o mesmo sucesso.

— O gato comeu sua língua, Nicholas? O seu capitão acredita que esse bando mantém uma aliança perigosa com um bando de interesse da marinha

— Como assim? — hesitou.

— Puta que pariu — Apricot amaldiçoou, levantando-se da própria cadeira para caminhar até o armário de arquivos recostado à sua esquerda, onde encostou com o indicador na lombada de algumas pastas, até retirar dele um com uma capa de couro surrado — Vamos fazer assim, então, conte-me o que eu quero saber e então direi a vossa alteza, aquilo que ele mais deseja saber.

O que em primeiro momento passou despercebido, agora não poderia ser só uma coincidência e, ao ouvir do contra-almirante a pronúncia venenosa de seu título, imediatamente sentiu os olhos ficarem turvos e uma dose perigosa de estresse passar por todo o seu corpo; a quanto tempo não era tratado daquela maneira e, principalmente, desde quando restaram informações sobre seu reino para cavucar? Até onde sabia, tudo havia sido destruído com a invasão dos piratas de Kaido — ele saberia se houvesse mais informações, porque era tudo o que mais procurava nos anos em que passou sozinho, passando fome e ruminando sobre a vingança que, um dia, poderia realizar. Pieri lhe estendeu a mão quando ninguém mais o fez, talvez porque ela sabia que ir atrás de um Imperador era impossível e não queria estar sozinha naquela ambição. Como ele, ela havia tido seu orgulho ferido e desejava buscar o fim da hegemonia dos quatro grupos que controlavam o mundo. Que se foda a Marinha, dissera. Não poderiam pará-los, se estivessem juntos e com os mesmos objetivos em mente. Deveriam continuar escondidos, seguindo em frente por debaixo dos panos para alcançar os líderes sem que eles soubessem que estavam vindo e, como o bote de uma cobra de areia, atacariam suas jugulares antes que pudessem os perceber e, simples assim, recuperariam a integridade que há muito havia sido lhes furtada.

— Ainda em dúvida em qual lugar se encontra sua lealdade? — questionou o contra-almirante, voltando a se sentar na mesa. — Pois bem, se está duvidando que tenho algo para lhe mostrar, prefiro que saia agora de minha sala e viva com este questionamento, Sr. Nicklaus.

— Nicholas... — Hanzo lançou para si um olhar suplicante.

Sua cicatriz doía e biles rastejava por sua garganta. Apricot tinha um olhar cortante como a foice de Merin que, no dia anterior, dilacerara sua face e a estante onde a pasta estava o encarava como se tivesse mil olhos.

— Eles... — respirou fundo — Eles tinham uma aliança com Poyo, a capitã dos Gatos.

O contra-almirante levantou o queixo, indicando que deveria continuar a falar. Não havia muito que soubesse, isto é, fora o último a juntar-se ao bando e, no momento em que se juntou aos pierrôs eles já haviam feito o necessário para estabelecer-se de maneira confortável nos mares; o projeto do Diabo-Negro encontrava-se quase finalizado, restando dinheiro o suficiente para que pudessem viajar pela Grand Line sem grandes preocupações. 

Eram criminosos, todos eles, e em nenhum momento poderia negar essa informação, mas exceto o envolvimento na Ilha dos Homens-Pássaros, jamais haviam passado por algo tão hediondo quanto o assassinato cometido pelo Bando dos Gatos. Não queria compará-los a eles, mas sabia que deveria dizer o que era certo — se não pelo bando atual, em prol de si mesmo e das respostas que merecia ter.

— Dos integrantes, dois são usuários de fruta do diabo, sendo um deles, a capitã. Há um terceiro integrante, mas não posso afirmar que seja usuário do fruto, apenas tenho garantia que seu corpo é como o de um morto-vivo.

— Muitíssimo interessante, mas minhas informações são caras e, se deseja salvar seu capitão de uma denúncia, é necessário que me diga algo ainda mais empolgante, meu caro!

O garoto engoliu em seco e, ao procurar algum suporte nos olhos do imediato, somente deu de face com sua figura lívida e completamente sem vida, encarando o vazio. Respirou fundo, havia em suas mãos a mínima chance de descobrir algo sobre seus familiares, todavia, seu peito doía com o peso da traição: Yolanda, Apollo, Shari, Franz e Kristian, companheiros queridos, que, mesmo sem compreendê-lo, o respeitavam como um igual... Eles mereciam ser esfaqueados pelas costas daquela forma?, se perguntou. Nunca lhe fizeram mal e, por outro lado, o ampararam diversas vezes quando preciso. Mesmo Pieri, quem não tinha grandes afinidades, ela também esteve ao seu lado por todo esse tempo, abrindo o caminho para que seguisse em frente quando tudo estava turvo demais...

Ela também não merecia isso. Não esse tipo de vingança.

— Se lhe consola, Nicholas, no lugar de Pieri, eu teria arrancado seu olho fora e o guardado como um prêmio — pontuou Apricot, puxando de uma das suas gavetas um recipiente transparente, onde boiava uma córnea solitária com um corte fino sobre a íris, muito provavelmente onde havia sido perfurado para a extração. Agora, o olho jazia embalsamado para posteridade, refletindo o mesmo azul que, outrora, fizera alguém como ele (um humano) enxergar também. — Esse aqui, é da minha irmã. Eu o roubei porque, como você fez com sua ex-capitã, ela traiu minha confiança — chacoalhou o pote, olhando o movimento leve dos nervos, dançando como cabelos embaixo d'água — Esse é o ponto principal. Da mesma forma que eu não me importo com quem ficou para trás, você não precisa se preocupar, já que arruinou tudo com eles. Mas, com meu auxílio, você poderá mudar o seu futuro e o de seu novo bando.

O silêncio perdurou por um tempo que o relógio não poderia marcar, pois, em comparação, os segundos não pareciam ter o mesmo valor de antes. Não obstante, eventualmente Nicholas conseguiu romper sua hipnose e voltar a falar.

— Eu sei de pouca coisa antes de me juntar a eles — anunciou com a voz fraca — mas eu ouvi dizer que, para montar o Diabo-Negro, eles traçaram uma porção de galeões militares e, por fim, invadiram uma base no East Blue.

— Elabore.

— Esvaziaram os cofres, bombardearam as barreiras e saquearam todos os mapas e informações confidenciais que puderam encontrar — explicou pesaroso. — O mecânico deles tem ciência das tecnologias da Marinha e invadiu já sabendo os diagramas que queria tomar. Ele montou um submarino capaz de passar despercebido pelos radares e Calm Belts.

— Isso é bom. E como ele sabia disso? — perguntou, erguendo um dedo para a garota que estava atrás dele, que imediatamente tomou uma caderneta que guardava entre a túnica e começou a anotar. Nicholas soltou um suspiro quase aliviado, ao vê-lo finalmente dar créditos as suas informações.

— Eu acho que Shari estudou engenharia naval em uma base, mas não sei ao certo — respondeu o garoto. — Sei que ele tem um conhecimento armamentício aterrorizante, e que o médico deles produz venenos capazes de derrubar um adulto em menos de um minuto.

Nicholas continuou denunciando um a um de seus antigos colegas, e a medida que citava cada uma de suas habilidade e cada uma de suas fraquezas, menos ele sentia remorso de suas ações, talvez porque o cheiro de pólvora de suas memórias estava intoxicando seu cérebro, impedindo-o de pensar. Ouvindo atentamente, Apricot assentia com a cabeça, sinalizando à garota o que deveria anotar e, por sua vez, Hanzo e Yun pareciam letárgicos; dessintonizados ao que estava sendo dito e as informações que pulavam em sua frente.

Quando terminou, por fim, o contra-almirante parecia mais radiante do que nunca.

— Céus, eu só tenho a agradecer, Hanzo — ele disse, sorrindo em escárnio para o capitão, que, mesmo após ouvir seu nome, ainda levou alguns poucos segundos para conseguir voltar a si. — Fico muito contente em saber que minha galinha de ovos de ouro continua dando frutos, mesmo depois de tanto tempo sem contato — se levantou da cadeira, tomando o caderno da mão da garota sem apreço e o enfiando no bolso da calça.

Ele se espreguiçou. — Não que eu esperasse menos de vocês dois, mas acho que vocês entendem minha desconfiança, certo? Hiyu-hiyu-hiyu.

— Apricot, as informações do Nicholas — Hanzo coagiu, batendo a perna contra o chão em ansiedade.

— Verdade! Já estava quase me esquecendo-hiyu-hiyu — pontuou, soltando uma risadinha de canto de boca e, de volta a estante, ele puxou a mesma pasta de antes, trazendo-a para mesa enquanto a folheava rapidamente — Aqui está!

Os olhos de Nicholas encheram-se de esperança e toda a culpa fora rapidamente substituída pela mais pura expectativa. Então, um balde de água fria foi jogado sobre sua cabeça ao olhar a pasta aberta; um dossiê completo de todos de sua família, com fotos em vida e de seus corpos estirados ao chão, cobertos de fuligem e sujeira.

— Todo mundo morreu mesmo, mesmo! — disse o contra-almirante, com um sorriso plácido entre os lábios. — Nessa pasta estão as cópias de todos as necropsias e as informações de leilões do que restou do palácio. Pode ficar para você, se quiser ir atrás dos seus bens um a um, mas eu não recomendaria mexer com o Governo Mundial.

Não demorou para que as lágrimas começassem a rolar pelo seu rosto e, em um único impulso, Nicholas puxou a espada de sua cintura, projetando seu corpo em direção ao marinheiro sem qualquer temor. Entretanto, seu ato não pôde ser finalizado, visto que seu corpo caiu ao chão, sem qualquer indício de consciência, antes mesmo que pudesse dar o primeiro passo. Yun havia o nocauteado com um pequeno dardo na nuca.

— Devo assumir que são venenos daquela tripulação? — Apricot olhou para o imediato, mas ele somente desviou o olhar — Você está infinitamente mais interessante, Yun. Ficarei de olho em você.

≈≈≈

Sherikan, Fang e Hide continuaram em silêncio durante toda a reunião, e somente quando a porta se abriu pela segunda vez, que o espadachim se viu assustado o bastante para pular do sofá. Kaze foi o primeiro deles a sair, segurando uma pasta de couro lotada de papéis e, em seguida, Hanzo veio com Nicholas derrubado sobre seu ombro, completamente desacordado. O marinheiro que anteriormente havia se apresentado como Apricot veio por último, ainda conversando com seu capitão:

— Assim que possível lhe enviarei respostas, Hanzo! Aguarde meu contato para mais instruções — informou, caminhando despreocupadamente pelo corredor e parando logo à frente deles. — Agora, entretanto, eu tenho que bater um papinho com uma vendedora de bugigangas. Assim que eu acertar essas pendências, eu estarei de volta ao nosso trato — então, Apricot retirou do bolso da camisa um papel quadrado em branco que, mesmo sem vento, parecia querer fugir de seus dedos para outra direção. Ninguém esboçou reação.

— Estarei aguardando seu contato. Agradecemos pela reunião, Apricot — o capitão fez uma pequena reverência com a cabeça; o máximo que poderia, com Nicholas dependurado em seu ombro.

Sorrindo pequeno, o rapaz deu dois tapinhas na bochecha magra do homem, reduzindo-o ainda mais. Depois disso, ele se virou e partiu em direção ao corredor das escadarias, mas não sem antes dar um olhar enfático para Sherikan, que estava de sobrancelhas franzidas, observando toda aquela situação.

— Uma boa viagem a todos e, cuidem-se, estaremos sempre de olho. Certo, Sherikan? — e deu uma piscadela, dobrando o corredor com um assobio desafinado e contratempo que, sem nem tentar, fez o espadachim sentir todos os pelos de sua nuca se arrepiarem e o peito soterrar. Atrás de si, um vulto de cabelos brancos passou rápido, caminhando serena e sem olhar para os lados; uma garota de estatura baixa e corpo definido que, antes que pudesse ver, desapareceu na curva do corredor, seguindo Apricot para o andar debaixo.

Sherikan levou alguns segundos para assimilar o que havia acabado de ouvir e, acima disso, o que havia acabado de ver. Se sua garganta formara um nó com o olhar de Apricot queimando em sua face, quando conseguiu conceber a figura da moça que passou em sua frente, uma gota de suor frio escorreu por sua testa e um grito de horror ficou preso na laringe, seguido de um sopro involuntário que escapou de sua boca no momento em que os dois desapareceram:

— I... Izumi!

 


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